segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Querida Wislawa,

como você está? Espero que bem. Melhorei exponencialmente após ler suas cartas tão carinhosamente feitas especialmente para mim; achei a delicadeza de escrevê-las em forma de poemas cativante e devo dizer que me sinto, de alguma forma, curado do que quer que fosse que estava me devorando.

Me contaram que você não está mais tão por perto assim, aparentemente ocorreu uma grande e irreversível viagem no começo do ano, é isso? Bom, tanto eu quanto você sabemos que entre nós dois não existe distância irreversível, sua mão está sempre ao alcance da minha e, também por isso, obrigado.

É preciso confessar o alívio que você me provocou ao mostrar que, no que diz respeito a expressão, não existe tanto assim o que gostamos tanto de chamar de "barreiras da tradução". Eu, olha que engraçado, sempre me considerei refém da tradução e foi preciso suas cartas para me mostrar que o essencial realmente não está na palavra. Sabe, fazia um tempo eu suspeitava que nem tudo era morfologia nesse mundo, pois você foi a confirmação disso - porque sempre que leio (e te garanto que já li e reli muitas vezes) "Tem uns quarenta anos, mas não agora", sei que há algo tão maior que o "tem" o "uns" o "quarenta" o "anos" a "," o "mas" o "não" e o "agora", algo maior ainda do que a junção dessas palavras, algo maior ainda que o feixe de luz que perpassou sua mente ao descobrir esse verso.

Há algo maior, querida Wislawa.

Há algo maior que o Vietnã naquele "- São" de uma mulher sem memória, há algo maior n'"A vingança da mão mortal", do que uma mão e um lápis, há algo maior do que a rima, a métrica, a técnica. Maior do que você Wislawa (que é uma mulher gigante), algo que foge do seu controle, como também fugia ao controle de Breton, de Duras, de O'Connor.

Acho que uma folhinha voou de mim até você, ou que sua bola se perdeu em algum arbusto da minha infância, ou ainda que tentamos entrar na mesma pedra só para procrastinar ainda mais a cruel e insensível tarefa de redigir um currículo.

Procrastinar com você foi tão bom que pareceu, em certos momentos, com criação.

Me escreva mais, certo? Algo me diz que ainda vou precisar muito do efeito de flutuação que suas palavras provocam em mim. Prometo sempre responder, não importa se de formas inteligíveis, como você bem sabe.

Te amo Wislawa, 
e já estou com saudades.

Felipe.


sábado, 3 de novembro de 2012

BANG BANG PJ!



Esse ano conheci a PJ Harvey.

As referências eram ótimas (se a Rory gosta, deve ser bom, etc etc) e não havia nada que indicasse que eu não fosse gostar. Não se tratava de um risco - mas aí é que está, dentro do melhor que era esperado PJ Harvey foi ainda mais longe. Tão longe que achei necessário dizer alguma coisa.

Primeiro: criar expectativas a respeito dela é completamente inútil, talvez porque, como Patti Smith e Joni Mitchell, ela esteja completamente comprometida com algo que vai além de si mesma, além do público, além mesmo da música. Talvez o que pudesse ser chamado de profissão de fé.

A questão é que acho uma bobagem reclamar que em White Chalk ela deixou de ser a roqueira que era em Rid of Me e To Bring You My Love pra se tornar uma filha chata da Vashti Bunyan, ou que Stories From the City, Stories From The Sea é um álbum feito pra vender, ou ainda que Let England Shake é um disco histérico só porque ela pega pesado nos agudos: porque todas essas definições simplesmente não existem pra PJ Harvey; foram só coisas que, sendo ditas tantas vezes, passaram a parecer proposta do artista e não rótulo imposto pelo público.

Pra abraçar Polly Jean o mínimo que se pode fazer é dispor-se a uma liberdade tão absoluta quanto a dela. Não dá pra ouvir um disco pensando que ele vai continuar o último, essa mulher é pura ruptura e pesquisa - e aqui, nesse ponto, é que ela se revela como constante e excitante risco. Não é preferir "Angelene" a "Down by the Water", ou "Dry" a "The Soldiers", ou tentar descobrir qual o melhor disco dela, porque é completamente infrutífero comparar a PJ Harvey a ela mesma, no máximo se chegará a um diagnóstico de esquizofrenia ou de incongruência.

A importância de ouvir PJ Harvey está nessa possível reeducação de nossa interpretação tão pré-disposta a competição que aprendemos a cultivar, tão viciada na comparação, tão obcecada pelos prêmios e vitórias de uma obra de arte sobre a outra. Chega de colocar os artistas pra correr como cavalos em uma maratona. A obra de PJ Harvey é uma gargalhada na cara de quem insiste em troféus e estrelinhas, e um afago mais do que necessário para quem está disposto a assumir riscos (principalmente, o risco da falha).

Arte é um ato de coragem.