terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Com açúcar, com afeto




Eu tinha saído da casa dos meus pais e não tinha conseguido passar nos vestibulares que tentei quando o Dumbledore morreu. Quando Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado voltou definitivamente para destruir o mundo da magia eu me vi, pela primeira vez na vida, sem saber o que fazer. Foi em 2005/2006, foi quando me encontrei pela última vez com Harry Potter. Nos anos seguintes as coisas, óbvio, mudaram. De distração, literatura se tornou um comprometimento, um trabalho, uma idealização. Vieram tantas pessoas novas e Hogwarts ia ficando cada vez mais distante, pro bem e pro mal.

Caso ainda não tenha ficado claro esse é um texto muito pessoal. E caso também ainda não tenha ficado claro esse é um agradecimento muito humilde. Porque me aconteceu de 5 anos depois eu ter a honestidade de ler a última parte, o último livro, as últimas páginas daquilo que segurou a mão trêmula da minha pré-adolescência: me reencontrei com Harry, Hermione, Rony e todo o resto do pessoal; e foi como reencontrar o abraço da minha mãe depois de um longo tempo fora de casa.

É, eu sei: “mas se não fosse Harry Potter seria outra coisa!”. Mas, ai é que está, Foi Harry Potter, foi a J. K. Rowling a mãe do meu amor pelos gênios que eu encontraria depois; foi Harry, Hermione e Rony meu modelo de amizade pra vida (do lado de Woody e Buzz, Mike e Sully); foi minha vontade de viver outra vida que me fazia tanto querer uma carta de Hogwarts: sempre querendo escapar, sempre; e em Harry Potter todo mundo voava, todos estavam começando de novo e descobrindo em si possibilidades de que não sabiam ser capazes.

É muito bobo. Sou muito bobo. Porque lendo a última parte dessa vida que eu tive não deixei de notar o uso banal de reticências, a arregimentação amadora de alguns acontecimentos, o desenvolvimento superficial de certos personagens, a trivialidade da linguagem: mas quem me dera eu lesse todos os livros do mundo com a paixão e a emoção que me acometeram ao ler esse; quem me dera meus olhos se obrigassem a correr mais rápido pelas linhas para chegar logo a próxima página toda vez que me propusesse a entrada na nova realidade da linguagem; quem me dera eu ainda tivesse a empolgação descompromissada dos meus 12 anos.

Não me entendam mal, se ganha tanto quanto se perde (ou algo próximo a isso), mas o que somos nós se não toda essa memória, toda essa construção que não cansamos ou não podemos deixar de revisitar? É preciso deixar para trás ao mesmo tempo que trazemos sempre conosco aquilo que, no entanto, não podemos recuperar.

Não, não chamo Harry Potter de guilty pleasure ou qualquer uma dessas frescuras que a gente usa quando quer ficar na defensiva: chamo a história de J. K. Rowling de “minha”, porque é isso que ela é. Obrigado pelos últimos 10 anos Harry, mas agora que Lord Voldemort já foi derrotado e que esses anos todos se passaram não há mais nada que possamos fazer um pelo outro.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Da beleza de não saber o que dizer


Permitam-me falar do que se passou quando revi Os Excêntricos Tenenbaums hoje:

Todo solitário reconhece outro solitário, é instintivo. Passam a ser então, nas palavras de Kioskerman, sozinhos juntos. Margot, Chas, Richie, Eli, Ethel, Royal - são os solitários que nos fazem companhia. São a família da qual fazemos parte por 2 horas. Se o menino é o pai do homem, Wes Anderson é definitivamente um filho obediente: que outro adjetivo pode ser mais justo do que "infantil" quando se trata dessa imaginação que é pura força criativa, puro deleite estético, pura sensibilidade Humana.

É a realidade do ficcional. É a legitimidade do artificialismo. São as verdades do coração que jamais pode (ou deve) conhecer a razão. É Margot nos ser apresentada como todos os outros personagens foram para depois ser revelada em slow, através da voz do Anjo Nico, enquanto amor da vida de um homem (causa e fim de tudo). É Chas e o frenético registro do seu pânico pós-traumático que desagua em um tranquilo desfecho de plano-sequência que nos mostra a beleza inestimável de podermos compartilhar nossa dor. É a castração suicida de Richie, testemunhada por uma câmera fixa que ilumina o personagem da forma como ele vê a vida então - sem meio-termo, ou se vive ou se morre.

A câmera-Wes narra o sentimento expressando-o. É um amor que sangra às cântaras de tanto afeto, de tantas lembranças. É a impossibilidade de voltarmos para o lar do jeito que éramos quando o deixamos.

Os Excêntricos Tenenbaums é a mão que se despede, mas é também a lágrima de saudade e contentamento das verdadeiras despedidas. Gostaria de ser uma pessoa melhor para explicar a quem quer que seja que esteja lendo esse texto como Wes Anderson atinge o que vemos na tela, mas também fico contente ao perceber que existe esse homem que me deixa em silêncio diante de tanto amor (pelas artes, pela vida, pelo ser humano).

Irônico escrever um texto fracassado para um filme que é o mais puro êxito. Mas é esse o meu humilde agradecimento à Família Tenenbaum.





terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Tragam-me a cabeça de Sofia Coppola

Maria Antonieta é a guilhotina de Sofia Coppola. Motivo: depois de ser ovacionada pelo sucesso de Encontros e Desencontros a diretora resolve tratar da rainha mais vilipendiada da França, sem jamais abrir mão de sua marca estética pessoal. O que surpreende em Maria Antonieta é o aparente ímpeto da diretora de levar essa estética, que desenvolveu nos seus dois primeiros filmes, a extremos que irão testar até onde esse estilo pode ir. O poder de expressão da câmera-Sofia é infinito? Haverá aquilo que ele não abarca? Aquilo que não lhe diz respeito e com o que não deveria se meter? Perguntas que lembram o Rodrigo S. M. de A Hora da Estrela em toda sua dúvida sobre se deve ou não criar Macabéa, heroína tão “externa” e oposta a ele mesmo.

Coppola, como todo bom autor (e como Rodrigo S. M.), é incapaz de não tragar Maria Antonieta para o universo narrativo que construiu com seu cinema, em todas as implicações desse universo – que, por sinal, a diretora sempre fez questão de enfatizar (iluminação, trilha sonora e montagem são as principais). Temos, então, que a rainha da França é mais uma menina deslocada e sem rumo que tem nas mãos o desafio de sobreviver ao tédio e a inércia da sua situação. A diferença essencial entre este filme e os dois anteriores de Sofia (no que diz respeito à personagem, e não podemos esquecer que o cinema de Coppola é um cinema de personagens) é que em Maria Antonieta se dá, em certos momentos, uma franca celebração ao modo de vida que a protagonista passa a levar em Versailles. É a sequência “festiva” do filme; mas trataremos disso adiante.

Uma protagonista à margem

A jovem Maria Antonieta é a protagonista de Sofia Coppola, mas não é, de forma alguma, o centro dos acontecimentos do filme. Mais do que as irmãs Lesbon, Bob e Charlotte, Maria está absolutamente acuada pelos mais diversos extra-campos: a situação política entre Áustria e França, as fofocas da corte que a arremessam ao status de celebridade e, claro, a Revolução Francesa, maior e mais devastador dos extra-campos. A situação sem saída da protagonista ganha sua representação mais violenta no choro explosivo após o nascimento do filho de seus cunhados enquanto ela nem mesmo consegue a atenção do seu marido: trancada no quarto, chorando contra a parede, Maria Antonieta procura, literalmente, fugir da câmera, que não desiste da empreitada e a obriga a ter sua tristeza registrada.

Percebendo o largo uso de fade-outs desta obra somos levados a conclusão de que Sofia quis dividir, claramente, sua narrativa em partes com temáticas bem distintas (que ganham representações distintas na tela). A primeira parte pode ser chamada de “O que Maria Antonieta deveria ser”, começa durante os créditos: Maria Antonieta, pluma imensa nos cabelos, cercada de doces por todos os lados, uma empregada fazendo suas unhas; ela olha para nós, sorri e nos convida para a marcha fúnebre que foi sua trajetória (como toda marcha fúnebre haverá o momento para a celebração da vida, apesar de seu inevitável destino ser a cova). Conhecemos a menina de 14 anos austríaca que acorda em seu quarto e descobre que vai se casar com o próximo rei da França. Enquadramentos grandiosos, contemplativos e aristocráticos dão o tom – aquela menina está destinada à grandeza, à realeza. Mas no caminho até a fronteira com a França voltamos ao táxi que leva Bob e Charlotte de volta ao hotel; a personagem olha pela janela, brinca com a mão, conversa com as amigas, olha a foto do “namorado” - são os tempos mortos de Sofia. Porém, volta o protocolo; no exato ponto em que a Áustria termina e começa a França a futura rainha desce, tira todas as suas roupas em território austríaco, atravessa a fronteira, e coloca seu novo figurino francês, a câmera também muda de lado e espera a saída da personagem da tenda onde está sendo reinventada, ela sai, caminha calmamente em direção a câmera, pára, olha de novo para nós e não sorri. “É sobre esta menina que falaremos”, é o que está sendo dito. Sofia sabe que não está escrevendo um livro, nem pintando um quadro, está, sim, fazendo um filme e a câmera nunca será esquecida pela diretora como a principal responsável pela concepção do universo que ela quer nos apresentar.

A solidão

Certo, esse título poderia ser usado para o filme inteiro, mas após a apresentação de Maria Antonieta a corte, o casamento com Luis XVI e a compreensão de qual destino foi escolhido para ela, a protagonista se dá conta do caminho sem volta em que foi colocada e Sofia se dedica a filmar, com toda a potência da grandeza imposta pelo palácio de Versailles, o que aquela menina deve ser para poder desconstruir essa idéia posteriormente mostrando o que ela de fato foi. Temos a passagem de tempo que repete a mesma rotina ao som de música clássica, os planos fixos, a inexistência de diálogos e o devastador plano de Maria na sacada de Versailles, sozinha, melancólica, prostrada e impotente diante de toda a realidade que lhe foi imposta, enquanto em off vem a intimidadora voz de sua mãe, explicando toda a importância do papel que Maria deve desempenhar na corte francesa.

A farra

Tanta solidão e melancolia têm que ganhar evasão em alguma coisa, e se estabelecermos uma proporção entre o número de sapatos, perucas, vestidos, doces e bebidas que Maria Antonieta comprou e sua tristeza teremos uma boa idéia de como ela estava desesperada. E aqui entra em cena uma das grandes habilidades de Sofia: registrar o inebriante alívio que o escapismo farrista pode proporcionar aos seus personagens (lembremos da festa em Tóquio e do baile de fim de ano das irmãs Lesbon).

Esta farra é o entre atos de Maria Antonieta, é quando se dá a consagração da agora rainha pela aristocracia e quando Coppola mais apostas nos excessos que tão bem representam essa fase: montagem mais elíptica do que nunca (a continuidade clássica só é usada nos momentos mais “protocolares”), a trilha sonora mais anos 80 do que nunca, câmera mais na mão do que nunca. É a sequência bêbada da ressaca de Maria em um quarto cheio de garrafas, é a amiga junkie e a possibilidade de ficar com outro cara na festa de Paris. É quando Siouxsie and the banshees se torna música ambiente e não só trilha sonora. Mas todo o fim de bacanal precia de

Uma paz

A parte do petit Trianon (casa no campo de Maria Antonieta) é a flor que desabrocha durante o filme: sem espartilhos, quase sem trilha sonora, luz natural e a exacerbação da integração de personagem e ambiente se dão aqui. Vem uma desnecessária frase de Rousseau para sublinhar a idéia que as imagens, por si mesmas, já passam: o mal do homem são os outros, de Maria Antonieta então nem se fale! A câmera tem agora um carinho maternal por sua protagonista, pela primeira e última vez livre, não acuada, feliz. Interessante se dar conta de como essa sequência divide com a anterior a mesma sensação inebriante de bem-estar, dessa vez, quem sabe, mais legítima e duradoura.

A queda

Voltamos para Versailles e a Revolução Francesa é cada vez mais citada. Sofia decide abrir esta última parte filmando a saudade, a lembrança: o campo de Maria na janela e o contracampo de sua memória imaginando o amante na guerra americana, ouvimos I WANNA BE FORGOTTEN AND I DON’T WANNA BE REMINDED e a rainha corre pelo corredor, se joga na cama e entrega-se à masturbação da fantasia, ao deleite de lembrar, à angustia de saber como poderia ter sido. A aparente leveza deixa o filme, as cores se tornam chapadas e distintas, volta a câmera fixa: é que Maria perde um filho e a população francesa passa fome. Somos relembrados de quão à margem essa mulher estava, de como ela não tinha a menor idéia do que se passava, de como tudo aquilo foi cruelmente forçado para ela, mesmo que embrulhado em uma embalagem encantadora.

O maior dos extra-campos entra com o som da turba enlouquecida de fome, naquilo que mais se aproxima de uma redenção, Maria faz uma reverência a esse extra-campo cuja existência desconhecia, mas que tanto determinou sua vida. A desorientação infantil já era latente (quando o rei morre a primeira frase de Luis XVI é “Que Deus nos ajude, somos jovens demais para governar”, frase que poderia ser também “somos jovens demais para morrer"), Maria não vai passar da juventude, o filme não pode passar da juventude, não só porque é o que mais lhe interessa, mas principalmente porque é na efemeridade do jovem que está sua beleza. E o maior dos fetiches de Sofia (e eles são muitos) é a Beleza.

Como o fim da juventude, o fim de Maria Antonieta é melancólico e sem perspectivas de futuro, por isso a última frase da protagonista é “I’m saying goodbye”, para a juventude, para a vida, para o público. Se os filmes de Coppola são seus personagens, eles não podem ir além das limitações dos mesmos, a não ser por um momento: a última montagem elíptica, o último plano é do quarto destruído do casal real; a sempre tão interessada por interiores diretora mostra o que restou dos seus personagens agora que caminharam para a incontornável cova: destruição e vazio (talvez, também, tudo o que eles realmente foram).


quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O que não se explica


Como eu não entendo NADA de música vou explicar minha relação com o trabalho do My Bloody Valentine e do Mazzy Star da forma que sempre me foi mais próxima: explícita e sentimental.
As baterias são a chuva constante e grossa batendo contra o asfalto endurecido pelo sol do passado.
Os baixos são o vento que se intromete pelas minhas janelas, um som atrás da minha percepção.
As guitarras são a harmonia sinuosa entre chuva e vento que me vara o coração.
Os vocais são a alma da tempestade que é, obviamente, a minha própria (tempestade epiritual, espírito tempestuoso).

When you sleep é o sonho que tenho; Halah é o sonho que gostaria de ter tido.