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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Querida Wislawa,

como você está? Espero que bem. Melhorei exponencialmente após ler suas cartas tão carinhosamente feitas especialmente para mim; achei a delicadeza de escrevê-las em forma de poemas cativante e devo dizer que me sinto, de alguma forma, curado do que quer que fosse que estava me devorando.

Me contaram que você não está mais tão por perto assim, aparentemente ocorreu uma grande e irreversível viagem no começo do ano, é isso? Bom, tanto eu quanto você sabemos que entre nós dois não existe distância irreversível, sua mão está sempre ao alcance da minha e, também por isso, obrigado.

É preciso confessar o alívio que você me provocou ao mostrar que, no que diz respeito a expressão, não existe tanto assim o que gostamos tanto de chamar de "barreiras da tradução". Eu, olha que engraçado, sempre me considerei refém da tradução e foi preciso suas cartas para me mostrar que o essencial realmente não está na palavra. Sabe, fazia um tempo eu suspeitava que nem tudo era morfologia nesse mundo, pois você foi a confirmação disso - porque sempre que leio (e te garanto que já li e reli muitas vezes) "Tem uns quarenta anos, mas não agora", sei que há algo tão maior que o "tem" o "uns" o "quarenta" o "anos" a "," o "mas" o "não" e o "agora", algo maior ainda do que a junção dessas palavras, algo maior ainda que o feixe de luz que perpassou sua mente ao descobrir esse verso.

Há algo maior, querida Wislawa.

Há algo maior que o Vietnã naquele "- São" de uma mulher sem memória, há algo maior n'"A vingança da mão mortal", do que uma mão e um lápis, há algo maior do que a rima, a métrica, a técnica. Maior do que você Wislawa (que é uma mulher gigante), algo que foge do seu controle, como também fugia ao controle de Breton, de Duras, de O'Connor.

Acho que uma folhinha voou de mim até você, ou que sua bola se perdeu em algum arbusto da minha infância, ou ainda que tentamos entrar na mesma pedra só para procrastinar ainda mais a cruel e insensível tarefa de redigir um currículo.

Procrastinar com você foi tão bom que pareceu, em certos momentos, com criação.

Me escreva mais, certo? Algo me diz que ainda vou precisar muito do efeito de flutuação que suas palavras provocam em mim. Prometo sempre responder, não importa se de formas inteligíveis, como você bem sabe.

Te amo Wislawa, 
e já estou com saudades.

Felipe.


quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Flannery O'Connor - cuidado com essa ameaça


Flannery O’Connor é malvada.

Sério, puro fel.

Demoníaca.

Manipuladora.

Gênia.

Escreveu uma obra que perverte a mente humana, ou seja, instiga-a. Pra ler Flannery tem que ter culhão e coração. Ela exige muito, exige tudo – pra no final nos lembrar que o prêmio por tanto esforço é sempre um saco cheio de desespero.

Essa literatura do soco no estômago não começa nessa católica recalcada, mas nela alcança uma espécie de ápice do mal-estar, uma poética da desrazão. O’Connor é dessas que enxerga a natureza como caos, nunca como harmonia. E não qualquer caos, mas caos violento, sanguinário, cruel. Mas tudo bem, isso é apenas uma visão de mundo, não garante nenhum qualidade estética. Mas aí acontece isso aqui:

 “Sentada no degrau, agarrada ao balaústre, pouco a pouco ela recuperou o fôlego, respirando em doses mínimas, e a escada parou de balançar como gangorra. Só então abriu os olhos. Voltou-os lá para baixo, lá para o fundo, lá para o buraco negro de onde ela mesma, há tanto tempo, tinha vindo. E disse: ‘Boa sorte’, dizendo-o numa voz cavernosa que ecoou nos vários níveis do poço, ‘neném’.
Maliciosamente os três ecos repetiram: ‘Boa sorte, neném’.
Mais uma vez ela reconheceu a sensação tão ligeira de coisa que se mexia. Era no entanto como se não fosse em seu ventre. Parecia mais um nada que ainda estava em nenhures, estando em repouso e à espera, na plenitude do tempo”. (Um Golpe de Sorte)

E o leitor pensa “como essa mulher faz uma descoberta de gravidez ser tão arrasadora???!!!”, é, isso é a Flannery O’Connor. Toda palavra é melifluamente ajambrada para que seu sentido comum seja pervertido até que se alcance a perfeita forma da palavra-ameaça – pois para O’Connor é a palavra o seu revólver, é com ela que Flannery ameaça, intimida e, constantemente, assassina. O gênero dessa literatura? Chamem de contos à La Lady Macbeth ou Histórias pra Mefistófeles dormir, não sei. Do gênero, realmente não sei. Assim como não sei do gênero de A Paixão Segundo G.H., Os Irmãos Karamazov, Moby Dick, porque como Lispector, Dostoievski e Melville, O’Connor só chegou até a palavra para estuprá-la e destruí-la – enquanto sorri diabolicamente com a verdade em suas mãos.

Falam muito sobre “representação do Sul dos EUA”, “realismo norte-americano”, “crítica social severa” quando Flannery está em pauta. Ainda não vi falarem do que mais me impressionou e transformou: que o verdadeiro e único lar da literatura brutal de O’Connor é nosso epicentro egocêntrico e tenebroso que nos acostumamos a chamar de alma, apenas isso. Alma que tudo traga para si, até que não aguenta tanto peso e morre. Ou não, pois até isso pode nos ser negado pela natureza:

“A ave brava que pairava sobre sua cabeça, numa espera misteriosa, durante os anos de sua infância e os dias da doença, pareceu de repente se mexer. Asbury descorou, e a última camada de ilusão, como que num redemoinho, foi-lhe arrancada dos olhos. Ele viu que pelo resto dos seus dias, frágil e atormentado, mas resistindo, teria de viver sempre em face de um purificante terror. Um grito fraco, derradeiro e impossível protesto, escapou-lhe ainda. Mas o Espírito Santo, blasonado em gelo, e não em fogo, mantinha-se a baixar, implacável”. (O Calafrio Constante)

Como Lúcifer, Flannery O’Connor não dá descanso aos condenados que escolhem entrar em seu inferno. Repito, não há recompensa a não ser desespero. Me ouçam: NÃO LEIAM ESSA MULHER.

quinta-feira, 22 de março de 2012

A Beleza do Desespero




Certos livros dariam origem a uma religião. Não é sempre, mas de vez em quando acontece de um livro ser mais que Literatura, ser mais que rigor, mais que um autor – esse fenômeno, esse milagre, exige muito para acontecer: exige o pulo sem volta no abismo do absurdo, onde não existe ego, não existe organização, não existe dominação, tudo é na única forma em que as essências conseguem ser, caos.

Moby Dick é, dessa forma, incontornável.

Como Os Irmãos Karamazov e A Montanha Mágica, Moby Dick entrega ao leitor um itinerário para sua própria alma, um mapa para os tortuosos caminhos do espírito. Herman Melville, o profeta dominado pela graça da prosa deste livro sagrado, sintetiza o indescritível, captura o inenarrável – faz Grande Literatura, enfim.

Nas páginas da odisseia de Ahab e seus escravos o leitor depara-se com um dos embates ancestrais da arte literária: a prosa x a poesia, a racionalização x a abstração, a inteligência x o incompreensível. O absurdo que a terrível baleia branca personifica jamais poderá ser inteiramente dominado pela determinação sistemática e doentia de Ahab, personagem que desde sempre já perdeu a batalha em que transformou sua existência. Da mesma forma, Melville luta bravamente ao impor uma narrativa clara e objetiva a um universo prenhe do mais incontrolável desespero, da mais tirânica sensibilidade. Enquanto acompanhamos o diário de um observador (que vai, lentamente, ser tragada pelo redemoinho de loucura e devaneio do Peacock) assistimos a prosa de Melville sucumbir ao poder fascinante da poesia, quando afirma, por exemplo, que “a mente não existe senão atada à alma” (p. 225), ou ainda quando faz com que a pessoa antes tão compacta e sólida de Ahab vá se deteriorando até chegar ao ponto que “Ahab nunca pensa; apenas sente, sente, sente; isso já é bastante tormentoso para um mortal! Pensar é audácia. Só Deus tem esse direito e privilégio” (p. 582).

Como os grandes épicos haviam ensinado (e aqui nos deparamos com os inevitáveis Ilíada, Odisseia, A Divina Comédia) a pretensa separação de prosa e poesia é um fracasso anunciado – às vezes de uma forma mais declarada (Virginia Woolf, William Faulkner, Raduan Nassar, Guimarães Rosa), às vezes de uma forma mais “discreta” (Cervantes, Graciliano Ramos, Flanney O’Connor, Dalton Trevisan) a poesia sempre encontra um caminho de contaminar, de infectar, a idealizada objetividade da prosa.

Temos, então, um livro que muito tem a dizer para a Literatura enquanto arte, enquanto expressão, enquanto pensamento e enquanto religião, profissão de fé. Como todo grande livro, Moby Dick é, em si mesmo, um mundo completo, onde só há espaço para a mentira legitimada da ficção, que alcança uma verdade jamais possível para a verossimilhança.




terça-feira, 5 de abril de 2011

Vestígios do dia




Um dia a muito incisiva e devotada a Tchekhov Virginia Woolf se perguntou: o que haveria no romance se não houvesse narração? O que haveria num romance que fosse inteiramente construído sobre impressões, sussurros, incertezas?

O que poderia ser capturado se de um abraço só se revelasse o ímpeto das mãos? Se de uma perda trágica só se desvendasse uma porta batendo? Se de um amor impossível só se soubesse alguns passos solitários no meio da madrugada?

O que resta à ficção quando não lhe resta quase nada? Virginia respondia sorrindo: resta o essencial.

Poucos são os artistas que conheço que foram tão autoconscientes do papel que exerciam na História de sua linguagem quanto Virginia Woolf. Nenhum usou tão bem quanto ela esta autoconsciência para encontrar sua própria voz.

Como Ego amava comida, Virginia amava Literatura. E como o crítico de Ratatouille, se ela não Amava, ela não engolia. Principalmente quando se tratava de suas obras.

Em um livro essencial de ensaios seus, ela nos fala da melhor forma que existe de dimensionarmos o trabalho de um escritor: ao fim do dia pense em tudo que aconteceu, colete suas impressões e sensações, suas certezas e reflexões; pegue esse amontoado de pensamentos e abstrações e tente dispô-los em ordem de forma a despertar algum interesse; tente encontrar alguma unidade em tudo o que você quer expressar, tente relacionar uma coisa com a outra e produzir desse encontro algo significativo. Claro que não demora muito para entendermos que o trabalho (como não poderia deixar de ser) é árduo. Virginia mostra, de maneira praticamente irrefutável, que Literatura não é lugar para despejar impressões do dia, nem para exibir habilidades estilísticas: no livro não há espaço para desonestidade e vaidade, pois a Arte para Virginia estava acima do homem (ou pelo menos o fazia entrar em contato com algo que o transcende) e não poderia se subordinar a coisas tão pequenas quanto ego e orgulho.

Não se engane o desavisado: para esta inglesa não havia tema menor ou maior; havia, isso sim, obras que encaravam a Literatura de frente e obras que tentavam driblá-la a qualquer custo. Ora, se não era o bastante uma cabeça cheia de impressões e nem uma técnica cheia de recursos, do que se tratava a Literatura então? Para Virginia, só fazia sentido falar em Arte quando se falava em percepção estética das coisas. Um livro só seria absolutamente necessário (artisticamente falando) quando o artista era capaz de trazer suas impressões e sua técnica para a obra à luz do senso estético que está (ou deveria estar) acima de qualquer outra questão.

O que se pode fazer com essas informações? Dar-se conta que, provavelmente, havia apenas uma coisa que Virginia valorizava tanto quanto o ato de desafiar sua linguagem: e eram os momentos de não-existência de que ela tão insistentemente falava em seus diários.

Estes momentos, comumente perdidos dentro de nossa memória que prefere selecionar e eleger instantes de maior “arco dramático”, pensava Virginia, deveriam ser de alguma forma resgatados para que ao nos depararmos com personagens e narrativas que acontecem quando ninguém está olhando pudéssemos enxergar o que os quilos de costume e repetição cotidiana nos impedem de ver. Essa escolha já não se tratava de definição categórica, mas de caminho pessoal e intransferível. Woolf sabia que era disso que precisava falar; e foi incansável na marcha incessante de trabalho e insistência que a levaram até seu estilo definitivo.

E o que seria esse “estilo definitivo”? Como Tarkovski, Virginia Woolf passou toda sua vida esculpindo o tempo. O Quarto de Jacob, Mrs. Dalloway, Orlando, As Ondas, Entre os Atos, são narrativas que obrigam seus personagens a deparar-se e debater-se com a indiferente passagem do tempo (que Virginia se especializou a dilatar e a concentrar a seu bel-prazer). É em Ao Farol, no entanto, que se dá o momento mais inacreditável do gênio de Woolf. Para quem já leu Mrs. Dalloway ou Orlando ou As Ondas, não encare essa afirmação como menosprezo a essas outras obras-primas, mas sim como um meio de dimensionar toda a amplidão desta obra da onde ninguém sai ileso.

Dividido em três partes (“A Janela”, “O Tempo Passa” e “O Farol”) Ao Farol é a obra em que a parcimônia e a delicadeza de Woolf mais abalam as fundações da ficção. Três dias se passam na vida da família Ramsay, entre cada um desses dias vários anos correm e várias mudanças ocorrem. Tudo muda em um movimento que, por fim, se revela circular. Na primeira parte somos apresentados a uma família numerosa que está de férias em uma casa de verão hospedando alguns convidados. Um dos filhos quer ir ao farol, um pedido de casamento pode estar acontecendo, uma pintora sem muitos atrativos físicos se torna cada vez mais invisível, Mrs. Ramsay (esposa e anfitrião perfeita) circula entre as várias pequenas esferas sociais que colidem em sua casa sempre destilando angústias e cultivando receios. Ocorre, então, quando Mr. Ramsay observa sua esposa que observa o farol, um dos momentos mais arrebatadores da literatura de Woolf:

“Getting up she stood at the window with the reddish-brown stocking in her hands, partly to turn away from him, partly because she did not mind looking now, with him watching, at the Lighthouse. For she knew that he had turned his head as she turned; he was watching her. She knew that he was thinking, You are more beautiful than ever. And she felt herself very beautiful. Will you not tell me for once that you love me? He was thinking that […]. But she could not do it; she could not say it. Then, knowing that he was watching her, instead of saying anything she turned, holding her stocking, and looked at him. And as she looked at him she began to smile, for though she had not said a word, he knew, of course he knew, that she loved him. He could not deny it. And smiling she looked out of the window and said (thinking to herself, Nothing on earth can equal this happiness) - ”

Mr. e Mrs. Ramsay (não sabemos seus primeiros nomes) tornam possível um diálogo de monólogos nessa passagem. Se o conceito de monólogo interior em si nem se quer pode ser chamado de moderno (alô Homero!) o jogo de comunicação a partir da incapacidade de se comunicar que Virginia propõe aqui é atordoante. Por que? Ora, como pode alguém utilizar a incapacidade de dizer “eu te amo” justamente para trazer à tona a potência de todo o amor inexprimível? Como pode alguém correr tão livremente entre discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre sem jamais permitir que o leitor se perca dentro de um mar de pontos de vista? Como pode alguém encerrar uma parágrafo desta extensão, em que nenhuma palavra foi dita, no momento em que a personagem se atreve a dizer alguma coisa justamente para sublinhar que tudo que havia de essencial a ser transmitido já foi percebido? Como mensurar o tamanho da prova de amor de que somos testemunhas e que faz com que a sempre recalcada e agradável Mrs. Ramsay pense consigo que nada no mundo pode se igualar àquela felicidade?

É dessa mulher que estamos falando. Desta mulher capaz de mostrar que, se ela se revolta com a vaidade de um Joyce ou com as reclamações de uma Charlotte Brontë, é porque a Literatura existe para que se alcance instantes como este: e há muito tempo que já não se trata de escolher temas grandiosos ou pequenos (ela aprendeu muito bem com Tchekhov e Austen que existe tensão e interesse em tudo que é humano), ou seguir formas testadas e aprovadas por classicistas, românticos, realistas e outros etceteras – é preciso que o artista chegue o mais próximo possível de uma sinceridade que só permita a expressão que é necessária. Sim, esta é uma das autoras mais rigorosas da Literatura. Como afirmou Auerbach, em seu famoso artigo sobre Ao Farol chamado “A Meia Marrom”, Virginia traz o ato de entrelaçar fios soltos para a produção de uma colcha de retalhos para a sua literatura. Ela estava sempre, em maior ou menor grau, trabalhando a partir desse conceito.

Na dispersão das pequenas evidências do dia ela enxergava a essência que define, problematiza e esconde o indivíduo (como é repetido incessantemente em Mrs. Dalloway: “um dia em sua vida, e nesse dia toda a sua vida”). É a reação grosseira de Mr. Ramsay ao pedido do filho de ir ao farol que joga uma luz trêmula sobre aquela relação estremecida, é a insistência de Mrs. Ramsay em estar sempre ocupada a proporção de sua solidão, é a obsessão de Lilly (a pintora) com seu quadro que nunca fica pronto o único meio que ela encontra de se fazer existir. São os dias perdidos de infância e de coisas que jamais esqueceremos que aconteceram porque elas se tornam aquilo que somos e poderemos ser.

Por mais admiradora que tenha sido de Jane Austen e Tolstoi, Virginia decide-se por essa interiorização da narrativa da qual, aparentemente, ninguém conseguiu escapar no século XX. No caso dela (levando em consideração os dois fracassos criativos que são seus dois primeiros romances – justamente aqueles em que ainda se aventura por um realismo clássico) não resta dúvidas de que esta não é apenas uma escolha intelectual, mas também, e principalmente, sensível e moral. Sensível por ser a forma como sua percepção se dá; moral porque ela sabe que não seria sincero da parte dela escrever de outra forma.

É essa busca pelo interior, pelo despercebido, pelo escondido que leva Woolf até a maior ousadia que propôs em sua obra ficcional: a segunda parte de Ao Farol – “O Tempo Passa”.

A casa de verão, que conhecemos cheia de personagens, cheia de vida, está vazia. O verão acabou e não é possível saber ao certo quantos anos se passaram.

“So loveliness reigned and stillness, and together made the shape of loveliness itself, a form from which life had parted; solitary like a pool at evening, far distant, seen from a train window, vanishing so quickly that the pool, pale in the evening, is scarcely robbed of its solitude, though once seen. Loveliness and stillness clasped hands in the bedroom, and among the shrouded jugs and sheeted chairs even the prying of the wind, and the soft nose of the clammy sea airs, rubbing, snuffling, iterating, and reiterating their questions – ‘Will you fade? Will you perish?’ – scarcely disturbed the peace, the indifference, the air of pure integrity, as if the question they asked scarcely needed that they should answer: we remain.”

É esta segunda parte a favorita de Woolf. É onde ela toca mais profundamente em toda a impessoalidade temporal que sempre trouxe para suas narrativas. Impessoalidade que aqui se materializa pela escolha de fazer com que o tempo não passe para ninguém a não ser para ele mesmo. Virginia expõe o que significa para o próprio tempo a sua passagem; eleva-o de circunstância a personagem, de advérbio a sujeito. Ele não apenas muda o entorno como se transforma. Como ela mesma diz neste trecho, a visão que temos da casa vazia é como a visão de uma piscina a noite, distante, vista de um trem em movimento, que esvanece tão rapidamente quanto o trem passa. E não seria assim que o próprio tempo enxerga as coisas pelas quais passa e as quais transforma? São estes instantâneos de quando piscamos os olhos enquanto corremos que interessam. São esses milésimos definitivos que devem ser eternizados.

Se só é possível considerarmos qualquer essência quando ela se dá através de uma existência, Woolf faz o grande salto em direção ao abismo do auto-entendimento ao se voltar para aquilo que proporciona a existência de todas as essências; aquilo que torna possível ser também é, e para que assim seja é preciso que se dê. E quando Virginia resolve que não vai mostrar personagens envelhecendo para explicitar como o tempo se dá, mas sim expor toda a pressão que a transformação de hoje em ontem exerce sobre coisas que não podem reagir (as cadeiras cobertas por lençóis, os quartos vazios e empoeirados) é que ela oferece a possibilidade de expressar o puramente concreto através do absolutamente abstrato. E por mais repetitiva que essa escolha pareça (qualquer um pode dizer que os poetas fazem isso há séculos e séculos) é difícil ignorar as consequências que ela provoca na estrutura da Narrativa.

Quando abole personagens, enredo e clímax, Virginia não está acabando com o que conhecemos enquanto romance – está expandindo-o.

Como terminar?

Na terceira parte (“O Farol”) a família Ramsay volta àquela mesma casa. Finalmente concretiza-se a viagem que havia começado a ser planejada tantos anos antes. As ausências são muitas e a maioria das mortes nos foi informada entre parênteses. Do muito que passou quase nada mudou. É quando Lilly resolve voltar ao quadro que, faz tanto tempo, ela começou. É quando Lilly percebe que toda aquela existência na qual foi jogada não se pode transpor para a tela através de linhas realistas, de cores harmônicas, de uma composição sólida. Foi tudo tão transitório, foi tudo tão diluído.

Enquanto observa a família Ramsay finalmente chegando ao farol, Lilly é assaltada por um pulo em seu peito:

“But what did that matter? she asked herself, taking up her brush again. She looked at the steps: they were empty; she looked at her canvas: it was blurred. With a sudden intesity, as if she saw it clear for a second, she drew a line there, in the centre. It was done; it was finished. Yes, she thought, laying down her brush in extreme fatigue, I have had my vision."

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A razão e a sensibilidade de uma mente confinada





É uma verdade universalmente conhecida que um escritor em posse de grande talento deve estar à procura do mundo ficcional ideal para expressar sua capacidade estética/criativa. Homero foi o poeta dos conflitos entre Homens (o efêmero) e Deuses (o perene); Shakespeare não resistia em chafurdar o constante descompasso entre o que deveríamos fazer moralmente e o que temos que fazer emocionalmente; Dostoievski tinha fascínio pelo crime e sua conseqüente violência – já Jane Austen só precisava de uma sala de estar e duas pessoas tomando chá para mostrar do que era capaz seu gênio artístico.

Um dos principais exemplos de como uma vida condicionada a um mundo extremamente limitado pode se expandir através da amplitude da linguagem, na sua reclusão de inglesa recatada e contida, Austen aprendeu a desnudar seus personagens enquanto tomavam café da manhã ou atendiam a qualquer tipo de compromisso social. Cercada de um mundo onde as boas maneiras eram infinitamente mais importantes do que a boa conduta, Austen se tornou mestre em dissimular com fina ironia todo o ridículo que atribuía àquela sociedade feita de pura encenação e recalque.

Talvez por sempre ter sido ensinada a não ser explícita em suas opiniões (ou seja, a ser “agradável”), esta inglesa tenha conseguido desenvolver a rara capacidade de criar diálogos que esclarecem seus personagens ao mesmo tempo em que os aprofundam e problematizam, sem, para tanto, abrir mão de um dos grandes prazeres que tenho ao ler seus livros: o de estar sempre dominado pelo seu poder de sugerir.

Como uma de suas heroínas mais famosas (a mimada Emma, protagonista do livro homônimo) é fácil dizer que Jane Austen desperdiça sua capacidade de observação e seu senso de humor ao tratar de assuntos tão pueris quanto moças às voltas com sua obsessão em casar, ou mulheres que se submetem às ligações mais desagradáveis para garantir sua sobrevivência social. Para os fanáticos por temas “grandiosos” ou para os que têm fobia a artistas que assumem abertamente a preferência por certo assunto, Austen é um prato cheio. Mas para aqueles que se interessam pelo deleite que a Literatura é capaz de proporcionar não haverá a menor dificuldade em perceber o que esta inglesa foi capaz de fazer dispondo de tão pouco, sendo tão inigualável no que fez que mesmo um gênio como o de Virginia Woolf conseguiu pouco mais do que imitá-la em seus dois primeiros romances.

Com uma ironia que faria inveja a Jonathan Swift, um dos mestres desse recurso, Austen era capaz de criar personagens igualmente reprováveis e fascinantes (sua Elizabeth Bennet ou sua Anne Elliot não perdem em nada para Emma Bovary ou para Júlia d’Aiglemont). Sempre escrevendo como se estivesse sendo absolutamente explícita, Austen guardava para os mais atentos pequenas pistas nas entrelinhas que evidenciam o trabalho árduo a que um artista se submete quando opta por representar apenas aparências para tratar daquilo que é essencial e inevitavelmente interior. Vejamos o início de Emma:

“Emma Woodhouse, handsome, clever, and rich, with a comfortable home and happy disposition, seemed to unite some of the best blessings of existence; and had lived nearly twenty-one years in the world with very little to distress or vex her.
She was the youngest of the two daughters of a most affectionate, indulgent father, and had, in consequence of her sister’s marriage, been mistress of his house from a very early period. Her mother had died too long ago for her to have more than an indistinct remembrance of her caresses, and her place had been supplied by an excellent woman as governess, who had fallen little short of a mother in affection.”

Nesses dois parágrafos, como o leitor perceberá ao fim do romance, Jane Austen já dispõe tudo o que a interessa nessa personagem: sua aparente felicidade, a valorização de certas circunstâncias como ideais para que alguém seja feliz, a ausência da mãe, a indulgência do pai e o amor quase maternal de uma governanta. E, se Austen sempre é educada, ela é na mesma medida impetuosa – ridiculariza Emma ao mesmo tempo em que a afaga, mostra como ela é digna de pena ao mesmo tempo em que observa sua inteligência emocional; o que nos leva a uma das maiores qualidades dessa escritora: ela não faz de seus romances diários, em que encontraríamos pouco mais do que confidências e histerismos pessoais; Austen está interessada no humano, naquilo que ele tem de falso e mesquinho e naquilo que ele tem de legítimo e belo. Simplificar situações e personagens seria a morte de um autor que pretende a crítica social e a investigação psicológica, e Jane Austen faz o contrário de simplificar: ela parte de situações absolutamente triviais para chegar ao núcleo duro e disforme de seus personagens. Como Tchekhov (só que quase 70 anos antes) ela tece suas narrativas com as mais anticlimáticas situações e extrai delas uma dramatização que está sempre a serviço da objetividade ambígua de sua mente zombeteira e sensível.

Em Persuasão, seu último romance, há demonstrações claras de que ela não era excepcional apenas na criação e no desenvolvimento de personagens (que grande dramaturga teria sido), mas também na descrição de lugares e situações, e na união da capacidade descritiva, narrativa e dramática em trechos como o que segue:

“Elizabeth did not quite equal her father in personal contentment. Thirteen years had seen her mistress of Kellynch Hall, presiding and directing with a self-possession and decision which could never have given the idea of her being younger than she was. For thirteen years had she been doing the honours, and laying down the domestic law at home, and leading the way to the chaise and four, and walking immediately after Lady Russell out of all the drawing-rooms and dining-rooms in the country. Thirteen winter’s revolving frosts had seen her opening every ball of credit which a scanty neighborhood afforded; and thirteen springs shewn their blossoms, as she travelled up to London with her father, for a few-weeks’ annual enjoyment of the great world. She had the remembrance of all this; she had the consciousness of being nine-and-twenty, to give her some regrets and some apprehensions. She was fully satisfied of being still quite as handsome as ever; but she felt her approach to the years of danger, and would have rejoiced to be certain of being proper solicited by baronet-blood within the next twelve-month or two. Then might she again take up the book of books with as much enjoyment as in the early youth; but now she liked it not. Always to be presented with the date of her own birth, and see no marriage follow but that of a youngest sister, made the book an evil; and more than once, when her father had left it open on the table near her, had she closed it, with averted eyes, and pushed it away.”

Aqui Jane Austen não se limita a descrever o decorrer de treze anos e o contexto em que o passar desse tempo se deu, ela utiliza essa passagem cronológica (que poderia ser puramente informativa-descritiva) para aprofundar a inércia da situação de Elizabeth (tornando-a expressiva-dramática), trazendo à tona o sutil sufocamento que a rotina cíclica de bailes no outono, clausura no inverno e Londres na primavera causam na personagem. É em Persuasão também que Austen parece mais decidida a mostrar como as convenções sociais inglesas e a forma dissimulada como essas convenções determinavam a vida de todos que queriam “pertencer a sociedade” eram patéticas, cruéis e sem sentido. É o seu livro mais “amplo”, por assim dizer. É onde mais se fala do mundo que existe para além das fronteiras da chuvosa ilha britânica, é onde o amor já veio e já passou e agora só resta a sensação outonal (melancólica e serena) da maturidade solitária, é o livro que Austen tem mais compaixão por sua protagonista, mas também o romance em que ataca e critica mais duramente os personagens que a rodeiam. Poderia se dizer que se trata de uma obra “madura”? Sim, mas sem jamais utilizar essa maturidade para colocar Persuasão acima de Orgulho e Preconceito ou Emma. Se em seus romances anteriores entrávamos em contato com uma juventude solar e debochada, em Persuasão nos deparamos com um mundo mais sóbrio e ressentido – e parte da grandeza de Jane Austen está em ter escrito sobre momentos tão distintos da vida com igual objetividade, inteligência e sensibilidade. Era uma mulher que conhecia tanto o frescor promissor da primavera, quanto a beleza monocromática do outono.

A irônica, a objetiva, a inteligente, a sensível, a hilária, a crítica, a genial Jane Austen morreu deixando a pergunta que Virginia Woolf fez a quase um século e que ainda me ocorre com freqüência: o que ela teria feito se tivesse continuado a escrever? Se não tivesse morrido aos 42 anos? Se tivesse vivido para acompanhar o impacto que seus livros tiveram na literatura européia? Para Virginia ela teria começado o Modernismo 80 anos antes dos russos e de Marcel Proust. Eu continuo dizendo que não sei o que teria acontecido; mas não me ressinto nem um pouco de sua morte prematura, pois o que mais eu poderia pedir para alguém que já me presenteou com Orgulho e Preconceito, Emma e Persuasão? Me resta dar em troca a única coisa que posso oferecer: reconhecimento.


Obs: Dedico esse texto a Ingrid, que foi quem fez eu começar a ler Jane Austen. Muito obrigado!

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Com açúcar, com afeto




Eu tinha saído da casa dos meus pais e não tinha conseguido passar nos vestibulares que tentei quando o Dumbledore morreu. Quando Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado voltou definitivamente para destruir o mundo da magia eu me vi, pela primeira vez na vida, sem saber o que fazer. Foi em 2005/2006, foi quando me encontrei pela última vez com Harry Potter. Nos anos seguintes as coisas, óbvio, mudaram. De distração, literatura se tornou um comprometimento, um trabalho, uma idealização. Vieram tantas pessoas novas e Hogwarts ia ficando cada vez mais distante, pro bem e pro mal.

Caso ainda não tenha ficado claro esse é um texto muito pessoal. E caso também ainda não tenha ficado claro esse é um agradecimento muito humilde. Porque me aconteceu de 5 anos depois eu ter a honestidade de ler a última parte, o último livro, as últimas páginas daquilo que segurou a mão trêmula da minha pré-adolescência: me reencontrei com Harry, Hermione, Rony e todo o resto do pessoal; e foi como reencontrar o abraço da minha mãe depois de um longo tempo fora de casa.

É, eu sei: “mas se não fosse Harry Potter seria outra coisa!”. Mas, ai é que está, Foi Harry Potter, foi a J. K. Rowling a mãe do meu amor pelos gênios que eu encontraria depois; foi Harry, Hermione e Rony meu modelo de amizade pra vida (do lado de Woody e Buzz, Mike e Sully); foi minha vontade de viver outra vida que me fazia tanto querer uma carta de Hogwarts: sempre querendo escapar, sempre; e em Harry Potter todo mundo voava, todos estavam começando de novo e descobrindo em si possibilidades de que não sabiam ser capazes.

É muito bobo. Sou muito bobo. Porque lendo a última parte dessa vida que eu tive não deixei de notar o uso banal de reticências, a arregimentação amadora de alguns acontecimentos, o desenvolvimento superficial de certos personagens, a trivialidade da linguagem: mas quem me dera eu lesse todos os livros do mundo com a paixão e a emoção que me acometeram ao ler esse; quem me dera meus olhos se obrigassem a correr mais rápido pelas linhas para chegar logo a próxima página toda vez que me propusesse a entrada na nova realidade da linguagem; quem me dera eu ainda tivesse a empolgação descompromissada dos meus 12 anos.

Não me entendam mal, se ganha tanto quanto se perde (ou algo próximo a isso), mas o que somos nós se não toda essa memória, toda essa construção que não cansamos ou não podemos deixar de revisitar? É preciso deixar para trás ao mesmo tempo que trazemos sempre conosco aquilo que, no entanto, não podemos recuperar.

Não, não chamo Harry Potter de guilty pleasure ou qualquer uma dessas frescuras que a gente usa quando quer ficar na defensiva: chamo a história de J. K. Rowling de “minha”, porque é isso que ela é. Obrigado pelos últimos 10 anos Harry, mas agora que Lord Voldemort já foi derrotado e que esses anos todos se passaram não há mais nada que possamos fazer um pelo outro.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar


Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.


O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.


Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Tenho a impressão que todo mundo deve conhecer esse poema da Cecília Meireles - bem, se eu conhecia nunca tinha lido de verdade; porque hoje de manhã quando me encontrei com ele não pude acreditar na revolução silenciosa que aconteceu em mim.

Já ouvi tanta coisa sobre essa mulher, tanta besteira sobre introspecção ou sobre alma feminina ou sobre ela não ser grande poeta. Não sei quase nada dela mas FODA-SE esse poema é perfeito: desafio qualquer pessoa a retirar uma vírgula que seja dessa construção que é pura delicadeza e destruição.

Ninguém escapa a esse poema. NINGUÉM.

Uma voz comprometida com sua própria extinção na busca de alguma plenitude impessoal e, por isso mesmo, P L E N A. Uma poeta que quer quebrar as mãos e se livrar da própria maldição de não conseguir comportar todo o transbordamento que é o seu coração de sonho. Uma pessoa louca por um sono de sonhos assassinados e pra sempre perdidos para, quem sabe finalmente Meu Deus, poder dormir.

É preciso destruir tudo o que somos para que não reste nada a não ser o que sobrevive a toda nossa pessoalidade sufocante. Hoje de manhã coloquei essa mulher num altar e rezei bem lúcido: "Graças a Cecília, que me disse tudo que eu queria saber e me matou pra sempre com a canção eterna do sonho. AMÉM".

sábado, 9 de outubro de 2010

Pico na Veia

58

- Tua doce lembrança, ai maldita, essa brasa dormida nas cinzas frias do meu coração.


77

- Foi o primeiro amor, um amor tão desesperado, quando ela me deixou, ai de mim, só não morri porque, aos 20 anos, você NÃO MORRE.


90

- Esses mortos, ingratos, que te esquecem tão depressa.

Porque quando se trata de Dalton Trevisan o máximo que posso fazer é citá-lo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

21

Assim o cãozinho quer pegar no chão a sombra do vôo rasante do pássaro, você persegue no tempo a lembrança em fuga dos teus mortos queridos.

Dalton Trevisan, muito muito obrigado.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O que faz de Clarice Lispector Deus?








Existimos nós, os humanos. Existem eles, os deuses. Criados por nós. Habitantes de nós. Nós.

Deuses são o mais próximo que chegaremos de nós mesmos. Nós somos o mais próximo que os Deuses chegarão do divino. Clarice Lispector é um Deus porque entra no sagrado de nós.

Esqueça que ela é mulher, esqueça que ela é brasileira, esqueça que ela é lembrada como autora “sensível e introspectiva”. Clarice é uma revolução, uma destruição, uma força da natureza. Ela é uma urgência, um urro atrás do pensamento que só sabe ser silêncio.

Com essa mulher tive minha grande experiência de real entendimento – que só é possível pela vivência legitimada pela realidade inventada da ficção. A dona-de-casa, judia, jornalista Clarice fez o sacrifício maior de se deixar para trás para poder ser instrumento de sua escrita transcendental, e que é maior que os limites da literatura enquanto pensamento intelectual. O que podemos dizer de uma mulher que só quando falha em sua construção consegue aquilo que não alcançou? Ou é louca ou é Deus. Mas são os dois.

Se tudo o que ela escreveu foi um eterno e cíclico fracasso, aonde seus livros nos levam é o lugar nenhum que é todo o lugar: estamos diante da plenitude. E o problema é que essa plenitude será para sempre limitada pelo nosso horizonte, e Clarice sabia disso, daí dizer que “não me entendo e ajo como se entendesse”. Temos a mentira do entendimento tão perto do nosso coração porque sem ela só resta desespero. Clarice era uma desesperada. A Maçã no Escuro, Laços de Família, A Paixão Segundo G.H., Água Viva e A Hora da Estrela, suas obras-primas definitivas (e se você não sabe isso, por favor aprenda) estão minados e construídos sobre o mais profundo e incontornável desespero.

O que dizer dessa mulher que me disse o seguinte: “A noite foi feita para dormir porque senão no escuro se compreende o que se quis dizer quando falaram em inferno, e tudo aquilo no que uma mulher não acredita de dia, de noite ela entenderá”. Clarice é uma insônia eterna.

Poucas, pouquíssimas vezes presenciei tanto rigor na construção de uma poética: para ela a palavra diz tão pouco, mas tão pouco, que não lhe resta escolha a não ser espremer, forçar, machucar e violentar tanto a palavra até o ponto em que não lhe sobra mais nada nas mãos a não ser destruição e a essência. Explodindo qualquer limite entre prosa e poesia, mandando para o inferno tempo, espaço e enredo, Clarice amplia nossa língua portuguesa até o nível do insuportável – por isso seu texto é água que escorre de nossas mãos e se transforma imediatamente em sangue nas nossas veias. Exaustos, gratos e aterrorizados nos entregamos ao real que nos escapa assim que o reconhecemos, mas que reencontramos nas próximas linhas dessas suas obras-primas. Reencontramos e perdemos de novo, porque a literatura de Lispector é uma perseguição sem fim, sem descanso, que só se detém diante do silêncio de nossa própria perplexidade.

Macabéa tinha o direito ao grito, G.H. tinha que amar e ser a barata, Martim tinha que deixar de ser um homem para saber o que é ser um homem para poder se tornar homem para depois entender que jamais seria um homem, Ana tinha que conviver com o caos excessivo ao qual só aqueles que amam são suscetíveis. Clarice Lispector tinha que fazer de toda a sua literatura um fracasso para nos mostrar que é só o fracasso, só a desistência que nos resta como última e única revelação daquilo que nunca temos e que sempre somos.

Para os que a acusam de escrever tratados filosóficos (e, na pior das cegueiras, auto-ajuda) e nunca literatura digo o que ela escreve: “Mas quem sabe é essa ânsia de peixe de boca aberta que o afogado tem antes de morrer, e então se diz que antes de mergulhar para sempre um homem vê passar a seus olhos a vida inteira; se em um instante se nasce, e se morre em um instante, um instante é bastante para a vida inteira”. Se a palavra tem que dizer, me desculpem os que pensam diferente, mas Clarice Lispector disse da forma como só os gênios conseguem: nos fazendo entender mesmo nos frustrando em qualquer tentativa de explicar. Esta inconsequente da linguagem cria imagens com jogos de palavras que simplesmente não consigo conceber que ocorram a qualquer um que não viva no limite do sagrado em que ela vive. Porque ela não quer brincar com a linguagem: quer destruí-la, para construí-la e vivê-la. E se todo esse conflito com a linguagem parece só birra de modernista-existencialista-perdido-no-mundo-sem-sentido-do-século-XX vejam como na literatura clariceana essa linguagem se transfigura em absolutamente todos os aspectos da ficção: ela passa a ser personagem, enredo, tempo, espaço e clímax. Passa a ser o tudo que alcança o nada e volta com o indizível que no entanto se expressa.

Clarice Lispector nunca teve escolha, Clarice Lispector nunca teve redenção, Clarice Lispector só teve uma coisa: esta selvageria de uma realidade proibida, que a rebeldia da necessidade de expressão transformou em um brado de Deus ferido, solitário e transbordante desta seiva quente que chamamos verdade.

quinta-feira, 31 de julho de 2008


Alone

From childhood's hour I have not been
As others were
I have not seen
As others saw
I could not bring
My passions from a common spring
From the same source I have not taken
My sorrow
I could not awaken
My heart to joy at the same tone
And all I lov'd — I lov'd alone
Then — in my childhood — in the dawn
Of a most stormy life — was drawn
From ev'ry depth of good and ill
The mystery which binds me still
From the torrent, or the fountain
From the red cliff of the mountain
From the sun that 'round me roll'd
In its autumn tint of gold
From the lightning in the sky
As it pass'd me flying by
From the thunder, and the storm
And the cloud that took the form (When the rest of Heaven was blue)
Of a demon in my view

Edgar Allan Poe.