sábado, 18 de setembro de 2010

O lap dance eterno




Antes de qualquer coisa esse texto existe por dois motivos: Death Proof, de Quentin Tarantino, e o texto “Cinema é coisa de macho”, de Mateus Moura (que vocês podem ler aqui: http://cinemateusmoura.blogspot.com/2010/09/cinema-e-coisa-de-macho.html).

Para evitar qualquer histeria (de minha própria parte) ou arroubo pseudo-feminista-sexista, quero me deter um pouco no que vem a ser esse “macho”, esse adjetivo que é tão bem-sucedido na classificação de certas grandes obras universais. De repente a melhor explicação vem do exemplo: os escritores mais machos que li na vida foram Graciliano Ramos, Fiódor Dostoievski e Clarice Lispector. Essa macheza sempre me remete a algo de implacável, algo de extremo, algo de urgente. Os artistas machos me destroem eternamente provocando em mim grandes experiências de criação. São os mais obcecados, os mais sentimentais. Já não são um coração que pulsa, mas que sangra. Como os zumbis de Lucio Fulci se entregam de tal forma ao momento presente em si que acabam engolidos pela eternidade de uma atualidade que nunca deixa de se renovar. É claro que há o valor dos delicados, dos contemplativos (Sofia Coppola dirigiu meu filme favorito de todos os tempos, e não sou louco de jogar pela janela as coisas que vivi segurando a mão de Virginia Woolf e Anton Tchekhov); mas ainda estou inebriado pela macheza de Death Proof – então me permito este direito ao grito.

Tarantino, cineasta do nosso tempo, encara a imagem em movimento do mesmo jeito que só um homem que é pura lascívia (em todas as coisas nobres e torpes que a lascívia implica) encara uma bela mulher. Mais uma vez pegando uma idéia de Mateus Moura, o cinema desse diretor é o mais próximo que podemos chegar de todo o prazer transcendental do sexo, ato que envolve todos os sentidos em toda a sua potencialidade estética. E toda a discussão a respeito dos limites entre prosa e poesia precisa se atualizar diante da perfeita mistura dessas duas vertentes artísticas que percebemos nesse filme.

Se um dia eu precisar fazer alguém entender o que é “cartase”, o trabalho vai ser simples: “Assista a qualquer filme de Quentin Tarantino, ou Alfred Hitchcock”. O nível de envolvimento que o criador de Kill Bill alcança em suas obras só pode ser ilustrado pelas palmas, pelas risadas, pelos pulos e pelas lágrimas involuntárias que nos acometem durante a vivência de qualquer um de seus filmes – vivência de uma outra vida, diga-se de passagem. E nessa capacidade narrativa sobrenatural para “contar uma história”, somos abençoados com sequências que explodem do mais puro e irrefreável lirismo abstrato: o corpo de Zoe flutuando em alta velocidade sobre uma estrada sem destino, os single-shots mais lindos do mundo para as mulheres mais lindas do mundo quando precisamos nos despedir de seus belos corpos antes que eles voem em direção ao nada no espetáculo daquela tragédia em alta-velocidade, os pés de Jungle Julia se espreguiçando nos pingos de chuva, a câmera nos guiando pelo seu tornozelo, suas pernas, seu quadril, os caracóis do cabelo...

É sensação e narração, é prosa e é lirismo. É a deflagração da harmonia entre música e imagem: em toda a sensitividade da música e em toda a hipnose da imagem.

O Cinema é a mulher de Tarantino, dançando no colo do diretor uma interminável lap dance que, para nossa sorte, deixa este homem-criança repleto do mais inefável tesão.

Quentin Tarantino sabe, e nos ensina, que tem coisas que só o cinema faz por você.

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