terça-feira, 6 de agosto de 2013

Fazer, perceber o tempo


 


Sem nós não haveria o Tempo.

Ele depende de que nós expressemos sua existência, sua pisada, sua ditadura. Ele depende de que nós o deixemos ser.

Assim, somos instrumentos - mas instrumentos recriadores, pois reinventamos nosso autor, o reinterpretamos. E é assim que, subitamente, 9 anos se tornam um buraco negro para dentro do qual foi sugado tudo o que antes acreditávamos ser e o que éramos então. É assim que 9 anos sepultam uma vida, mesmo que seja para fazer nascer, à força, uma outra. É assim que ganhamos senso histórico de nós mesmos e que as insignificâncias se acumulam até romper a barragem que o sonho juvenil constrói para proteger nossos corações da triste constatação: tudo passa.

Já me é impossível, há algum tempo, dizer o que se trata de Antes do Amanhecer e Antes do Pôr do sol, e o que se trata de mim, Felipe Bruno Silva da Cruz, 25 anos, tão instrumento do tempo quanto Jesse e Celine.

Daí a crise desesperada de reencontrá-los, pela primeira vez de fato 9 anos depois: é que o Felipe de 25 não estava de todo preparado para dar adeus ao Felipe de 16. Mas agora é tarde, jamais seremos o mesmo um para o outro, porque das infindáveis qualidades de Antes da meia-noite a mais contundente é a de ter me reescrito, me reinventado. Como só o tempo poderia fazer.


"Still there, still there, still there. Gone."

Os pelos ruivos da barba de Jesse que brilhavam à luz do sol se foram, a voz doce e melancólica de Celine acompanhada por um violão silenciou, o abraço que se certificava que Jesse não se dissolveria em moléculas não chega. Antes da meia-noite é uma coletânea de ausências e um quase total soterramento da jovialidade onírica daquela inacreditável noite em Viena. E o que corta mais fundo na carne é sentir que, dos três filmes, este é o mais inevitável.

O longo plano de Jesse assistindo Hank partir, a conversa com amigos em que Celine e Jesse podem fazer pouco mais do que se darem conta daquilo que seu relacionamento não é, a caminhada pela cidade que demora a sair e que, quando sai, é para que um não caminhe ao lado do outro, a redução das ruas e parques de Viena e Paris a um claustrofóbico quarto de hotel, de uma impessoalidade que leva às lágrimas qualquer um que se lembra do poder de ressignificar qualquer ambiente (um cemitério, um café, uma estátua, um barco no rio Sena) que Jesse e Celine possuíam.

É, então, tudo perda? Tudo vazio? Tudo morto? Não, claro que não. Para o nosso próprio bem, não.

A verdade é que não sei, jamais terei certeza, mas não estou preparado pra dizer que tudo se foi, não dá, não posso, é perder muito só de uma vez - por isso resolvi inventar uma verdade, como o Jesse fez:

O tempo é reversível. Nós podemos voltar e depois seguir adiante. Uma história de amor não é linear, ela pode terminar bem antes de começar, e o começo pode ser aquilo que só é possível quando tudo acaba. Por favor, acreditem. É preciso. Podemos reverter a realidade, por uma noite, por um dia, por um filme, por uma vida. Não me digam que depois tudo volta, porque é óbvio que volta, mas é pra isso que fomos dotados dessa coisa chamada persistência, que é um jeito mais corajoso de ser burro.

É só na fabulação que podemos encontrar alguma verdade, não tem jeito, a realidade é a coisa mais falsa que existe. Sendo assim, que bom que a Celine mandou uma carta do futuro para ela mesma, que bom que o Jesse encontrou a carta e que bom que ele leu a carta para a Celine do presente, bem a tempo dela ainda acreditar em algum tipo de futuro. Que bom que o filme não acaba com aquele sequíssimo "Eu não te amo mais". Que bom que, enquanto Jesse olha para um horizonte e Celine para outro, separados como nunca estiveram mesmo quando achavam que nunca mais iam se encontrar, Richard Linklater não cortou e subiu os créditos. Que bom que Celine virou o rosto para Jesse e disse que a noite adivinhada na carta, que ainda estava por vir, seria maravilhosa. Que bom que o último movimento da câmera é um zoom-out, que inclui a cada um de nós naquela cena tão ampla, tão eterna, tão imprescindível para a resistência de algum brilho: seja o brilho promissor do amanhecer ou o crepúsculo agonizante da tarde.

Somos instrumentos criadores do tempo. Jesse e Celine reinventaram aquilo que os inventou. E, mais uma vez, o mundo não será mais o mesmo.