sábado, 25 de setembro de 2010

One look in your eyes, and I won't have to fall




Minha música do ano é Back to Manhattan, do cd que a Norah Jones lançou em 2009 (The Fall).

Alguma coisa nela traz até mim uma atmosfera que só os melhores trabalhos de Joni Mitchell me proporcionaram (e, acreditem, isso quer dizer muita coisa).

Uma mulher, um homem, a ponte do Brooklin entre os dois - é preciso partir e, apesar de não saber como, ela sabe que deve fazer isso imediatamente.

Eu sei, isso é a letra - mas aquele piano, aquela bateria, aquela voz que parece um barco deslizando na correnteza melódica dessa canção, tudo isso me dá a trágica proporção deste fim de um mundo.

No final, a música fica suspensa (como uma ponte), ecoando em mim e em toda a sensação de despedida que ela me provocou.

Sei tão pouco de música - Norah Jones me fez sentir tão próximo à ela.

http://www.youtube.com/watch?v=w8b5uMN1bAQ

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

21

Assim o cãozinho quer pegar no chão a sombra do vôo rasante do pássaro, você persegue no tempo a lembrança em fuga dos teus mortos queridos.

Dalton Trevisan, muito muito obrigado.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Sem histeria




M. Night Shyamalan é uma das maiores vítimas da histeria crítica de todos os tempos: de um lado os ardorosos detratores de sua obra, que se recusam a abrir os olhos para um dos grandes autores dos últimos anos, do outro os fãs incondicionais, que em velocidade impressionante dão um jeito de encontrar as mais diferentes justificativas para as mais diferentes escolhas deste problemático e fascinante diretor.

Entre esses dois grupos me considero uma espécie de meio-termo: pouco me lembro do valor estético de O Sexto Sentido (problema de memória mesmo), Corpo Fechado e Sinais moram no meu coração e são parte indispensável da minha formação de apreciador da arte cinematográfica (trata-se de obras-primas), tenho extremo respeito por A Vila, não sei bem qual minha posição acerca de A Dama na Água (rever é indispensável), desconfio e antipatizo bastante com Fim dos Tempos e não gosto de O Último Mestre do Ar.

Sim, este texto parte de um juízo de valor, porém vou trabalhar o máximo possível para que a partir deste juízo se obtenha algum conhecimento.

Em um belo texto sobre a estética proposta por esse diretor, Breno Yared fala sobre os planos longos que são preferência de Shyamalan quando vai filmar suas cenas (o texto está no blog de Yared: http://artedamiseenscene.blogspot.com/), e que, por vezes, causam no público certo desconforto ou enfado, principalmente por conta dos mal acostumados olhos que se viciaram em filmes com planos que duram, em média, menos de 10 segundos. Uma das coisas que mais gostei neste texto foi a escolha do autor em não alegar uma superioridade de planos mais longos quando postos ao lado de planos “picotados”. Afinal, as duas formas de filmar (acompanhadas de outras mil possibilidades que uma câmera nos dá) possuem, cada uma, sua força e sua eficiência cênica – tudo depende, obviamente, do uso que será feito delas.

Assim, não me incomodo nem um pouco que Shyamalan opte por planos longos em seus filmes, muito pelo contrário: a sequência em que o casal de Corpo Fechado janta a sós em um restaurante enquanto recupera sua intimidade destroçada pelo cotidiano, recuperação que nos é informada pelo sutil, lento e longo zoom in em direção ao casal, é uma das cenas mais lindas do cinema. Bem como a sequência da família de Sinais, presa no porão da sua casa, na escuridão total, onde só nos resta os gritos de pavor dos personagens, é das mais aterrorizantes que já vi.

Também não me incomoda que o diretor escolha qualquer tema que seja para realizar seus filmes: que fale sobre super-heróis, sobre ETs, sobre gente morta, sobre ninfas, sobre monstros, sobre o fim do mundo – mas que fale bem. Sendo este “falar bem” a construção imagética da narrativa, aspecto que Shyamalan obviamente valoriza.

Me deparo, finalmente, com meu problema central: o filme de Shyamalan que mais me desagrada, o recente O Último Mestre do Ar.

Não ligo a mínima se é a adaptação de um desenho, se o diretor trabalhou sob pressão ou em uma camisa de força, se foi feito para ganhar dinheiro ou não: sempre irei encarar Shyamalan, senão como um gênio, como um diretor que realizou pelo menos duas obras-primas, e é desta forma que sempre irei assistir seus filmes – e quando ponho O Último Mestre do Ar ao lado de Corpo Fechado me é impossível colocá-los no mesmo nível.

Construção eficiente de personagens, criação convincente de atmosfera, capacidade de desenvolver bem uma narrativa envolvendo o público em seu universo pode nem sempre ser indispensável para uma obra, a não ser quando obviamente ela buscava tais efeitos; e este me parece ser o caso desta sétima produção de Shyamalan. Pergunto: onde está o carisma de Ang, o protagonista do lado de quem deveríamos estar e por quem deveríamos torcer durante a projeção do filme? Onde está a relevância da relação fraterna que se pretende estabelecer entre os três personagens principais? O que houve com os conflitos que são postos diante do público em relação ao filho do líder do povo do fogo, e que me parecem tão negligenciados na narrativa corrida e algo desinteressante do filme?

Um dos pontos mais frequentemente levantados em defesa de Shyamalan é a constante de sua marca autoral ser tão forte que acaba se impondo diante de qualquer convenção de gênero com o qual o diretor opte trabalhar: do filme de super-herói ao de fantasmas, do de ETs ao conto de ninar, o diretor nunca deixou dúvidas de que, antes de mais nada, tratava-se de um filme “shyamalaniano”. Porém, se em Fim dos Tempos já me vinha sensação de que esta marca autoral trabalhava contra a construção do universo fílmico, em O Último Mestre do Ar ela me parece estar absolutamente diluída: claro que existem grandes sequências nesta obra, onde a veia pulsante do artista Shyamalan se faz sentir (me ocorre o longo travelling lateral, todo ritmado por belos zoom ins e zoom outs, que registra a luta de Ang, após conseguir dominar a água, contra o povo do fogo), mas me vi na posição de um investigador tentando espremer do filme algo que me lembrasse as incríveis experiências que me foram proporcionadas por Corpo Fechado e Sinais.

Neste esforço investigativo me lembrei dos comentários que ouvi acerca de Fim dos Tempos: não se tratava de um filme catástrofe comum, mas de um filme catástrofe de Shyamalan, se as atuações pareciam insipientes, não era incompetência do realizador, mas simples direção (enquanto percurso) que foi escolhida para o filme e se ocorriam constantes quebras de atmosferas sugeridas por sequências incríveis, principalmente na construção de um ambiente repleto do mais puro pavor, era porque o diretor estava experimentando a própria forma de envolver o público ao mesmo tempo em que o distanciava de seu universo. Compreendo essas colocações e não duvido que sejam verdadeiras, mas minha questão é: até que ponto podemos levar em consideração essas ressalvas feitas com o objetivo de educar o olhar para o estilo de Shyamalan (algo que, de fato, é necessário em muitos casos) como justificativas para aspectos de seus filmes que parecem sabotar a própria obra? Explico exemplificando: como posso encarar pura e simplesmente as atuações “estranhas” de Fim dos Tempos como escolha estético/artística “irrelevante” quando ela afeta negativamente minha relação com a obra, e quando percebo que o próprio Shyamalan leva tais aspectos em consideração para seu filme?

É claro que cinema não é atuação, é claro que cinema não é roteiro, mas estamos tratando de um diretor que tem grande apreço pela estética clássica – e que, no mínimo em seus últimos dois filmes (especialmente este último), tem falhado na realização de diversos aspectos extremamente caros ao modo de fazer cinema que o próprio diretor escolheu tomar como seu. Não é preciso que ninguém lembre a Shyamalan que cinema é “visual storytelling”, motivo pelo qual não posso deixar de perguntar: onde está a força imagética do sacrifício da princesa da água pelo seu povo? Onde está a força imagética da descoberta de que em breve o povo do fogo entrará no período em que seus poderes serão exacerbados e em que a batalha se tornará mais sangrenta? Onde está a força imagética do coração deste filme? Onde está o coração deste filme, afinal?

O Último Mestre do Ar sofre de uma anemia pela qual nem mesmo os piores momentos de Fim dos Tempos foram acometidos. Mesmo nos instantes mais problemáticos e desagradáveis que tive com a obra de Shyamalan eu conseguia visualizar um vigor e uma potência poético-narrativa inegáveis. No entanto O Último Mestre do Ar exige de mim tal número de ressalvas e justificativas que se torna incontornável a seguinte questão: se estivéssemos diante de uma grande obra, todas essas ressalvas seriam necessárias?

sábado, 18 de setembro de 2010

O lap dance eterno




Antes de qualquer coisa esse texto existe por dois motivos: Death Proof, de Quentin Tarantino, e o texto “Cinema é coisa de macho”, de Mateus Moura (que vocês podem ler aqui: http://cinemateusmoura.blogspot.com/2010/09/cinema-e-coisa-de-macho.html).

Para evitar qualquer histeria (de minha própria parte) ou arroubo pseudo-feminista-sexista, quero me deter um pouco no que vem a ser esse “macho”, esse adjetivo que é tão bem-sucedido na classificação de certas grandes obras universais. De repente a melhor explicação vem do exemplo: os escritores mais machos que li na vida foram Graciliano Ramos, Fiódor Dostoievski e Clarice Lispector. Essa macheza sempre me remete a algo de implacável, algo de extremo, algo de urgente. Os artistas machos me destroem eternamente provocando em mim grandes experiências de criação. São os mais obcecados, os mais sentimentais. Já não são um coração que pulsa, mas que sangra. Como os zumbis de Lucio Fulci se entregam de tal forma ao momento presente em si que acabam engolidos pela eternidade de uma atualidade que nunca deixa de se renovar. É claro que há o valor dos delicados, dos contemplativos (Sofia Coppola dirigiu meu filme favorito de todos os tempos, e não sou louco de jogar pela janela as coisas que vivi segurando a mão de Virginia Woolf e Anton Tchekhov); mas ainda estou inebriado pela macheza de Death Proof – então me permito este direito ao grito.

Tarantino, cineasta do nosso tempo, encara a imagem em movimento do mesmo jeito que só um homem que é pura lascívia (em todas as coisas nobres e torpes que a lascívia implica) encara uma bela mulher. Mais uma vez pegando uma idéia de Mateus Moura, o cinema desse diretor é o mais próximo que podemos chegar de todo o prazer transcendental do sexo, ato que envolve todos os sentidos em toda a sua potencialidade estética. E toda a discussão a respeito dos limites entre prosa e poesia precisa se atualizar diante da perfeita mistura dessas duas vertentes artísticas que percebemos nesse filme.

Se um dia eu precisar fazer alguém entender o que é “cartase”, o trabalho vai ser simples: “Assista a qualquer filme de Quentin Tarantino, ou Alfred Hitchcock”. O nível de envolvimento que o criador de Kill Bill alcança em suas obras só pode ser ilustrado pelas palmas, pelas risadas, pelos pulos e pelas lágrimas involuntárias que nos acometem durante a vivência de qualquer um de seus filmes – vivência de uma outra vida, diga-se de passagem. E nessa capacidade narrativa sobrenatural para “contar uma história”, somos abençoados com sequências que explodem do mais puro e irrefreável lirismo abstrato: o corpo de Zoe flutuando em alta velocidade sobre uma estrada sem destino, os single-shots mais lindos do mundo para as mulheres mais lindas do mundo quando precisamos nos despedir de seus belos corpos antes que eles voem em direção ao nada no espetáculo daquela tragédia em alta-velocidade, os pés de Jungle Julia se espreguiçando nos pingos de chuva, a câmera nos guiando pelo seu tornozelo, suas pernas, seu quadril, os caracóis do cabelo...

É sensação e narração, é prosa e é lirismo. É a deflagração da harmonia entre música e imagem: em toda a sensitividade da música e em toda a hipnose da imagem.

O Cinema é a mulher de Tarantino, dançando no colo do diretor uma interminável lap dance que, para nossa sorte, deixa este homem-criança repleto do mais inefável tesão.

Quentin Tarantino sabe, e nos ensina, que tem coisas que só o cinema faz por você.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Where the truth lies



Toda arte é feita para ser apreciada.

O pintor espera que seus quadros sejam vistos, o escritor espera que seus livros sejam lidos, o dramaturgo espera que suas peças sejam assistidas. Este momento de contato entre público e obra de arte é um ato de comunicação: alguém (o artista) envia uma mensagem (sua obra) e nós (os potenciais apreciadores) a recebemos das mais diversas formas.

Toda a comunicação pode ser facilitada por um veículo que seja eficiente em transmitir a mensagem, e por 50 anos a televisão foi um dos grandes veículos de difusão das mais diversas obras (perdendo hoje, talvez, para a internet).

Atacada por Adorno e Horkheimer (e muitos outros) como o veículo das massas, a responsável pela idiotização da audiência, a destruidora da essência artística através da produção industrial de novelas, tele-jornais e séries, a TV indiscutivelmente teve sucesso em sua proposta primeira: levar o que quer que fosse que ela apresentava para a sala e os quartos das pessoas ao redor do mundo.

Quando assistimos a uma final de Copa do Mundo sabemos que não estamos sozinhos, mas na companhia de bilhões que se reúnem em vários países para vivenciar a mesma experiência. E esse potencial de conectividade (sem sombra de dúvida ligado ao poder aquisitivo dos donos das gigantes da comunicação) fez da TV uma presença incontornável nos lares humanos.

Mas o que é feito dessa capacidade de atingir um número vertiginoso de pessoas em escala global? Ou melhor, o que pode ser feito dessa capacidade?

Um homem de mais de 30 anos relembra de sua infância na década de 60, quando tudo o que ele vivenciava era a mais assustadora e maravilhosa novidade. Um chefe de família com distúrbios emocionais tenta se adequar a violência inerente à sua profissão de mafioso. Um homem que perdeu sua identidade e caminha em direção à auto-destruição como meio de atingir o tão sonhado auto-conhecimento. Essas premissas não se tratam de um filme de Fellini, nem de Martin Scorsese ou de Michelangelo Antonioni, mas sim de, respectivamente, Anos Incríveis, Família Soprano e Mad Men, exemplos da excelência que algumas séries de TV tem alcançado nos últimos anos – e que foram ou são acompanhadas religiosamente pela audiência “idiotizada” de que Adorno e Horkheimer tanto reclamavam na metade do século XX.

Assim como o cinema já foi considerado o patinho feio das artes (era um entretenimento de feira barato), hoje a televisão ainda é vista como um campo impermeável à possibilidade de verdadeira expressão artística. Mas as séries citadas acima (e muitas outras ainda) não só mostram que esta impermeabilidade à arte é um falso obstáculo, como confirmam (episódio após episódio) que esta é uma união que gera belos frutos.

Dentro do modo de produção televisivo (o difícil equilíbrio entre a permanência de uma identidade autoral e a capacidade de satisfazer o público) há grandes artistas (como Carol Black, Neal Marlens, David Chase e Mathew Weiner) que atingem o feito de nos entregar produções que mostram que o essencial não é satisfazer os telespectadores, mas instigá-los. Pois o que pode uma tacanha rotulação que afirme que em determinado lugar não há possibilidade de arte diante de provas cabais dadas por grandes artífices de que a arte sempre pode brotar de toda e qualquer fonte?

Uma das mostras de tanta capacidade criativa pode ser assistida hoje por qualquer um com TV a cabo ou internet banda larga: a série Mad Men. Donald Draper, o protagonista da série ambientada nos anos 60 em uma agência de publicidade, é o personagem televisivo da década (e sem dúvida uma das maiores conquistas de toda a história da TV): o violento, controlador, ambíguo e melancólico Draper. O perdido, solitário e sem raízes Dick. Na radiografia de seu passado nos deparamos com a angústia e o desespero de uma origem mísera, de um crescimento doentio e de um presente sombrio.

A série, em sua quarta temporada, vem, com a contundência inerente aos que dominam a sutileza, expor cirúrgica/liricamente o interior do indivíduo perseguido pelo passado e acuado pelo futuro; e no último episódio exibido nos preenche com a importância de se ter alguém que nos conheça nessa vida a partir da (des) construção da cumplicidade entre Don e Peggy. A ex-secretária e o poderoso patrão, em uma noite verdadeiramente passada na companhia um do outro, se dão conta da irmandade de seus destinos: são dois indivíduos que relutam em aceitar um destino que lhes é imposto por eles mesmos, esperneando sempre que são obrigados a seguir em frente pagando o preço de afundarem mais e mais na solidão. Só que realmente não estão sozinhos, ou melhor, estão sozinhos juntos.

Nesta série todos os sobreviventes estão mortos: a histérica Betty, o decadente Roger, a vaidosa Joan, os solitários Don e Peggy. Mathew Weiner, criador e produtor da série, tem a sensibilidade de nos fazer compreender que não se trata apenas da falta de direção para a qual os anos 60 apontavam, mas sim, essencialmente, para a inexistência de um norte que é também essência da condição humana – demonstrando isso pelas elipses no tempo que desnorteiam público e personagens, pelos planos-detalhe que insistem em mostrar mãos que não encontram outras mãos para segurá-las, pelo rigor obsessivo nos enquadramentos e movimentos de câmera que só fazem saltar aos olhos o caos que comanda a vida daqueles seres.

Este último episódio de Mad Men (e todos os anteriores, em maior ou menor grau) é prenhe da irascível insistência humana de continuar caminhando sem qualquer garantia de que, um dia, se chegará a qualquer lugar que seja. É o mais esmagador dos medos. É a mais nobre das esperanças.

São homens loucos. Não somos todos?

sábado, 11 de setembro de 2010

A Criação

Que palavras vêm a nossa mente quando pensamos em criar? O que este conceito evoca em nosso espírito?
Novo, vida, movimento, arte. ARTE. Por mais complexo que seja definir o que vem a ser arte, penso que todos podemos concordar que se trata de criação: de personagens, de narrativas, de atmosferas, de sensações. Uma criação que é indissociável da mentira, do artifício, da encenação.
Li recentemente, em um texto que tentava definir poesia, que o poeta é aquele que faz uso de uma linguagem para alcançar aquilo que a ultrapassa. Concordo completamente. Afinal, quantas e quantas vezes após assistir um filme, ou ler um livro, ou admirar um quadro me peguei pensando: mas isso é mais que cinema, é mais que literatura, é mais que pintura – isso é um milagre. Milagre tão poderoso que demoro a me convencer que foi realizado por seres humanos, como eu e você.
Mas nada é mais divino do que o humano.
Este é um texto sobre o diretor Alfred Hitchcock, mas especificamente um texto sobre seu filme chamado Um Corpo que Cai, cuidadosamente escolhido para inaugurar o novo Cine Clube da APJCC na Casa da Juventude; e foi pensando em como eu escreveria esse texto que me dei conta de que quando se trata de Hitchcock não consigo deixar de lado as questões que sempre foram e sempre serão essenciais à arte.
Porque Alfred Hitchcock é um desses artistas que é a definição perfeita de sua linguagem. E Um Corpo que Cai é um desses filmes que se utiliza de uma linguagem para alcançar tudo aquilo que a transcende. A tentativa de um melancólico detetive de compreender uma mulher que é a mais pura e devastadora demonstração da capacidade de arrebatar o público que a imagem possui é mais que filme, é mais que cinema, é mais que arte – e exatamente por isso é plenamente essas três coisas.
Existe algo de sagrado em cada fotograma dessa obra – algo de inviolável, de inalcançável, de indescritível. Cito, para não me perder em adjetivos, a sequência em que o detetive leva a jovem mulher para passear em um bosque repleto das árvores mais antigas do mundo: seres que já viram de tudo nessa Terra. Em um misto de delírio, lucidez, desejo e amor presenciamos a decomposição do tempo, do espaço, e a ampliação vertiginosa do horizonte daqueles dois personagens amaldiçoados. O detetive pergunta para a jovem “Onde você está agora?”, ao que ela responde “Aqui, com você”. É tudo o que podem saber. É tudo do que podem ter certeza. Na encenação diabolicamente arquitetada pelo marido da jovem surge, contrariando todas as possibilidades lógicas, a mais assombrosa Verdade: é que o detetive passa a amar a mentira, tão bem ela foi contada.
E o que é essa relação se não aquilo que nós mesmos (o público) estabelecemos com esse filme, com a arte em geral? Pois há séculos e séculos a humanidade se põe diante de obras de arte, conscientes de sua mentira, de seu universo ficcional, e se deixa envolver tão completamente em sua teia de invenções que nessas grandes histórias encenadas acabamos por nos deparar com o mais essencial de nós mesmos.
A pergunta é longa e complexa, e a mim só resta reconhecer humildemente a minha incapacidade para respondê-la frente a genialidade da maior obra-prima do Deus Alfred Hitchcock.