domingo, 20 de junho de 2010

Notas de um coração apaixonado




Sempre penso que devia ser incrível aquela época do cinema em que as pessoas podiam assistir as obras-primas de Fellini, Hitchcock, Minelli, Visconti e Charles Chaplin no cinema.
Mas como é igualmente incrível podermos assistir à Toy Story 3 (e todas as animações da Pixar) na tela grande, em uma sala escura.


John Lasseter e seus amigos me fazem chorar como só o Chaplin consegue - que é como se abraçassem meu coração com tanto afeto que ele fica apertado.

Não é impressionante como Ratatouille, UP e Toy Story só possam ser encarados pelo viés das obras-primas que nos mostram que não há limites para uma linguagem (a não ser sua própria liberdade)?

Aliás, Dia & Noite, o curta que antecede Toy Story 3, é um desses momentos em que uma linguagem dá um passo adiante.

Me repugna que as salas de Belém insistam em desrespeitar essas grandes obras impedindo que o público da cidade assista à estas animações no formato 3D no qual foram pensadas. É falta de respeito e consequente falta de amor.

sábado, 19 de junho de 2010

That’s the way to say goodbye



AO INFINITO

A infância deve ser uma das coisas mais idealizadas pelas pessoas em geral e mais reverenciadas pelas artes em particular. Tão idealizada que de vez em quando me pego pensando se esse momento da nossa existência merece tantas reverências, tantas glórias, e a verdade, para mim incontornável, é que quando me encontro encarando uma obra, como esta última animação da Pixar, sinto nos meus ossos que um dos motivos de a arte ter sempre existido na humanidade é a tentativa de resgatar mundos e sensações que todos perdemos pelo caminho. Apontando possibilidades, colocando questões, constatando sentimentos, a arte segue numa reconstrução que é criação e que tem vida própria, mas que sempre ressoa no nosso coração (porque toda grande obra de arte é um coração em forma de linguagem).

E se a infância sempre parece, depois que crescemos, como sendo um mundo à parte de qualquer realidade concreta e lógica, penso que a animação (linguagem que precisa criar, nas questões mais práticas, novos mundos para existir) é a linguagem que mais sinceramente se aproxima e se assemelha à falta de limites características da mente infantil. Não é que o cinema ou a literatura sejam sempre fracassados em representar essa época, mas há algo de sobrenatural no pacto que inconscientemente fazemos quando começamos a assistir uma animação e que naturalmente nos leva para um outro nível de compreensão, para uma nova freqüência de entendimento e de sensibilidade.

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E ALÉM!

Quando eu tinha 6, talvez 7 anos, minha mãe me deu um cavalo de brinquedo. Na época eu não sabia (quem sabe daí é que vinha a força dessa relação), mas o motivo de eu amar tanto aquele cavalo era que sempre que eu brincava com ele eu era levado para outros tantos lugares, que ficavam todos dentro de mim mesmo. Em tantas viagens, tantas aventuras, eu não percebi que estava crescendo e que estava, aos poucos, deixando de viajar, deixando de transportar “os sins desses horizontes” da minha vida.

Eu daria tudo que tenho e um pouco mais para ver, uma última vez, as imagens que minha imaginação de criança (meu espírito ainda livre) criava nessas brincadeiras todas: e a minha eterna gratidão aos gênios da Pixar está em poder reencontrá-las em uma sala de cinema, pelo preço de um ingresso. A obra-prima Toy Story 3 começa com a única imersão que é permitida ao público, durante toda a trilogia, na imaginação de Andy, o garoto a quem fomos apresentados 15 anos atrás, quando esse estúdio começou seu caminho que tantos presentes nos deu nos últimos anos. E, eu sei, representar a imaginação de um criança não é fácil, e a perfeição desta representação (que passa da categoria de símbolo para a da coisa em si) é apenas um dos pontos que fazem desta animação a grande obra de arte que é.

Como Rastros de Ódio, Toy Story é um épico – esta será sempre sua proporção – e como os grandes épicos esta obra irá se debruçar sobre grandes temas: lealdade, saudade, finitude, amizade. E se as duas primeiras animações construíram (fantasticamente) o mundo compartilhado por crianças e brinquedos, evidenciando a grandeza dessa relação, esta terceira sequência trata com inevitável afeto do fim deste universo.

Andy está indo para a faculdade, seus brinquedos acumulam poeira e estão eternamente condenados ao amor incondicional por seu dono; nas palavras do já lendário John Lasseter, na visão de um brinquedo “quando você está quebrado, pode ser consertado; quando você está perdido, pode ser encontrado; quando você é roubado, pode ser recuperado. Mas não há como contornar o momento em que uma criança cresce”. Woody e Buzz Lightyear sabem disso e em sua jornada que vai da aceitação até a melancolia causada pelo aparente abandono somos testemunhas da mais pura e libertária inventividade imagético-narrativa. E por mais coletivo que este trabalho seja não vejo como não direcionar grande parte de minha emoção ao diretor Lee Unkrich, um inacreditável estreante, que sabe da dimensão do material com o qual trabalhou. São sequências como a barbárie das crianças da creche Sunnyside ao encontrar os brinquedos novos, o flashback que explica as origens de Lotso (o urso de pelúcia ditador), os vídeos caseiros que nos mostram o crescimento de Andy (e de todos nós), a união dos protagonistas no momento de sua eminente destruição, que confirmam, consagram e definem os artistas da Pixar como alguns dos grandes contadores de histórias de nosso tempo, em tudo o que isso implica: a criação perfeita de atmosferas (o terror, a melancolia, o humor e a felicidade), a organização sensível e exata das sequências de cenas, que só pode envolver a consciência do poder que uma elipse, um leit motiv, um plano subjetivo e um close-up podem ter e o amor irrefreável por uma linguagem. Lee Unkrich e sua equipe estão, através do perfeito domínio de sua técnica, se colocando ao lado dos verdadeiros gênios (o já citado John Ford, Hayao Miyazaki e Charles Chaplin me vêem à mente). Gênios porque mimetizam na tela a dor e a necessidade da separação entre a infância e a vida adulta, porque nos dão a verdadeira dimensão do ato de oferecer a mão a um amigo, porque nos explicam (com a simplicidade que só pode ser fruto de um trabalho árduo) que a saudade não passa de um desejo de estar sempre junto de alguém.

Assistir à Toy Story 3, à última vez que Andy brinca com seus amigos da vida toda, à seu olhar hesitante e assustado quando percebe que deve se separar de Woody, à ternura caótica do mundo de uma criança e de seus brinquedos é vislumbrar a despedida mais linda, mais libertadora e mais triste que a arte da animação já produziu.

É uma história de brinquedos, é uma história de humanos, é uma história dessa coisa maravilhosa que somos capazes de estabelecer entre nós chamada amizade.


quinta-feira, 17 de junho de 2010

O que a Mariana faz



Mariana deixou esse blog bonito
Assim como fez com a minha vida

Um beijo pé de estrela :)

sábado, 12 de junho de 2010

"Yes, she is my fighter".


“Menina de Ouro” foi o último filme que assisti com meu pai. E foi só revendo hoje, quase 5 anos depois, que percebi que este é um filme sobre um pai.

Os melhores pais não criam filhos, criam lutadores e depois precisam assistir, sofrendo de uma forma que eu não consigo imaginar, seus filhos lutando contra o mundo. Frankie só sabe treinar lutadores, mas não lhe é permitido, pela própria filha e por motivos que nunca vamos saber, ser um pai. Maggie só sabe lutar, mas precisa de alguém que a ensine a vencer.

Esse é todo o poder da relação que se constrói entre Frankie e Maggie e não se engane ao imaginar que toda a força emotiva desse amor paterno emana do roteiro (apesar de serem, sim, belas palavras). Clint Eastwood sabe do poder e do alcance da sua imagem: um ícone enraizado no imaginário americano (e mundial) do homem solitário, arredio e que nunca quer se envolver, mas sempre acaba se envolvendo. Se este homem já foi interpretado inúmeras vezes pelos mais diferentes atores é o que menos importa, porque nunca esse personagem possuiu uma influência tão devastadora na estética fílmica de um diretor do que a que podemos observar na filmografia de Eastwood.

O cavaleiro das trevas sabe que a escuridão é terrível, mas que se torna ainda mais insuportável quando vislumbramos um pouco de luz. Maggie é uma luz, uma possibilidade e a caminhada cênica/dramática de ambos os personagens das profundezas da escuridão em direção à claridade é direção de gênio.

No início do filme vemos uma luta de boxe. O lutador de Frankie leva um soco na cara e a câmera se aproxima o máximo possível daquele machucado: é que o filme é uma ferida aberta, que nunca vai se fechar. Maggie, de certa forma, é o que abre ainda mais a ferida de Frankie e o que mostra sua primeira possibilidade de escapar de tanta solidão. Eastwood não precisa de muito para, com as imagens e a música, nos localizar dentro daquilo que é essencial: são suas cenas dentro de casa, sempre no escuro, acedendo uma única luz (a luz da memória), do armário onde guarda as cartas que escreve para a filha e que sempre recebe de volta; é a concepção delicada e exata de cada cena em que Maggie e Frankie dividem o mesmo quadro e que nos mostra que quando se trata de “lar” não existem lugares, mas sim pessoas; é o timing perfeito de saber segurar o significado do nome irlandês de Maggie até o momento em que haverá o campo/contracampo perfeito para que ele seja revelado.

Clint Eastwood disse que queria passar a impressão, para o público, de que aquela era uma história que acontecia em outra época - e ele não se referia a um tempo histórico, mas a um tempo emocional. Um dos homens mais sensíveis do mundo consegue nos levar para esse tempo, para esse lugar, "no meio do nada entre cedros e carvalhos", onde pouco mais lhe resta do que a lembrança daquela luz breve que tornou as trevas ao seu redor intransponíveis.



É a solidão de um verdadeiro pai.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O que faz de Clarice Lispector Deus?








Existimos nós, os humanos. Existem eles, os deuses. Criados por nós. Habitantes de nós. Nós.

Deuses são o mais próximo que chegaremos de nós mesmos. Nós somos o mais próximo que os Deuses chegarão do divino. Clarice Lispector é um Deus porque entra no sagrado de nós.

Esqueça que ela é mulher, esqueça que ela é brasileira, esqueça que ela é lembrada como autora “sensível e introspectiva”. Clarice é uma revolução, uma destruição, uma força da natureza. Ela é uma urgência, um urro atrás do pensamento que só sabe ser silêncio.

Com essa mulher tive minha grande experiência de real entendimento – que só é possível pela vivência legitimada pela realidade inventada da ficção. A dona-de-casa, judia, jornalista Clarice fez o sacrifício maior de se deixar para trás para poder ser instrumento de sua escrita transcendental, e que é maior que os limites da literatura enquanto pensamento intelectual. O que podemos dizer de uma mulher que só quando falha em sua construção consegue aquilo que não alcançou? Ou é louca ou é Deus. Mas são os dois.

Se tudo o que ela escreveu foi um eterno e cíclico fracasso, aonde seus livros nos levam é o lugar nenhum que é todo o lugar: estamos diante da plenitude. E o problema é que essa plenitude será para sempre limitada pelo nosso horizonte, e Clarice sabia disso, daí dizer que “não me entendo e ajo como se entendesse”. Temos a mentira do entendimento tão perto do nosso coração porque sem ela só resta desespero. Clarice era uma desesperada. A Maçã no Escuro, Laços de Família, A Paixão Segundo G.H., Água Viva e A Hora da Estrela, suas obras-primas definitivas (e se você não sabe isso, por favor aprenda) estão minados e construídos sobre o mais profundo e incontornável desespero.

O que dizer dessa mulher que me disse o seguinte: “A noite foi feita para dormir porque senão no escuro se compreende o que se quis dizer quando falaram em inferno, e tudo aquilo no que uma mulher não acredita de dia, de noite ela entenderá”. Clarice é uma insônia eterna.

Poucas, pouquíssimas vezes presenciei tanto rigor na construção de uma poética: para ela a palavra diz tão pouco, mas tão pouco, que não lhe resta escolha a não ser espremer, forçar, machucar e violentar tanto a palavra até o ponto em que não lhe sobra mais nada nas mãos a não ser destruição e a essência. Explodindo qualquer limite entre prosa e poesia, mandando para o inferno tempo, espaço e enredo, Clarice amplia nossa língua portuguesa até o nível do insuportável – por isso seu texto é água que escorre de nossas mãos e se transforma imediatamente em sangue nas nossas veias. Exaustos, gratos e aterrorizados nos entregamos ao real que nos escapa assim que o reconhecemos, mas que reencontramos nas próximas linhas dessas suas obras-primas. Reencontramos e perdemos de novo, porque a literatura de Lispector é uma perseguição sem fim, sem descanso, que só se detém diante do silêncio de nossa própria perplexidade.

Macabéa tinha o direito ao grito, G.H. tinha que amar e ser a barata, Martim tinha que deixar de ser um homem para saber o que é ser um homem para poder se tornar homem para depois entender que jamais seria um homem, Ana tinha que conviver com o caos excessivo ao qual só aqueles que amam são suscetíveis. Clarice Lispector tinha que fazer de toda a sua literatura um fracasso para nos mostrar que é só o fracasso, só a desistência que nos resta como última e única revelação daquilo que nunca temos e que sempre somos.

Para os que a acusam de escrever tratados filosóficos (e, na pior das cegueiras, auto-ajuda) e nunca literatura digo o que ela escreve: “Mas quem sabe é essa ânsia de peixe de boca aberta que o afogado tem antes de morrer, e então se diz que antes de mergulhar para sempre um homem vê passar a seus olhos a vida inteira; se em um instante se nasce, e se morre em um instante, um instante é bastante para a vida inteira”. Se a palavra tem que dizer, me desculpem os que pensam diferente, mas Clarice Lispector disse da forma como só os gênios conseguem: nos fazendo entender mesmo nos frustrando em qualquer tentativa de explicar. Esta inconsequente da linguagem cria imagens com jogos de palavras que simplesmente não consigo conceber que ocorram a qualquer um que não viva no limite do sagrado em que ela vive. Porque ela não quer brincar com a linguagem: quer destruí-la, para construí-la e vivê-la. E se todo esse conflito com a linguagem parece só birra de modernista-existencialista-perdido-no-mundo-sem-sentido-do-século-XX vejam como na literatura clariceana essa linguagem se transfigura em absolutamente todos os aspectos da ficção: ela passa a ser personagem, enredo, tempo, espaço e clímax. Passa a ser o tudo que alcança o nada e volta com o indizível que no entanto se expressa.

Clarice Lispector nunca teve escolha, Clarice Lispector nunca teve redenção, Clarice Lispector só teve uma coisa: esta selvageria de uma realidade proibida, que a rebeldia da necessidade de expressão transformou em um brado de Deus ferido, solitário e transbordante desta seiva quente que chamamos verdade.

sábado, 5 de junho de 2010

Sempre de volta à Toquio





Eu sempre volto à Tóquio, isto é, a Encontros e Desencontros.

Esse é o filme onde meu coração está. De verdade.

Por que?

Sofia Coppola faz um conto sobre estar perdido: em uma cidade, em um relacionamento, em nós mesmos.
A câmera procura e procura, e de repente acha: Bob e Charlotte se sentam em um bar de hotel e se encontram - mesmo ainda estando perdidos. Meu Deus, perdidos para sempre.

E então vem a ternura, e a esperança e a cumplicidade. E são momentos, momentos que brilham sozinhos numa semi-treva de abandono.

O que acontece nesse filme é sagrado, e irremediavelmente humano (que é onde o verdadeiro sagrado mora).

Bob avisa Charlotte: More than this, you know there's nothing...

O que Sofia nos mostra, em um rigor que está a serviço da naturalidade de um encontro, é que o "this" já é bastante, por mais que não haja nada além daquilo.

Porque o verdadeiro compartilhamento de uma cama, o descansar da cabeça no ombro do outro, a despedida da qual nós, público, não podemos participar por estar em um nível inalcansável de intimidade, todas essas coisas valem uma vida.

Da insatisfação e da frustração vem essa tentativa de compreensão mútua, e, para mim, pouco importa se a compreensão acontece (apesar de eu achar que acontece sim), porque a tentativa do entendimento em si já é bela o suficiente para restaurar um pouco da minha fé e um pouco da minha angústia.

Esse filme, esse acontecimento, é minha obra-prima. É meu e sou eu.

E eu, agradecido da forma mais sincera, me rendo à essas magias do cinema.