Flannery O’Connor é malvada.
Sério, puro fel.
Demoníaca.
Manipuladora.
Gênia.
Escreveu uma obra que perverte a
mente humana, ou seja, instiga-a. Pra ler Flannery tem que ter culhão e
coração. Ela exige muito, exige tudo – pra no final nos lembrar que o prêmio
por tanto esforço é sempre um saco cheio de desespero.
Essa literatura do soco no
estômago não começa nessa católica recalcada, mas nela alcança uma espécie de
ápice do mal-estar, uma poética da desrazão. O’Connor é dessas que enxerga a
natureza como caos, nunca como harmonia. E não qualquer caos, mas caos
violento, sanguinário, cruel. Mas tudo bem, isso é apenas uma visão de mundo,
não garante nenhum qualidade estética. Mas aí acontece isso aqui:
“Sentada no degrau, agarrada ao
balaústre, pouco a pouco ela recuperou o fôlego, respirando em doses mínimas, e
a escada parou de balançar como gangorra. Só então abriu os olhos. Voltou-os lá
para baixo, lá para o fundo, lá para o buraco negro de onde ela mesma, há tanto
tempo, tinha vindo. E disse: ‘Boa sorte’, dizendo-o numa voz cavernosa que
ecoou nos vários níveis do poço, ‘neném’.
Maliciosamente os três ecos repetiram: ‘Boa sorte, neném’.
Mais uma vez ela reconheceu a sensação tão ligeira de coisa que se
mexia. Era no entanto como se não fosse em seu ventre. Parecia mais um nada que
ainda estava em nenhures, estando em repouso e à espera, na plenitude do tempo”.
(Um Golpe de Sorte)
E o leitor pensa “como essa
mulher faz uma descoberta de gravidez ser tão arrasadora???!!!”, é, isso é a
Flannery O’Connor. Toda palavra é melifluamente ajambrada para que seu sentido
comum seja pervertido até que se alcance a perfeita forma da palavra-ameaça –
pois para O’Connor é a palavra o seu revólver, é com ela que Flannery ameaça,
intimida e, constantemente, assassina. O gênero dessa literatura? Chamem de
contos à La Lady Macbeth ou Histórias pra Mefistófeles dormir, não sei. Do
gênero, realmente não sei. Assim como não sei do gênero de A Paixão Segundo G.H., Os
Irmãos Karamazov, Moby Dick,
porque como Lispector, Dostoievski e Melville, O’Connor só chegou até a palavra
para estuprá-la e destruí-la – enquanto sorri diabolicamente com a verdade em
suas mãos.
Falam muito sobre “representação
do Sul dos EUA”, “realismo norte-americano”, “crítica social severa” quando
Flannery está em pauta. Ainda não vi falarem do que mais me impressionou e
transformou: que o verdadeiro e único lar da literatura brutal de O’Connor é
nosso epicentro egocêntrico e tenebroso que nos acostumamos a chamar de alma,
apenas isso. Alma que tudo traga para si, até que não aguenta tanto peso e
morre. Ou não, pois até isso pode nos ser negado pela natureza:
“A ave brava que pairava sobre sua cabeça, numa espera misteriosa,
durante os anos de sua infância e os dias da doença, pareceu de repente se
mexer. Asbury descorou, e a última camada de ilusão, como que num redemoinho,
foi-lhe arrancada dos olhos. Ele viu que pelo resto dos seus dias, frágil e
atormentado, mas resistindo, teria de viver sempre em face de um purificante
terror. Um grito fraco, derradeiro e impossível protesto, escapou-lhe ainda.
Mas o Espírito Santo, blasonado em gelo, e não em fogo, mantinha-se a baixar,
implacável”. (O Calafrio Constante)
Como Lúcifer, Flannery O’Connor
não dá descanso aos condenados que escolhem entrar em seu inferno. Repito, não
há recompensa a não ser desespero. Me ouçam: NÃO LEIAM ESSA MULHER.