terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Com açúcar, com afeto




Eu tinha saído da casa dos meus pais e não tinha conseguido passar nos vestibulares que tentei quando o Dumbledore morreu. Quando Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado voltou definitivamente para destruir o mundo da magia eu me vi, pela primeira vez na vida, sem saber o que fazer. Foi em 2005/2006, foi quando me encontrei pela última vez com Harry Potter. Nos anos seguintes as coisas, óbvio, mudaram. De distração, literatura se tornou um comprometimento, um trabalho, uma idealização. Vieram tantas pessoas novas e Hogwarts ia ficando cada vez mais distante, pro bem e pro mal.

Caso ainda não tenha ficado claro esse é um texto muito pessoal. E caso também ainda não tenha ficado claro esse é um agradecimento muito humilde. Porque me aconteceu de 5 anos depois eu ter a honestidade de ler a última parte, o último livro, as últimas páginas daquilo que segurou a mão trêmula da minha pré-adolescência: me reencontrei com Harry, Hermione, Rony e todo o resto do pessoal; e foi como reencontrar o abraço da minha mãe depois de um longo tempo fora de casa.

É, eu sei: “mas se não fosse Harry Potter seria outra coisa!”. Mas, ai é que está, Foi Harry Potter, foi a J. K. Rowling a mãe do meu amor pelos gênios que eu encontraria depois; foi Harry, Hermione e Rony meu modelo de amizade pra vida (do lado de Woody e Buzz, Mike e Sully); foi minha vontade de viver outra vida que me fazia tanto querer uma carta de Hogwarts: sempre querendo escapar, sempre; e em Harry Potter todo mundo voava, todos estavam começando de novo e descobrindo em si possibilidades de que não sabiam ser capazes.

É muito bobo. Sou muito bobo. Porque lendo a última parte dessa vida que eu tive não deixei de notar o uso banal de reticências, a arregimentação amadora de alguns acontecimentos, o desenvolvimento superficial de certos personagens, a trivialidade da linguagem: mas quem me dera eu lesse todos os livros do mundo com a paixão e a emoção que me acometeram ao ler esse; quem me dera meus olhos se obrigassem a correr mais rápido pelas linhas para chegar logo a próxima página toda vez que me propusesse a entrada na nova realidade da linguagem; quem me dera eu ainda tivesse a empolgação descompromissada dos meus 12 anos.

Não me entendam mal, se ganha tanto quanto se perde (ou algo próximo a isso), mas o que somos nós se não toda essa memória, toda essa construção que não cansamos ou não podemos deixar de revisitar? É preciso deixar para trás ao mesmo tempo que trazemos sempre conosco aquilo que, no entanto, não podemos recuperar.

Não, não chamo Harry Potter de guilty pleasure ou qualquer uma dessas frescuras que a gente usa quando quer ficar na defensiva: chamo a história de J. K. Rowling de “minha”, porque é isso que ela é. Obrigado pelos últimos 10 anos Harry, mas agora que Lord Voldemort já foi derrotado e que esses anos todos se passaram não há mais nada que possamos fazer um pelo outro.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Da beleza de não saber o que dizer


Permitam-me falar do que se passou quando revi Os Excêntricos Tenenbaums hoje:

Todo solitário reconhece outro solitário, é instintivo. Passam a ser então, nas palavras de Kioskerman, sozinhos juntos. Margot, Chas, Richie, Eli, Ethel, Royal - são os solitários que nos fazem companhia. São a família da qual fazemos parte por 2 horas. Se o menino é o pai do homem, Wes Anderson é definitivamente um filho obediente: que outro adjetivo pode ser mais justo do que "infantil" quando se trata dessa imaginação que é pura força criativa, puro deleite estético, pura sensibilidade Humana.

É a realidade do ficcional. É a legitimidade do artificialismo. São as verdades do coração que jamais pode (ou deve) conhecer a razão. É Margot nos ser apresentada como todos os outros personagens foram para depois ser revelada em slow, através da voz do Anjo Nico, enquanto amor da vida de um homem (causa e fim de tudo). É Chas e o frenético registro do seu pânico pós-traumático que desagua em um tranquilo desfecho de plano-sequência que nos mostra a beleza inestimável de podermos compartilhar nossa dor. É a castração suicida de Richie, testemunhada por uma câmera fixa que ilumina o personagem da forma como ele vê a vida então - sem meio-termo, ou se vive ou se morre.

A câmera-Wes narra o sentimento expressando-o. É um amor que sangra às cântaras de tanto afeto, de tantas lembranças. É a impossibilidade de voltarmos para o lar do jeito que éramos quando o deixamos.

Os Excêntricos Tenenbaums é a mão que se despede, mas é também a lágrima de saudade e contentamento das verdadeiras despedidas. Gostaria de ser uma pessoa melhor para explicar a quem quer que seja que esteja lendo esse texto como Wes Anderson atinge o que vemos na tela, mas também fico contente ao perceber que existe esse homem que me deixa em silêncio diante de tanto amor (pelas artes, pela vida, pelo ser humano).

Irônico escrever um texto fracassado para um filme que é o mais puro êxito. Mas é esse o meu humilde agradecimento à Família Tenenbaum.





terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Tragam-me a cabeça de Sofia Coppola

Maria Antonieta é a guilhotina de Sofia Coppola. Motivo: depois de ser ovacionada pelo sucesso de Encontros e Desencontros a diretora resolve tratar da rainha mais vilipendiada da França, sem jamais abrir mão de sua marca estética pessoal. O que surpreende em Maria Antonieta é o aparente ímpeto da diretora de levar essa estética, que desenvolveu nos seus dois primeiros filmes, a extremos que irão testar até onde esse estilo pode ir. O poder de expressão da câmera-Sofia é infinito? Haverá aquilo que ele não abarca? Aquilo que não lhe diz respeito e com o que não deveria se meter? Perguntas que lembram o Rodrigo S. M. de A Hora da Estrela em toda sua dúvida sobre se deve ou não criar Macabéa, heroína tão “externa” e oposta a ele mesmo.

Coppola, como todo bom autor (e como Rodrigo S. M.), é incapaz de não tragar Maria Antonieta para o universo narrativo que construiu com seu cinema, em todas as implicações desse universo – que, por sinal, a diretora sempre fez questão de enfatizar (iluminação, trilha sonora e montagem são as principais). Temos, então, que a rainha da França é mais uma menina deslocada e sem rumo que tem nas mãos o desafio de sobreviver ao tédio e a inércia da sua situação. A diferença essencial entre este filme e os dois anteriores de Sofia (no que diz respeito à personagem, e não podemos esquecer que o cinema de Coppola é um cinema de personagens) é que em Maria Antonieta se dá, em certos momentos, uma franca celebração ao modo de vida que a protagonista passa a levar em Versailles. É a sequência “festiva” do filme; mas trataremos disso adiante.

Uma protagonista à margem

A jovem Maria Antonieta é a protagonista de Sofia Coppola, mas não é, de forma alguma, o centro dos acontecimentos do filme. Mais do que as irmãs Lesbon, Bob e Charlotte, Maria está absolutamente acuada pelos mais diversos extra-campos: a situação política entre Áustria e França, as fofocas da corte que a arremessam ao status de celebridade e, claro, a Revolução Francesa, maior e mais devastador dos extra-campos. A situação sem saída da protagonista ganha sua representação mais violenta no choro explosivo após o nascimento do filho de seus cunhados enquanto ela nem mesmo consegue a atenção do seu marido: trancada no quarto, chorando contra a parede, Maria Antonieta procura, literalmente, fugir da câmera, que não desiste da empreitada e a obriga a ter sua tristeza registrada.

Percebendo o largo uso de fade-outs desta obra somos levados a conclusão de que Sofia quis dividir, claramente, sua narrativa em partes com temáticas bem distintas (que ganham representações distintas na tela). A primeira parte pode ser chamada de “O que Maria Antonieta deveria ser”, começa durante os créditos: Maria Antonieta, pluma imensa nos cabelos, cercada de doces por todos os lados, uma empregada fazendo suas unhas; ela olha para nós, sorri e nos convida para a marcha fúnebre que foi sua trajetória (como toda marcha fúnebre haverá o momento para a celebração da vida, apesar de seu inevitável destino ser a cova). Conhecemos a menina de 14 anos austríaca que acorda em seu quarto e descobre que vai se casar com o próximo rei da França. Enquadramentos grandiosos, contemplativos e aristocráticos dão o tom – aquela menina está destinada à grandeza, à realeza. Mas no caminho até a fronteira com a França voltamos ao táxi que leva Bob e Charlotte de volta ao hotel; a personagem olha pela janela, brinca com a mão, conversa com as amigas, olha a foto do “namorado” - são os tempos mortos de Sofia. Porém, volta o protocolo; no exato ponto em que a Áustria termina e começa a França a futura rainha desce, tira todas as suas roupas em território austríaco, atravessa a fronteira, e coloca seu novo figurino francês, a câmera também muda de lado e espera a saída da personagem da tenda onde está sendo reinventada, ela sai, caminha calmamente em direção a câmera, pára, olha de novo para nós e não sorri. “É sobre esta menina que falaremos”, é o que está sendo dito. Sofia sabe que não está escrevendo um livro, nem pintando um quadro, está, sim, fazendo um filme e a câmera nunca será esquecida pela diretora como a principal responsável pela concepção do universo que ela quer nos apresentar.

A solidão

Certo, esse título poderia ser usado para o filme inteiro, mas após a apresentação de Maria Antonieta a corte, o casamento com Luis XVI e a compreensão de qual destino foi escolhido para ela, a protagonista se dá conta do caminho sem volta em que foi colocada e Sofia se dedica a filmar, com toda a potência da grandeza imposta pelo palácio de Versailles, o que aquela menina deve ser para poder desconstruir essa idéia posteriormente mostrando o que ela de fato foi. Temos a passagem de tempo que repete a mesma rotina ao som de música clássica, os planos fixos, a inexistência de diálogos e o devastador plano de Maria na sacada de Versailles, sozinha, melancólica, prostrada e impotente diante de toda a realidade que lhe foi imposta, enquanto em off vem a intimidadora voz de sua mãe, explicando toda a importância do papel que Maria deve desempenhar na corte francesa.

A farra

Tanta solidão e melancolia têm que ganhar evasão em alguma coisa, e se estabelecermos uma proporção entre o número de sapatos, perucas, vestidos, doces e bebidas que Maria Antonieta comprou e sua tristeza teremos uma boa idéia de como ela estava desesperada. E aqui entra em cena uma das grandes habilidades de Sofia: registrar o inebriante alívio que o escapismo farrista pode proporcionar aos seus personagens (lembremos da festa em Tóquio e do baile de fim de ano das irmãs Lesbon).

Esta farra é o entre atos de Maria Antonieta, é quando se dá a consagração da agora rainha pela aristocracia e quando Coppola mais apostas nos excessos que tão bem representam essa fase: montagem mais elíptica do que nunca (a continuidade clássica só é usada nos momentos mais “protocolares”), a trilha sonora mais anos 80 do que nunca, câmera mais na mão do que nunca. É a sequência bêbada da ressaca de Maria em um quarto cheio de garrafas, é a amiga junkie e a possibilidade de ficar com outro cara na festa de Paris. É quando Siouxsie and the banshees se torna música ambiente e não só trilha sonora. Mas todo o fim de bacanal precia de

Uma paz

A parte do petit Trianon (casa no campo de Maria Antonieta) é a flor que desabrocha durante o filme: sem espartilhos, quase sem trilha sonora, luz natural e a exacerbação da integração de personagem e ambiente se dão aqui. Vem uma desnecessária frase de Rousseau para sublinhar a idéia que as imagens, por si mesmas, já passam: o mal do homem são os outros, de Maria Antonieta então nem se fale! A câmera tem agora um carinho maternal por sua protagonista, pela primeira e última vez livre, não acuada, feliz. Interessante se dar conta de como essa sequência divide com a anterior a mesma sensação inebriante de bem-estar, dessa vez, quem sabe, mais legítima e duradoura.

A queda

Voltamos para Versailles e a Revolução Francesa é cada vez mais citada. Sofia decide abrir esta última parte filmando a saudade, a lembrança: o campo de Maria na janela e o contracampo de sua memória imaginando o amante na guerra americana, ouvimos I WANNA BE FORGOTTEN AND I DON’T WANNA BE REMINDED e a rainha corre pelo corredor, se joga na cama e entrega-se à masturbação da fantasia, ao deleite de lembrar, à angustia de saber como poderia ter sido. A aparente leveza deixa o filme, as cores se tornam chapadas e distintas, volta a câmera fixa: é que Maria perde um filho e a população francesa passa fome. Somos relembrados de quão à margem essa mulher estava, de como ela não tinha a menor idéia do que se passava, de como tudo aquilo foi cruelmente forçado para ela, mesmo que embrulhado em uma embalagem encantadora.

O maior dos extra-campos entra com o som da turba enlouquecida de fome, naquilo que mais se aproxima de uma redenção, Maria faz uma reverência a esse extra-campo cuja existência desconhecia, mas que tanto determinou sua vida. A desorientação infantil já era latente (quando o rei morre a primeira frase de Luis XVI é “Que Deus nos ajude, somos jovens demais para governar”, frase que poderia ser também “somos jovens demais para morrer"), Maria não vai passar da juventude, o filme não pode passar da juventude, não só porque é o que mais lhe interessa, mas principalmente porque é na efemeridade do jovem que está sua beleza. E o maior dos fetiches de Sofia (e eles são muitos) é a Beleza.

Como o fim da juventude, o fim de Maria Antonieta é melancólico e sem perspectivas de futuro, por isso a última frase da protagonista é “I’m saying goodbye”, para a juventude, para a vida, para o público. Se os filmes de Coppola são seus personagens, eles não podem ir além das limitações dos mesmos, a não ser por um momento: a última montagem elíptica, o último plano é do quarto destruído do casal real; a sempre tão interessada por interiores diretora mostra o que restou dos seus personagens agora que caminharam para a incontornável cova: destruição e vazio (talvez, também, tudo o que eles realmente foram).


quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O que não se explica


Como eu não entendo NADA de música vou explicar minha relação com o trabalho do My Bloody Valentine e do Mazzy Star da forma que sempre me foi mais próxima: explícita e sentimental.
As baterias são a chuva constante e grossa batendo contra o asfalto endurecido pelo sol do passado.
Os baixos são o vento que se intromete pelas minhas janelas, um som atrás da minha percepção.
As guitarras são a harmonia sinuosa entre chuva e vento que me vara o coração.
Os vocais são a alma da tempestade que é, obviamente, a minha própria (tempestade epiritual, espírito tempestuoso).

When you sleep é o sonho que tenho; Halah é o sonho que gostaria de ter tido.


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Obviously, doctor, you’ve never been a 13-year-old girl


Os Suicídios Virgens


Eu nunca fui uma garota de 13 anos. Também nunca fui o diretor caótico de um espetáculo da Broadway, ou um taxista psicótico de Nova Iorque, ou um fotógrafo preso numa cadeira de rodas, no entanto Bob Fosse, Martin Scorsese e Alfred Hitchcock me narraram tão bem esses personagens com suas câmeras que sinto como se tivesse sido.

Sofia Coppola não tem tanta certeza da possibilidade de eu (nós) entender todas as consequências de ser uma menina de 13 anos; ou melhor, ela não tem tanta certeza da possibilidade de transferir o particular para aqueles que são exteriores a ele. O que pode soar como fraqueza ou falta de propósito para alguns se apresenta diante de mim como uma honestidade infantil, de tão pura.

Virgens Suicidas é o único filme de Sofia com um narrador, alguém que observa os acontecimentos de fora e tenta compreendê-los da sua forma, nas suas limitações. Este ponto de vista narrativo será claramente delimitado pela diretora desde sua primeira inserção no universo fílmico: trata-se de uma investigação, com fatos, testemunhas e teorias para solucionar o enigma.

É, pois, neste primeiro ponto de vista que Sofia brinca com as mais diversas influências cinematográficas a que teve acesso – a filha do grande orquestrador de óperas Francis Ford Coppola apresenta a cena do crime, suas vítimas e seus criminosos do jeito de Sergio Leone: ao aparecimento das cinco ninfas suicidas seguem-se os nomes de cada uma na tela, sobrepostos à imagem congelada daquelas belezas (nomes escritos com letras que meninas usam para escrever em seus cadernos). São Cecilia, 13 anos, Lux, 14 anos, Bonnie, 15 anos, Mary, 16 anos, e Therese, 17 anos. Como em um relatório policial ficamos sabendo que “Cecilia was the first to go”. Ficamos sabendo como ela foi encontrada, ficamos sabendo que foi uma tentativa frustrada de suicídio, ficamos sabendo que ajudá-la é impossível.

Como em toda boa investigação apresenta-se um mistério aterrador. Aquelas cinco visões luminosas, por algum motivo, estavam condenadas desde o início. Cecilia, tão inescrutável, espalhou o veneno pelo ar. Temos então escolhas de direção que se afastam da Sofia Coppola a que nos habituamos em Encontros e Desencontros e Maria Antonieta: a câmera é sempre fixa e objetiva, os planos-detalhe são abundantes na tentativa de encontrar nas pequenas partes do processo do crime a resposta para o seu grande motivo (o cartão de Nossa Senhora que cai da mão de Cecilia, a tenista limpando o suor da boca, a grama no ombro de Lux, a foto de classe que vai sendo ampliada até chegarmos a uma proximidade clínica das irmãs sobreviventes). A diretora coloca luvas de látex nas mãos e se debruça sobre o caso das irmãs Lesbon.

Mas esta não é a primeira perspectiva que se apresenta ao espectador. Antes do início da narração, antes de sabermos o que aconteceu, temos o plano de Lux, em uma rua do seu bairro, olhando para o nada: câmera na mão, pouquíssima profundidade de campo, silêncio. Familiar? Sim, Charlotte e Maria Antonieta foram apresentadas da mesma forma. Sofia Coppola não se identifica, enquanto ponto de vista, com o narrador de Virgens Suicidas – identifica-se, sim, com o objeto narrado; com o mundo claustrofóbico e deslocado das cinco irmãs.

A diretora não é íntima de seu narrador, ele é o corpo estranho deste filme. Daí as escolhas de direção facilmente ligáveis a outros diretores: Coppola faz questão de evidenciar que acompanharemos dois desenvolvimentos, duas maneiras de ver. Na oposição estética entre esses dois pontos de vista está a verdadeira deflagração do estilo desta autora.

Se, como em todo mistério, em determinadas partes podemos apenas cogitar o que aconteceu, no mundo de Virgens Suicidas a câmera-sofia pode penetrar os trechos mais difusos do tão citado quebra-cabeça de fatos. No período de clausura mais fascista pelo qual as irmãs passam o narrador não pode abrir a porta do quarto (sempre apresentado como um santuário), mas a câmera pode entrar pela janela e registrar o tédio, a melancolia e o desespero daquela prisão de segurança máxima. Pois é quando o narrador nos abandona que encontramos a mão de Sofia Coppola oferecendo-se em nosso socorro. É quando sabemos que Lux escreveu o nome de Trip Fontaine na calcinha, que Cecilia escondeu os curativos dos pulsos com pulseiras, que Lux acordou sozinha em uma azulada manhã, em um campo de futebol, após o baile.

Tão forte é essa identidade visual que Sofia imprime ao retrato do mundo de uma garota de 13 anos, que quando o narrador e seus amigos entram em contato direto com este universo o que predomina é a força da delicada câmera da diretora. É o caso do rapaz que janta na casa dos Lesbon e tem o privilégio de usar o banheiro que fica no quarto das irmãs: a imagem daquele quarto fica imediatamente ao lado dos quartos de Charlotte e Maria Antonieta, pleno de toda a significação que Sofia tende a dar aos espaços ocupados por seus personagens; sempre incontornavelmente transitórios ao mesmo tempo em que são parte essencial daquelas personas.

Na direção contrária do universo interior e pessoal de Encontros e Desencontros, Virgens Suicidas é sempre cingido em dois – o mundo por si mesmo e como ele é enxergado pelos outros. O narrador tem o poder de elemento de extra-campo que a diretora só retomaria em Maria Antonieta (a Revolução Francesa), mas que desde sua seminal estréia já a interessava imensamente. Porque ela sabe como é fácil ridicularizar aquele mundo (exemplo máximo é o garoto que, na festa de debutantes, finge um suicídio dizendo “eu sou uma adolescente, eu tenho problemas”) e porque ela também sabe que aquele mundo é o que mais a fascina (o que a põe, tematicamente, ao lado de John Hughes).

Na estruturação da sua narrativa Sofia escolhe a apresentação paródica de personagens e cenários, reverenciando diversos diretores (o já citado Leone, Scorsese e Coppola pai), para ser representação do ponto de vista que ela sabe ser estranho ao seu modo de ver (o narrador). Mas sempre que as cinco suicidas estão em primeiro plano, sempre que elas são o ponto de vista narrativo, somos deixados na presença do verdadeiro estilo da diretora: a câmera etérea que parece levitar, sempre perscrutando, nunca afirmando, a trilha sonora do Air que é a tradução musical perfeita do estilo de Sofia, a elegia ao tédio, a sensação de deslocamento que tanto se faz sentir nos seus outros filmes, mas que aqui é algo mais dolorosa, pois não se trata de um hotel no Japão, ou de um hotel disfarçado de castelo na França, mas de uma casa que deveria poder ser chamada de lar. Enquanto o narrador nos informa os acontecimentos, Sofia os expressa, e aceitar essa diferença é essencial para o reconhecimento do valor desta obra, principalmente quando ocorre a comunhão de ambas perspectivas na festa suicida da parte final do filme: enquanto os garotos encontram, investigativamente, os corpos das irmãs, assistimos a montagem paralela daquele horror com imagens que só existem no imaginário: o passeio de carro que nunca ocorreu, a sensação de liberdade que nunca veio. E esta suposição do que poderia ter sido e não foi rebenta na tela com toda a potência da inconfundível câmera de Sofia Coppola – afinal o domínio dela é justamente onde o narrador não pode ir.

Mesmo dois pontos de vista tão distintos compartilham de uma mesma angústia: a impossibilidade de compreender como é ser uma garota de 13 anos, e o que a levaria a terminar sua própria vida. Se o narrador tem a desculpa de ser o sexo oposto, Sofia é deixada com a aterradora incapacidade de compreendermos a nós mesmos, incapacidade que ao matar Cecilia, Lux, Bonnie, Mary e Therese feriu para sempre todos os outros personagem que a diretora veio (e virá) a criar.







sábado, 20 de novembro de 2010

A Situação Crítica


Na última viagem que fiz ouvi muitas críticas aos críticos (de cinema, em especial). Críticas que, infelizmente, na quase maioria dos casos se fazem valer.

Críticos são vistos como os imbecis vendidos que não entendem nada a respeito do processo de produção de uma obra de arte e, por algum motivo, sentem-se dignos da posição “confortável” de julgar o trabalho dos outros. São os boçais que dizem o que presta e o que não presta, que destroem ou glorificam uma obra de arte baseados nos mais escusos e vis interesses econômicos-morais-sociais.

Não existe faculdade de crítica, nem sequer de apreciação estética. Não existe cartilha de como analisar uma obra, mas sim um mundo de opções e caminhos a serem seguidos – escolha que é feita a partir de critérios perigosamente subjetivos. Para alguns se trata de analisar enredo e personagens, para outros se trata de identificar impactos sociais produzidos pela obra, para muitos se trata de contar a história do filme (ou livro, ou mesmo música) com um polegar pra cima ou pra baixo no fim do texto.

Mas e pra mim? A primeira certeza que me ocorre quanto à crítica é que ela deve ser impetuosa, sobretudo, consigo mesma. Um crítico sempre deve duvidar – principalmente de suas preferências e afinidades. A segunda certeza é que, ao menos para o crítico, a reflexão a respeito de uma obra de arte deve ser um desdobramento do processo de comunicação que é toda e qualquer apreciação artística. Afinal, alguém (artista) diz algo (obra de arte) para alguém (o apreciador, ou público). Assim, se alguém se propõe o trabalho de crítica não é nada honesto se conformar com juízos de valor, que são intrinsecamente particulares.

Não me entendam mal: juízos de valor são pontos de partida que podem, de fato, levar a reflexão a lugares interessantes e estimulantes. Mas se o público pode pura e simplesmente dizer “gostei” ou “não gostei”, o crítico jamais pode se beneficiar dessa concisão de opinião. Se chamamos artista àquele que se propõe a levar a sua(s) linguagem(ns) em alguma direção, deveríamos chamar crítico àquele que leva a reflexão sobre a arte para algum lugar, ou seja, que se faz essencial para a recepção de uma determinada obra.

Ora, Arte é uma das grandes formas de conhecimento inventadas pelo homem (entre muitas outras coisas que ela pode ser); aquilo que ela é capaz de produzir nas pessoas que se predispõem a enfrentá-la precisa ser encarado da mesma perspectiva. E a Arte não se interessa por preguiçosos – e estes tampouco se interessam verdadeiramente pela arte.

Por mais que eu considere juízos de valor pontos de partida promissores, não posso evitar de me interessar cada vez menos por eles. Hoje, para mim, frases como “eu faria diferente”, ou “isso não é cinema” são mil vezes mais desprezíveis do que a mais medíocre obra de arte. Afinal, se não concordo com a idéia de que o crítico não passa de um artista frustrado e invejoso, exijo do crítico a mesma coragem de exposição e criação que encontro na essência que torna alguém artista. Tem que tratar-se de um diálogo, nunca de um sermão.

Disposição, amor, tesão e auto-crítica são as raízes que sustentam a crítica que de fato me interessa. Claro, pode ser uma distração engraçada ver um crítico se resvalar em mil juízos de valores implicantes afim de defender única e exclusivamente as suas preferências mas, parafraseando de leve, deveríamos nos perguntar diante desse tipo de texto: “É engraçado, mas é crítica?”

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar


Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.


O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.


Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Tenho a impressão que todo mundo deve conhecer esse poema da Cecília Meireles - bem, se eu conhecia nunca tinha lido de verdade; porque hoje de manhã quando me encontrei com ele não pude acreditar na revolução silenciosa que aconteceu em mim.

Já ouvi tanta coisa sobre essa mulher, tanta besteira sobre introspecção ou sobre alma feminina ou sobre ela não ser grande poeta. Não sei quase nada dela mas FODA-SE esse poema é perfeito: desafio qualquer pessoa a retirar uma vírgula que seja dessa construção que é pura delicadeza e destruição.

Ninguém escapa a esse poema. NINGUÉM.

Uma voz comprometida com sua própria extinção na busca de alguma plenitude impessoal e, por isso mesmo, P L E N A. Uma poeta que quer quebrar as mãos e se livrar da própria maldição de não conseguir comportar todo o transbordamento que é o seu coração de sonho. Uma pessoa louca por um sono de sonhos assassinados e pra sempre perdidos para, quem sabe finalmente Meu Deus, poder dormir.

É preciso destruir tudo o que somos para que não reste nada a não ser o que sobrevive a toda nossa pessoalidade sufocante. Hoje de manhã coloquei essa mulher num altar e rezei bem lúcido: "Graças a Cecília, que me disse tudo que eu queria saber e me matou pra sempre com a canção eterna do sonho. AMÉM".

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A Juventude de Sofia Coppola


O cinema de Sofia Coppola é uma das grandes questões que venho tentando compreender melhor nesses últimos tempos. Como servo incondicional de Encontros e Desencontros passei a desconfiar bastante das minhas opiniões a respeito do trabalho dessa diretora.

Contemplo Virgens Suicidas, Encontros e Desencontros e Maria Antonieta na busca de uma unidade e coesão autoral que penso ser óbvia a primeira vista – mas que só pode ser corretamente apreendida e admirada após algumas revisões.

Não é novidade pra ninguém que é totalmente possível existir um artista/autor que não seja um artista/gênio – e não gênio na romântica e confortável visão do grande salvador da pátria a quem todos os louros do reconhecimento da grandeza de uma obra devem se dirigir; mas o gênio que se debruça sobre uma linguagem e a leva em alguma direção; dominando-a e sendo dominado por ela.

Sofia Coppola é, sem a menor sombra de dúvida, uma autora. Assim como Wes Anderson, Quentin Tarantino e Wong Kar-Wai, todo filme de Sofia Coppola só poderia ser dela; mas o que esta identidade pessoal faz pela estética cinematográfica? Que frutos é possível colher desse encontro?

Quando penso nos três primeiros filmes de Coppola me deparo com algo pulsante e absolutamente essencial em minhas mãos: a melancolia da juventude (não física, mas sim sentimental). As quatro irmãs de seu primeiro filme, o homem e a mulher que se encontram em Tóquio, a menina que se muda pra o maior castelo do mundo; são seres que se debatem em qualquer que seja seu drama pessoal pela existência, ausência ou persistência de uma sensação de juventude, e apesar de não saber e não me interessar em saber como foi a juventude de Sofia Coppola, sei que esta é uma questão da qual ela não se livrará tão cedo da melhor forma que se pode saber de alguma coisa quando se trata de arte: a partir da forma como a voz do artista derrama-se na sua obra.

Há, então, um tema incontornável. E qual será, para a diretora, a forma incontornável? Qual é o meio que ela encontra para dar escape ao que ela pensa/sente/questiona? Essas perguntas me levam a uma outra questão muito anterior à Sofia Coppola – diz respeito às diferenças de percepção masculina e feminina (e não de homens e mulheres). Obviamente limitado pela minha própria percepção tento compreender coisas externas a mim: tradicionalmente ouço a separação entre masculino e feminino baseada na capacidade de pluralidade do pensamento de um e na obsessão em torno de um ponto do outro. Dispersão e concentração. Ponderação e afirmação. (Não pensei que seria tão problemático levar essa questão adiante, mas vamos lá)

Aproximando essa pretensa diferenciação entre masculino e feminino do cinema de Sofia Coppola quero refutar uma das acusações mais comumente feitas contra a diretora: sua falta de rigor. Ora, rigor não é rigidez, mas sim a honestidade de fazer o que é necessário. E nos três filmes de Sofia Coppola (com algumas ressalvas a respeito de Maria Antonieta) sinto dos créditos iniciais aos finais que assisti algo que não apenas precisava ser feito, mas precisava ser feito daquela maneira.

Se um cineasta como Quentin Tarantino diz: É; uma cineasta como Sofia Coppola balbucia: é? A percepção dispersa, incerta e, consideremos assim, feminina é o norte de Coppola (e, meu Deus, como é difícil não banalizar essa afirmação pelo fato de se tratar de uma mulher – sonho com um mundo de hermafroditas!). Como todo cinema que vale à pena o tema e o sentimento de Sofia não se expressam apenas pela boca e pelos corpos de seus personagens, mas pelos movimentos da sua câmera, pela edição, pela montagem, pela trilha sonora, pela iluminação, pela disposição dos objetos em cena. O que me fascina é enxergar como um temperamento evasivo e algo perdido transpõe sua própria natureza em direção ao encontro de uma expressão estética absolutamente rigorosa – porque nunca trai esse pressuposto, ao mesmo tempo em que se confunde com ele.

Dizer que Sofia não é uma grande diretora porque não sabe o que quer filmar, ou que quando sabe só se interessa pelo mero (?) registro é o mesmo que diminuir o cinema de Quentin Tarantino pelo reconhecimento da cultura cinematográfica pungente do diretor e pela catarse que seus filmes proporcionam. E, por mais delicada que seja a separação, é indispensável encarar obras de arte a partir do que elas querem te proporcionar (e não do que você espera que elas te proporcionem).

A “desconjuntada” estética de Sofia Coppola é a forma necessária desta artista construir imageticamente uma desconjuntada juventude perdida ou insipiente. E isto é o mais fulgurante rigor que um autor pode atingir, é a possessão que a linguagem faz do corpo do artista. Uma possessão que encontra seu anti-exorcismo na concepção divina de uma grande obra.

Tudo é transitório e evanescente no cinema de Sofia Coppola, menos aquilo que mais importa: a forma como se dá o registro dessas pequenas grandes coisas que, hipnotizadas pela luz da juventude, correm em direção ao seu próprio fim.





quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Amigo estou aqui


Fazia 2 anos que não encontrava com Woody Allen. O sorriso que me aconteceu ao ver a sua clássica fonte durante os créditos de Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works) foi o suficiente para me mostrar como havia sentido saudade do homem que foi (junto com Chaplin) meu primeiro amor de cinema.

Na relação que desenvolvi com o cinema de Woody Allen o mais engraçado é que o maior elogio que posso oferecer à ele pode ser encarado, por quem não entende muito de amor, como uma severa crítica: encontro nos filmes dele tudo o que espero encontrar, nunca espero mais do que realmente ele acaba me oferecendo e nesta reciprocidade (que os ranzinzas, como o hilário Boris, podem confundir com pacto de mediocridade) mora todo o conforto que encontrei em ter sentado em uma sala de cinema pela quarta vez na minha vida pra assistir um filme deste judeu do Brooklin que mora no meu coração.

E se deleitar com Tudo Pode Dar Certo é uma prova de amor: sem o cenário europeu que tantos insistiram chamar de reinvenção estética, sem a dramaticidade de um Match Point, sem Penelope Cruz, ficam os tão familiares cenários novaiorquinos, as rodinhas intelectuais de Manhattan, as lindíssimas mocinhas burrinhas, a misantropia, o pessimismo que está louco para ser contestado por uma realidade um pouco menos repulsiva.


Sabe quando alguma coisa acontece e você não precisa dizer nada, é só olhar para um amigo e ele entende absolutamente tudo? Sabe aquela alegria recompensadora de perceber que esta empatia ainda existe apesar do tempo ter passado? Assistir esse último filme de Woody Allen é uma combinação das duas sensações - e não que o diretor se escore apenas na memória afetiva de seu público: porque ainda existe a sensibilidade de usar bem o extra-campo, o texto que corta de tão afiado, o timing eficientíssimo do humor e contundente da melancolia, a beleza e a transparência de que só um clichê sincero é capaz, o menosprezo e o afeto no trato e no registro daqueles personagens vivendo em seus pequenos grandes mundos de mentirinha.

Para no fim eu sentir que Woody Allen dá um tapinha nas minhas costas, rindo de si mesmo e de todos nós, compartilhando o "big picture" ao qual só ele (e nós, do lado daqui) tem acesso.

Pessoal, é que existem prazeres que só são possíveis na intimidade da rotina.

sábado, 9 de outubro de 2010

Pico na Veia

58

- Tua doce lembrança, ai maldita, essa brasa dormida nas cinzas frias do meu coração.


77

- Foi o primeiro amor, um amor tão desesperado, quando ela me deixou, ai de mim, só não morri porque, aos 20 anos, você NÃO MORRE.


90

- Esses mortos, ingratos, que te esquecem tão depressa.

Porque quando se trata de Dalton Trevisan o máximo que posso fazer é citá-lo.

sábado, 25 de setembro de 2010

One look in your eyes, and I won't have to fall




Minha música do ano é Back to Manhattan, do cd que a Norah Jones lançou em 2009 (The Fall).

Alguma coisa nela traz até mim uma atmosfera que só os melhores trabalhos de Joni Mitchell me proporcionaram (e, acreditem, isso quer dizer muita coisa).

Uma mulher, um homem, a ponte do Brooklin entre os dois - é preciso partir e, apesar de não saber como, ela sabe que deve fazer isso imediatamente.

Eu sei, isso é a letra - mas aquele piano, aquela bateria, aquela voz que parece um barco deslizando na correnteza melódica dessa canção, tudo isso me dá a trágica proporção deste fim de um mundo.

No final, a música fica suspensa (como uma ponte), ecoando em mim e em toda a sensação de despedida que ela me provocou.

Sei tão pouco de música - Norah Jones me fez sentir tão próximo à ela.

http://www.youtube.com/watch?v=w8b5uMN1bAQ

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

21

Assim o cãozinho quer pegar no chão a sombra do vôo rasante do pássaro, você persegue no tempo a lembrança em fuga dos teus mortos queridos.

Dalton Trevisan, muito muito obrigado.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Sem histeria




M. Night Shyamalan é uma das maiores vítimas da histeria crítica de todos os tempos: de um lado os ardorosos detratores de sua obra, que se recusam a abrir os olhos para um dos grandes autores dos últimos anos, do outro os fãs incondicionais, que em velocidade impressionante dão um jeito de encontrar as mais diferentes justificativas para as mais diferentes escolhas deste problemático e fascinante diretor.

Entre esses dois grupos me considero uma espécie de meio-termo: pouco me lembro do valor estético de O Sexto Sentido (problema de memória mesmo), Corpo Fechado e Sinais moram no meu coração e são parte indispensável da minha formação de apreciador da arte cinematográfica (trata-se de obras-primas), tenho extremo respeito por A Vila, não sei bem qual minha posição acerca de A Dama na Água (rever é indispensável), desconfio e antipatizo bastante com Fim dos Tempos e não gosto de O Último Mestre do Ar.

Sim, este texto parte de um juízo de valor, porém vou trabalhar o máximo possível para que a partir deste juízo se obtenha algum conhecimento.

Em um belo texto sobre a estética proposta por esse diretor, Breno Yared fala sobre os planos longos que são preferência de Shyamalan quando vai filmar suas cenas (o texto está no blog de Yared: http://artedamiseenscene.blogspot.com/), e que, por vezes, causam no público certo desconforto ou enfado, principalmente por conta dos mal acostumados olhos que se viciaram em filmes com planos que duram, em média, menos de 10 segundos. Uma das coisas que mais gostei neste texto foi a escolha do autor em não alegar uma superioridade de planos mais longos quando postos ao lado de planos “picotados”. Afinal, as duas formas de filmar (acompanhadas de outras mil possibilidades que uma câmera nos dá) possuem, cada uma, sua força e sua eficiência cênica – tudo depende, obviamente, do uso que será feito delas.

Assim, não me incomodo nem um pouco que Shyamalan opte por planos longos em seus filmes, muito pelo contrário: a sequência em que o casal de Corpo Fechado janta a sós em um restaurante enquanto recupera sua intimidade destroçada pelo cotidiano, recuperação que nos é informada pelo sutil, lento e longo zoom in em direção ao casal, é uma das cenas mais lindas do cinema. Bem como a sequência da família de Sinais, presa no porão da sua casa, na escuridão total, onde só nos resta os gritos de pavor dos personagens, é das mais aterrorizantes que já vi.

Também não me incomoda que o diretor escolha qualquer tema que seja para realizar seus filmes: que fale sobre super-heróis, sobre ETs, sobre gente morta, sobre ninfas, sobre monstros, sobre o fim do mundo – mas que fale bem. Sendo este “falar bem” a construção imagética da narrativa, aspecto que Shyamalan obviamente valoriza.

Me deparo, finalmente, com meu problema central: o filme de Shyamalan que mais me desagrada, o recente O Último Mestre do Ar.

Não ligo a mínima se é a adaptação de um desenho, se o diretor trabalhou sob pressão ou em uma camisa de força, se foi feito para ganhar dinheiro ou não: sempre irei encarar Shyamalan, senão como um gênio, como um diretor que realizou pelo menos duas obras-primas, e é desta forma que sempre irei assistir seus filmes – e quando ponho O Último Mestre do Ar ao lado de Corpo Fechado me é impossível colocá-los no mesmo nível.

Construção eficiente de personagens, criação convincente de atmosfera, capacidade de desenvolver bem uma narrativa envolvendo o público em seu universo pode nem sempre ser indispensável para uma obra, a não ser quando obviamente ela buscava tais efeitos; e este me parece ser o caso desta sétima produção de Shyamalan. Pergunto: onde está o carisma de Ang, o protagonista do lado de quem deveríamos estar e por quem deveríamos torcer durante a projeção do filme? Onde está a relevância da relação fraterna que se pretende estabelecer entre os três personagens principais? O que houve com os conflitos que são postos diante do público em relação ao filho do líder do povo do fogo, e que me parecem tão negligenciados na narrativa corrida e algo desinteressante do filme?

Um dos pontos mais frequentemente levantados em defesa de Shyamalan é a constante de sua marca autoral ser tão forte que acaba se impondo diante de qualquer convenção de gênero com o qual o diretor opte trabalhar: do filme de super-herói ao de fantasmas, do de ETs ao conto de ninar, o diretor nunca deixou dúvidas de que, antes de mais nada, tratava-se de um filme “shyamalaniano”. Porém, se em Fim dos Tempos já me vinha sensação de que esta marca autoral trabalhava contra a construção do universo fílmico, em O Último Mestre do Ar ela me parece estar absolutamente diluída: claro que existem grandes sequências nesta obra, onde a veia pulsante do artista Shyamalan se faz sentir (me ocorre o longo travelling lateral, todo ritmado por belos zoom ins e zoom outs, que registra a luta de Ang, após conseguir dominar a água, contra o povo do fogo), mas me vi na posição de um investigador tentando espremer do filme algo que me lembrasse as incríveis experiências que me foram proporcionadas por Corpo Fechado e Sinais.

Neste esforço investigativo me lembrei dos comentários que ouvi acerca de Fim dos Tempos: não se tratava de um filme catástrofe comum, mas de um filme catástrofe de Shyamalan, se as atuações pareciam insipientes, não era incompetência do realizador, mas simples direção (enquanto percurso) que foi escolhida para o filme e se ocorriam constantes quebras de atmosferas sugeridas por sequências incríveis, principalmente na construção de um ambiente repleto do mais puro pavor, era porque o diretor estava experimentando a própria forma de envolver o público ao mesmo tempo em que o distanciava de seu universo. Compreendo essas colocações e não duvido que sejam verdadeiras, mas minha questão é: até que ponto podemos levar em consideração essas ressalvas feitas com o objetivo de educar o olhar para o estilo de Shyamalan (algo que, de fato, é necessário em muitos casos) como justificativas para aspectos de seus filmes que parecem sabotar a própria obra? Explico exemplificando: como posso encarar pura e simplesmente as atuações “estranhas” de Fim dos Tempos como escolha estético/artística “irrelevante” quando ela afeta negativamente minha relação com a obra, e quando percebo que o próprio Shyamalan leva tais aspectos em consideração para seu filme?

É claro que cinema não é atuação, é claro que cinema não é roteiro, mas estamos tratando de um diretor que tem grande apreço pela estética clássica – e que, no mínimo em seus últimos dois filmes (especialmente este último), tem falhado na realização de diversos aspectos extremamente caros ao modo de fazer cinema que o próprio diretor escolheu tomar como seu. Não é preciso que ninguém lembre a Shyamalan que cinema é “visual storytelling”, motivo pelo qual não posso deixar de perguntar: onde está a força imagética do sacrifício da princesa da água pelo seu povo? Onde está a força imagética da descoberta de que em breve o povo do fogo entrará no período em que seus poderes serão exacerbados e em que a batalha se tornará mais sangrenta? Onde está a força imagética do coração deste filme? Onde está o coração deste filme, afinal?

O Último Mestre do Ar sofre de uma anemia pela qual nem mesmo os piores momentos de Fim dos Tempos foram acometidos. Mesmo nos instantes mais problemáticos e desagradáveis que tive com a obra de Shyamalan eu conseguia visualizar um vigor e uma potência poético-narrativa inegáveis. No entanto O Último Mestre do Ar exige de mim tal número de ressalvas e justificativas que se torna incontornável a seguinte questão: se estivéssemos diante de uma grande obra, todas essas ressalvas seriam necessárias?

sábado, 18 de setembro de 2010

O lap dance eterno




Antes de qualquer coisa esse texto existe por dois motivos: Death Proof, de Quentin Tarantino, e o texto “Cinema é coisa de macho”, de Mateus Moura (que vocês podem ler aqui: http://cinemateusmoura.blogspot.com/2010/09/cinema-e-coisa-de-macho.html).

Para evitar qualquer histeria (de minha própria parte) ou arroubo pseudo-feminista-sexista, quero me deter um pouco no que vem a ser esse “macho”, esse adjetivo que é tão bem-sucedido na classificação de certas grandes obras universais. De repente a melhor explicação vem do exemplo: os escritores mais machos que li na vida foram Graciliano Ramos, Fiódor Dostoievski e Clarice Lispector. Essa macheza sempre me remete a algo de implacável, algo de extremo, algo de urgente. Os artistas machos me destroem eternamente provocando em mim grandes experiências de criação. São os mais obcecados, os mais sentimentais. Já não são um coração que pulsa, mas que sangra. Como os zumbis de Lucio Fulci se entregam de tal forma ao momento presente em si que acabam engolidos pela eternidade de uma atualidade que nunca deixa de se renovar. É claro que há o valor dos delicados, dos contemplativos (Sofia Coppola dirigiu meu filme favorito de todos os tempos, e não sou louco de jogar pela janela as coisas que vivi segurando a mão de Virginia Woolf e Anton Tchekhov); mas ainda estou inebriado pela macheza de Death Proof – então me permito este direito ao grito.

Tarantino, cineasta do nosso tempo, encara a imagem em movimento do mesmo jeito que só um homem que é pura lascívia (em todas as coisas nobres e torpes que a lascívia implica) encara uma bela mulher. Mais uma vez pegando uma idéia de Mateus Moura, o cinema desse diretor é o mais próximo que podemos chegar de todo o prazer transcendental do sexo, ato que envolve todos os sentidos em toda a sua potencialidade estética. E toda a discussão a respeito dos limites entre prosa e poesia precisa se atualizar diante da perfeita mistura dessas duas vertentes artísticas que percebemos nesse filme.

Se um dia eu precisar fazer alguém entender o que é “cartase”, o trabalho vai ser simples: “Assista a qualquer filme de Quentin Tarantino, ou Alfred Hitchcock”. O nível de envolvimento que o criador de Kill Bill alcança em suas obras só pode ser ilustrado pelas palmas, pelas risadas, pelos pulos e pelas lágrimas involuntárias que nos acometem durante a vivência de qualquer um de seus filmes – vivência de uma outra vida, diga-se de passagem. E nessa capacidade narrativa sobrenatural para “contar uma história”, somos abençoados com sequências que explodem do mais puro e irrefreável lirismo abstrato: o corpo de Zoe flutuando em alta velocidade sobre uma estrada sem destino, os single-shots mais lindos do mundo para as mulheres mais lindas do mundo quando precisamos nos despedir de seus belos corpos antes que eles voem em direção ao nada no espetáculo daquela tragédia em alta-velocidade, os pés de Jungle Julia se espreguiçando nos pingos de chuva, a câmera nos guiando pelo seu tornozelo, suas pernas, seu quadril, os caracóis do cabelo...

É sensação e narração, é prosa e é lirismo. É a deflagração da harmonia entre música e imagem: em toda a sensitividade da música e em toda a hipnose da imagem.

O Cinema é a mulher de Tarantino, dançando no colo do diretor uma interminável lap dance que, para nossa sorte, deixa este homem-criança repleto do mais inefável tesão.

Quentin Tarantino sabe, e nos ensina, que tem coisas que só o cinema faz por você.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Where the truth lies



Toda arte é feita para ser apreciada.

O pintor espera que seus quadros sejam vistos, o escritor espera que seus livros sejam lidos, o dramaturgo espera que suas peças sejam assistidas. Este momento de contato entre público e obra de arte é um ato de comunicação: alguém (o artista) envia uma mensagem (sua obra) e nós (os potenciais apreciadores) a recebemos das mais diversas formas.

Toda a comunicação pode ser facilitada por um veículo que seja eficiente em transmitir a mensagem, e por 50 anos a televisão foi um dos grandes veículos de difusão das mais diversas obras (perdendo hoje, talvez, para a internet).

Atacada por Adorno e Horkheimer (e muitos outros) como o veículo das massas, a responsável pela idiotização da audiência, a destruidora da essência artística através da produção industrial de novelas, tele-jornais e séries, a TV indiscutivelmente teve sucesso em sua proposta primeira: levar o que quer que fosse que ela apresentava para a sala e os quartos das pessoas ao redor do mundo.

Quando assistimos a uma final de Copa do Mundo sabemos que não estamos sozinhos, mas na companhia de bilhões que se reúnem em vários países para vivenciar a mesma experiência. E esse potencial de conectividade (sem sombra de dúvida ligado ao poder aquisitivo dos donos das gigantes da comunicação) fez da TV uma presença incontornável nos lares humanos.

Mas o que é feito dessa capacidade de atingir um número vertiginoso de pessoas em escala global? Ou melhor, o que pode ser feito dessa capacidade?

Um homem de mais de 30 anos relembra de sua infância na década de 60, quando tudo o que ele vivenciava era a mais assustadora e maravilhosa novidade. Um chefe de família com distúrbios emocionais tenta se adequar a violência inerente à sua profissão de mafioso. Um homem que perdeu sua identidade e caminha em direção à auto-destruição como meio de atingir o tão sonhado auto-conhecimento. Essas premissas não se tratam de um filme de Fellini, nem de Martin Scorsese ou de Michelangelo Antonioni, mas sim de, respectivamente, Anos Incríveis, Família Soprano e Mad Men, exemplos da excelência que algumas séries de TV tem alcançado nos últimos anos – e que foram ou são acompanhadas religiosamente pela audiência “idiotizada” de que Adorno e Horkheimer tanto reclamavam na metade do século XX.

Assim como o cinema já foi considerado o patinho feio das artes (era um entretenimento de feira barato), hoje a televisão ainda é vista como um campo impermeável à possibilidade de verdadeira expressão artística. Mas as séries citadas acima (e muitas outras ainda) não só mostram que esta impermeabilidade à arte é um falso obstáculo, como confirmam (episódio após episódio) que esta é uma união que gera belos frutos.

Dentro do modo de produção televisivo (o difícil equilíbrio entre a permanência de uma identidade autoral e a capacidade de satisfazer o público) há grandes artistas (como Carol Black, Neal Marlens, David Chase e Mathew Weiner) que atingem o feito de nos entregar produções que mostram que o essencial não é satisfazer os telespectadores, mas instigá-los. Pois o que pode uma tacanha rotulação que afirme que em determinado lugar não há possibilidade de arte diante de provas cabais dadas por grandes artífices de que a arte sempre pode brotar de toda e qualquer fonte?

Uma das mostras de tanta capacidade criativa pode ser assistida hoje por qualquer um com TV a cabo ou internet banda larga: a série Mad Men. Donald Draper, o protagonista da série ambientada nos anos 60 em uma agência de publicidade, é o personagem televisivo da década (e sem dúvida uma das maiores conquistas de toda a história da TV): o violento, controlador, ambíguo e melancólico Draper. O perdido, solitário e sem raízes Dick. Na radiografia de seu passado nos deparamos com a angústia e o desespero de uma origem mísera, de um crescimento doentio e de um presente sombrio.

A série, em sua quarta temporada, vem, com a contundência inerente aos que dominam a sutileza, expor cirúrgica/liricamente o interior do indivíduo perseguido pelo passado e acuado pelo futuro; e no último episódio exibido nos preenche com a importância de se ter alguém que nos conheça nessa vida a partir da (des) construção da cumplicidade entre Don e Peggy. A ex-secretária e o poderoso patrão, em uma noite verdadeiramente passada na companhia um do outro, se dão conta da irmandade de seus destinos: são dois indivíduos que relutam em aceitar um destino que lhes é imposto por eles mesmos, esperneando sempre que são obrigados a seguir em frente pagando o preço de afundarem mais e mais na solidão. Só que realmente não estão sozinhos, ou melhor, estão sozinhos juntos.

Nesta série todos os sobreviventes estão mortos: a histérica Betty, o decadente Roger, a vaidosa Joan, os solitários Don e Peggy. Mathew Weiner, criador e produtor da série, tem a sensibilidade de nos fazer compreender que não se trata apenas da falta de direção para a qual os anos 60 apontavam, mas sim, essencialmente, para a inexistência de um norte que é também essência da condição humana – demonstrando isso pelas elipses no tempo que desnorteiam público e personagens, pelos planos-detalhe que insistem em mostrar mãos que não encontram outras mãos para segurá-las, pelo rigor obsessivo nos enquadramentos e movimentos de câmera que só fazem saltar aos olhos o caos que comanda a vida daqueles seres.

Este último episódio de Mad Men (e todos os anteriores, em maior ou menor grau) é prenhe da irascível insistência humana de continuar caminhando sem qualquer garantia de que, um dia, se chegará a qualquer lugar que seja. É o mais esmagador dos medos. É a mais nobre das esperanças.

São homens loucos. Não somos todos?

sábado, 11 de setembro de 2010

A Criação

Que palavras vêm a nossa mente quando pensamos em criar? O que este conceito evoca em nosso espírito?
Novo, vida, movimento, arte. ARTE. Por mais complexo que seja definir o que vem a ser arte, penso que todos podemos concordar que se trata de criação: de personagens, de narrativas, de atmosferas, de sensações. Uma criação que é indissociável da mentira, do artifício, da encenação.
Li recentemente, em um texto que tentava definir poesia, que o poeta é aquele que faz uso de uma linguagem para alcançar aquilo que a ultrapassa. Concordo completamente. Afinal, quantas e quantas vezes após assistir um filme, ou ler um livro, ou admirar um quadro me peguei pensando: mas isso é mais que cinema, é mais que literatura, é mais que pintura – isso é um milagre. Milagre tão poderoso que demoro a me convencer que foi realizado por seres humanos, como eu e você.
Mas nada é mais divino do que o humano.
Este é um texto sobre o diretor Alfred Hitchcock, mas especificamente um texto sobre seu filme chamado Um Corpo que Cai, cuidadosamente escolhido para inaugurar o novo Cine Clube da APJCC na Casa da Juventude; e foi pensando em como eu escreveria esse texto que me dei conta de que quando se trata de Hitchcock não consigo deixar de lado as questões que sempre foram e sempre serão essenciais à arte.
Porque Alfred Hitchcock é um desses artistas que é a definição perfeita de sua linguagem. E Um Corpo que Cai é um desses filmes que se utiliza de uma linguagem para alcançar tudo aquilo que a transcende. A tentativa de um melancólico detetive de compreender uma mulher que é a mais pura e devastadora demonstração da capacidade de arrebatar o público que a imagem possui é mais que filme, é mais que cinema, é mais que arte – e exatamente por isso é plenamente essas três coisas.
Existe algo de sagrado em cada fotograma dessa obra – algo de inviolável, de inalcançável, de indescritível. Cito, para não me perder em adjetivos, a sequência em que o detetive leva a jovem mulher para passear em um bosque repleto das árvores mais antigas do mundo: seres que já viram de tudo nessa Terra. Em um misto de delírio, lucidez, desejo e amor presenciamos a decomposição do tempo, do espaço, e a ampliação vertiginosa do horizonte daqueles dois personagens amaldiçoados. O detetive pergunta para a jovem “Onde você está agora?”, ao que ela responde “Aqui, com você”. É tudo o que podem saber. É tudo do que podem ter certeza. Na encenação diabolicamente arquitetada pelo marido da jovem surge, contrariando todas as possibilidades lógicas, a mais assombrosa Verdade: é que o detetive passa a amar a mentira, tão bem ela foi contada.
E o que é essa relação se não aquilo que nós mesmos (o público) estabelecemos com esse filme, com a arte em geral? Pois há séculos e séculos a humanidade se põe diante de obras de arte, conscientes de sua mentira, de seu universo ficcional, e se deixa envolver tão completamente em sua teia de invenções que nessas grandes histórias encenadas acabamos por nos deparar com o mais essencial de nós mesmos.
A pergunta é longa e complexa, e a mim só resta reconhecer humildemente a minha incapacidade para respondê-la frente a genialidade da maior obra-prima do Deus Alfred Hitchcock.

domingo, 29 de agosto de 2010

The Wonder




Há algo de intuitivo na forma como me relaciono com as obras de arte. Explico: há algo em certas coisas que eu nunca havia visto e que, eu sabia, quando eu visse mudariam a minha vida. Poucas vezes, creio, eu me enganei a esse respeito; e um desses grandes encontros se deu quando eu comecei a assistir Anos Incríveis.
Nos primeiros segundos do primeiro episódio, ouvindo a narração de um homem adulto se lembrando dos seus 12 anos enquanto imagens do emblemático ano de 1968 passavam na tela, eu senti que ali havia muito de mim.

Muitas vezes ouço discussões sobre como as inclinações pessoais de cada pessoa influenciam o seu juízo sobre as mais diferentes formas artísticas, e sou um ferrenho defensor de que o trabalho mais árduo de um crítico está em conseguir separar o valor estético/artístico de uma obra de suas preferências subjetivas. Perdoem-me, mas me é impossível fazer essa separação quando se trata de Anos Incríveis. Quando o homem adulto me diz que o verão de 68 foi “my last Summer of pure and unadulterated childhood”, e Joni Mitchell começa a sussurrar sua obra-prima Both Sides Now (“I’ve looked at life from both sides now, from up and down, still, somehow, it’s life’s illusions I recall, I really don’t know life at all”), embalando as imagens de uma câmera amadora que registram as brincadeiras de Kevin, aos 12 anos, uma atmosfera de nostalgia (doçura e melancolia) me invade e eu sou transportado para o tempo da fantasia, da memória.

Com uma direção terna (que sempre trata os personagens com afeto, afinal os vemos pelos olhos de alguém que os ama), genialidade no texto (o casal Carol Black e Neal Marleans são os mestres por trás dessa poesia) e sensibilidade (“capacidade de captar ou transmitir impressões capazes de causar emoção”, me diz o dicionário) na combinação desses dois elementos Anos Incríveis vem chegando, como a música de João Gilberto, com delicadeza e doçura e me envolve em tal nível de arrebatamento que se tornou costume, com o passar dos episódios, que eu chorasse sem ao menos sentir que as lágrimas saíam, calmas e sinceras.

Como o primeiro beijo de Kevin e Winnie (the girl next door e grande amor da vida do protagonista): depois de ter sua vida absurdamente abalada por um tragédia na qual Kevin não consegue encontrar sentido (a morte do irmão mais velho de Winnie no Vietnã, o cara que era “the definition of cool”), ele procura por sua amiga e a encontra num bosque que terá, para sempre, o significado do momento em que as coisas em sua vida mudaram.

Eis o que vemos: uma menina de 12 anos abraçando as próprias pernas, se balançando levemente, olhando para o céu, chorando sua perda. Um menino da mesma idade se aproxima, ele sente muito pelo que aconteceu, ele a envolve com seu casaco, silêncio dos dois. Abraçados, juntos, sozinhos, se olham, se beijam, se apóiam. A imagem congela, se torna uma fotografia, se revela em todo o seu poder de memória definitiva e definidora.

Eis o que se passa: a dor está sendo compartilhada, é a construção de uma cumplicidade de seres que pela primeira vez se deparam com o absurdo violento que pode ser a vida, diante de tamanha tragédia lhes resta o que resta a todos nós quando temos 12 anos e algo de terrível acontece: ficarmos um ao lado do outro e dividir o choro que não entendemos, que nunca entenderemos.

Eis o que sinto: que nos turbulentos “years of wonder” pelos quais todos nós passamos sempre há essas pequenas cenas, esses emblemas de compreensão, amizade e beleza; esses fechos de luz sem os quais não se passa pela vida. Vem a gratidão, as lágrimas já desciam fazia algum tempo mas só agora me dou conta delas. Percebo que foi um grande encontro, percebo que não serei mais o mesmo.

Anos Incríveis é a maior prova de que a poesia (o elemento poético que permeia toda obra de arte) pode chegar a nós através de todo e qualquer meio. Nesse caso trata-se de uma série que longe de se acanhar de ser TV, faz questão de ser Grande Obra de Arte dentro dos limites da televisão. Em suas 6 temporadas que se ocupam das mudanças exteriores e interiores do mundo de um garoto que todos nós fomos (oferecendo as mais belas definições de amizade, amor, família e infância) passamos por um tour-de-force que tem plena consciência da força que o processo evolutivo de personagens, narrativa e poética podem ter quando há total comprometimento pela construção de um mundo inteiro a longo prazo. O que me leva a mais um superlativo: a experiência de assistir ao último episódio da série (chamado Dia da Independência) teve o impacto do momento em que percebi que é inevitável dizer adeus a certas coisas que amamos, deixando-as para trás para seguir em frente - sempre condenados e agraciados com a possibilidade de olharmos para trás, na tentativa de compreender o que se passou nesses anos: O que mudou? O que ficou? O que morreu?

A definição deste período da vida, da forma como Kevin se lembra desses anos é dada, como não poderia deixar de ser, pelo próprio personagem, ao se recordar da vez em que desistiu de praticar piano por acreditar que mesmo tendo talento, jamais chegaria a ser o melhor: “I never did forget that night. I remember the light glowing from Mrs. Carples window. And I remember the darkness falling as I stood there in the street listening. And now, more than 20 years later, I still remember every note of the music that wondered out into the still night air. The only thing is I can’t remember how to play it anymore”.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Cinema: artifício, encenação, ilusão, verdade, imagem – Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock.




Qual o poder de uma imagem? Uma mulher loira, vestida de verde, olhar melancólico, sempre tão sozinha: é ela a imagem. Mas que verdade se esconde atrás dela? Ou que verdade pode-se enxergar através dela?
Alfred Hitchcock foi um desses artistas que são a definição perfeita de sua linguagem, e a linguagem de Hitchcock era o cinema, ele era, portanto, um apaixonado pela Imagem. Como os assassinos e criminosos de outros tipos que tantas vezes retratou em seus filmes, Hitchcock era um Mestre em criar uma cena e fazer com que o espectador enxergasse naquela encenação apenas o que o diretor queria lhe mostrar. Rei da manipulação.
Mas o que acontece quando os artifícios que provocavam a ilusão são expostos àqueles que estavam sendo manipulados? O que acontece quando a imagem que era “falsa” é tão brilhantemente concebida que chega a criar um sentimento legítimo? O que acontece quando esse sentimento é o amor?
Um filme de desesperados e obcecados, Um Corpo que Cai abre a ferida de um homem que amou tanto a mentira que nela encontrou a mais pura e eterna verdade. Para cada um de nós essa mentira recebe um nome diferente, para Hitchcock essa "vertigem" se chamava Cinema.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Animar a Ação, eis a ANIMAÇÃO



Criar movimento é animação - nisso mora a genialidade das obras de Walt Disney e Pixar.
Enxerguem isso e vocês se aproximarão do coração selvagem dessa arte.
É "visual-storytelling" meus amigos!

domingo, 20 de junho de 2010

Notas de um coração apaixonado




Sempre penso que devia ser incrível aquela época do cinema em que as pessoas podiam assistir as obras-primas de Fellini, Hitchcock, Minelli, Visconti e Charles Chaplin no cinema.
Mas como é igualmente incrível podermos assistir à Toy Story 3 (e todas as animações da Pixar) na tela grande, em uma sala escura.


John Lasseter e seus amigos me fazem chorar como só o Chaplin consegue - que é como se abraçassem meu coração com tanto afeto que ele fica apertado.

Não é impressionante como Ratatouille, UP e Toy Story só possam ser encarados pelo viés das obras-primas que nos mostram que não há limites para uma linguagem (a não ser sua própria liberdade)?

Aliás, Dia & Noite, o curta que antecede Toy Story 3, é um desses momentos em que uma linguagem dá um passo adiante.

Me repugna que as salas de Belém insistam em desrespeitar essas grandes obras impedindo que o público da cidade assista à estas animações no formato 3D no qual foram pensadas. É falta de respeito e consequente falta de amor.

sábado, 19 de junho de 2010

That’s the way to say goodbye



AO INFINITO

A infância deve ser uma das coisas mais idealizadas pelas pessoas em geral e mais reverenciadas pelas artes em particular. Tão idealizada que de vez em quando me pego pensando se esse momento da nossa existência merece tantas reverências, tantas glórias, e a verdade, para mim incontornável, é que quando me encontro encarando uma obra, como esta última animação da Pixar, sinto nos meus ossos que um dos motivos de a arte ter sempre existido na humanidade é a tentativa de resgatar mundos e sensações que todos perdemos pelo caminho. Apontando possibilidades, colocando questões, constatando sentimentos, a arte segue numa reconstrução que é criação e que tem vida própria, mas que sempre ressoa no nosso coração (porque toda grande obra de arte é um coração em forma de linguagem).

E se a infância sempre parece, depois que crescemos, como sendo um mundo à parte de qualquer realidade concreta e lógica, penso que a animação (linguagem que precisa criar, nas questões mais práticas, novos mundos para existir) é a linguagem que mais sinceramente se aproxima e se assemelha à falta de limites características da mente infantil. Não é que o cinema ou a literatura sejam sempre fracassados em representar essa época, mas há algo de sobrenatural no pacto que inconscientemente fazemos quando começamos a assistir uma animação e que naturalmente nos leva para um outro nível de compreensão, para uma nova freqüência de entendimento e de sensibilidade.

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E ALÉM!

Quando eu tinha 6, talvez 7 anos, minha mãe me deu um cavalo de brinquedo. Na época eu não sabia (quem sabe daí é que vinha a força dessa relação), mas o motivo de eu amar tanto aquele cavalo era que sempre que eu brincava com ele eu era levado para outros tantos lugares, que ficavam todos dentro de mim mesmo. Em tantas viagens, tantas aventuras, eu não percebi que estava crescendo e que estava, aos poucos, deixando de viajar, deixando de transportar “os sins desses horizontes” da minha vida.

Eu daria tudo que tenho e um pouco mais para ver, uma última vez, as imagens que minha imaginação de criança (meu espírito ainda livre) criava nessas brincadeiras todas: e a minha eterna gratidão aos gênios da Pixar está em poder reencontrá-las em uma sala de cinema, pelo preço de um ingresso. A obra-prima Toy Story 3 começa com a única imersão que é permitida ao público, durante toda a trilogia, na imaginação de Andy, o garoto a quem fomos apresentados 15 anos atrás, quando esse estúdio começou seu caminho que tantos presentes nos deu nos últimos anos. E, eu sei, representar a imaginação de um criança não é fácil, e a perfeição desta representação (que passa da categoria de símbolo para a da coisa em si) é apenas um dos pontos que fazem desta animação a grande obra de arte que é.

Como Rastros de Ódio, Toy Story é um épico – esta será sempre sua proporção – e como os grandes épicos esta obra irá se debruçar sobre grandes temas: lealdade, saudade, finitude, amizade. E se as duas primeiras animações construíram (fantasticamente) o mundo compartilhado por crianças e brinquedos, evidenciando a grandeza dessa relação, esta terceira sequência trata com inevitável afeto do fim deste universo.

Andy está indo para a faculdade, seus brinquedos acumulam poeira e estão eternamente condenados ao amor incondicional por seu dono; nas palavras do já lendário John Lasseter, na visão de um brinquedo “quando você está quebrado, pode ser consertado; quando você está perdido, pode ser encontrado; quando você é roubado, pode ser recuperado. Mas não há como contornar o momento em que uma criança cresce”. Woody e Buzz Lightyear sabem disso e em sua jornada que vai da aceitação até a melancolia causada pelo aparente abandono somos testemunhas da mais pura e libertária inventividade imagético-narrativa. E por mais coletivo que este trabalho seja não vejo como não direcionar grande parte de minha emoção ao diretor Lee Unkrich, um inacreditável estreante, que sabe da dimensão do material com o qual trabalhou. São sequências como a barbárie das crianças da creche Sunnyside ao encontrar os brinquedos novos, o flashback que explica as origens de Lotso (o urso de pelúcia ditador), os vídeos caseiros que nos mostram o crescimento de Andy (e de todos nós), a união dos protagonistas no momento de sua eminente destruição, que confirmam, consagram e definem os artistas da Pixar como alguns dos grandes contadores de histórias de nosso tempo, em tudo o que isso implica: a criação perfeita de atmosferas (o terror, a melancolia, o humor e a felicidade), a organização sensível e exata das sequências de cenas, que só pode envolver a consciência do poder que uma elipse, um leit motiv, um plano subjetivo e um close-up podem ter e o amor irrefreável por uma linguagem. Lee Unkrich e sua equipe estão, através do perfeito domínio de sua técnica, se colocando ao lado dos verdadeiros gênios (o já citado John Ford, Hayao Miyazaki e Charles Chaplin me vêem à mente). Gênios porque mimetizam na tela a dor e a necessidade da separação entre a infância e a vida adulta, porque nos dão a verdadeira dimensão do ato de oferecer a mão a um amigo, porque nos explicam (com a simplicidade que só pode ser fruto de um trabalho árduo) que a saudade não passa de um desejo de estar sempre junto de alguém.

Assistir à Toy Story 3, à última vez que Andy brinca com seus amigos da vida toda, à seu olhar hesitante e assustado quando percebe que deve se separar de Woody, à ternura caótica do mundo de uma criança e de seus brinquedos é vislumbrar a despedida mais linda, mais libertadora e mais triste que a arte da animação já produziu.

É uma história de brinquedos, é uma história de humanos, é uma história dessa coisa maravilhosa que somos capazes de estabelecer entre nós chamada amizade.