domingo, 6 de novembro de 2011

Só resta chorar (que é um jeito exagerado de sorrir)




Pete Docter fez UP, não bastasse isso já havia feito também Monstros S.A.

Hoje, revendo trechos dessa animação enquanto eu almoçava, pensei sinceramente que essa obra é daquelas que são, antes de tudo, educativas.

Educativa porque nos ensina a ver, porque nos ensina a sentir. Toda a cuidadosa concepção de cada quadro, cada plano, cada parte da montagem - é tudo um grande aprendizado sobre o que é ser sensível.

Abrindo portas pra novos mundos, correndo freneticamente pelo direito de estabelecer laços com pessoas improváveis, esperneando como só as crianças de espírito sabem espernear contra as injustiças do mundo, Monstros S.A. sempre abre meus olhos para a Beleza (não à toa trata do sentimento que eu mais respeito e admiro, a Amizade).

Os olhos marejados de Sully, o humor que encobre a ternura de Mike, a percepção pura e criativa de mundo de Boo - não são personagens, apenas, são super-heróis, são salvadores do mundo.

Planos-detalhe que fazem questão de mostrar objetos minúsculos (um pedaço de porta, um desenho no papel amassado) em mãos monstruosas provando que, diante da delicadeza, só resta à brutalidade calar-se, sair de cena e deixar que a verdadeira beleza seja.

E o final... As mãos feridas de Mike, a porta praquele mundo inteiro e estranho que é Boo, a expectativa do reencontro, o extra campo que nos encanta com um "Gatinho!" que estávamos implorando para ouvir ainda mais um vez, nos cativa, nos mata para nos ressuscitar no sorriso de Sully, que já não é mais monstro, já não é mais indivíduo, é já e para sempre puro amor e felicidade.

Como é possível chorar tanto em um final feliz?


domingo, 11 de setembro de 2011

Salvação


Bowie e Kicchie não têm a menor chance.
Miseráveis, solitários, abandonados e perdidos – é assim que os encontramos e é assim que os deixaremos. Num mundo que não admite a beleza, o sonho, a felicidade, esses dois minúsculos apaixonados vão ser esmagados em um piscar de olhos. Nicholas Ray foi, talvez, o diretor que melhor compreendeu a exuberância de tentar já sabendo de antemão que não se irá conseguir. Amarga Esperança, seu primeiro filme, já deixava claro que era dos desesperados que Ray queria falar (como Johnny e Vienna, Jim e Judy). Desesperados feitos de um vidro remendado e frágil – mas desesperados.
Este senhor que nunca envelheceu, tão rigoroso e sensível, resolveu dar início a uma das filmografias mais essenciais do cinema nos contando um conto de fadas. Um conto de fadas americano, sombrio e trêmulo – mas um conto de fadas. “Esse rapaz e essa moça não têm lugar no mundo” é a frase que inicia o idílio, o que vem depois dela é puro coração.
Enquadramentos emoldurados por corpos, olhares que dificilmente se encontram, a luz do sol que raramente aparece (e que, quando aparece, é percebida através do olhar luminoso de Kicchie – uma das mulheres mais lindas do cinema). O casamento é um ato de desespero, o amor é um ato de desespero, o quarto no hotel e a gravidez são um ato de desespero – e também, principalmente, de coragem.
Não, eles não são Bonnie e Clyde, são antes Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Tomas e Tereza; nosso mundo não é capaz de comportá-los, de abrangê-los.
Bowie sai do quarto de hotel com raiva porque perguntou as horas a Kicchie e ela, do fundo de sua frustração, não respondeu; só para logo depois correr até a porta que ele deixou aberta e dizer que são “10 para meia noite” (o horário em que se casaram), o normal seria o contracampo de Bowie, mas Nick Ray não é normal – então que a câmera continue em Kicchie e registre através do seu sorriso e seu murmúrio (“I’ll wait for you”) que aqueles dois seres humanos se amam.
Bowie é assassinado, Kicchie ergue-se após tocar o corpo frio do homem da sua vida e Ray manda às favas qualquer noção de continuidade clássica: são dois planos contínuos e contraditórios, em um Kicchie olha para os policiais em desafio e no outro Kicchie olhar para si mesma infinitamente triste; a realidade objetiva jamais seria capaz de expressar uma mulher com tantos sentimentos arrasadores no peito.
Kicchie chega à porta do hotel, ela está de costas para a câmera, se vira e diz a frase que Bowie nunca havida proferido, mas que fez questão de registrar em carta antes da morte anunciada, “I love you”. Não, não é o fade-out que escurece a cena, antes Ray apaga todas as luzes – houve, uma vez, beleza naquele mundo, mas ela foi assassinada. Os olhos sempre tão brilhantes de Kicchie vagam agora por uma escuridão sem fim. Aí sim, fade-out.
Digo, então, aos sonhadores: não temam, quando, caminhando pelos vales da morte deste mundo, lhes parecer que tudo se foi, que já não há em que acreditar, peguem nas mãos esse filme e o amem. Ele os salvará.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A herança dos muleques


Peter Pan
A ficção é o exercício da capacidade de acreditar. Acreditar em personagens impossíveis, em enredos fantásticos, em imagens que são lindas por serem, justamente, falsas.
Clichê dos clichês, mas continua sendo verdade: as mestras nesse exercício de fé ainda são, e sempre serão, as crianças. Não sei se é o tempo menor de exposição a todo o cinismo do mundo que vivemos ou se é algo de sua compleição biológica/psicológica – o fato é que são elas as mais dispostas a entender a fantasia não como negação da realidade, mas como uma das formas de interpretá-la.
Nesses dois parágrafos aí em cima temos o que eu acredito serem os pilares narrativos mais importantes do cinema de Steven Spielberg: o incentivo da fé do público em um universo fílmico e a celebração das crianças. Justamente acusado do crime hediondo de “infantilizar” as platéias ao redor do mundo e de empregar em suas produções um tom ingênuo que tende a irritar os fanáticos pelo “realismo” ou pela “maturidade/seriedade” de uma obra de arte, Spielberg nem sempre é visto pela perspectiva que mais interessa: a de um diretor rigoroso e vigoroso que transformou para sempre os padrões de qualidade técnica das produções americanas – utilizando sempre de forma sensível os avanços técnicos pelos quais ele foi um dos responsáveis.
Assim, em sua postura moral e artística, Spielberg se assemelha bastante a um Walt Disney ou John Lasseter – na combinação entre grande estrategista de negócios e artista criativo que desafia, sim, sua linguagem.
Apesar da aparência esse não é um texto sobre o diretor de Jurrasic Park, mas sim sobre o fruto mais belo de um discípulo direto seu até agora: Super 8, de J. J. Abrams.


Terra do Nunca
Já no slow da primeira sequência acompanhada pela música de Michael Giacchino (o gênio por trás da trilha sonora de UP), que se inicia em uma metalúrgica onde ocorreu um acidente e se prolonga até o velório de uma mulher, temos a disposição daquilo que interessa a J. J. Abrams: uma localização cronológica que é muito mais sentimental que temporal, uma criança injustiçada pela violência estúpida da realidade, alguns adultos que, por mais que a amem, não conseguem adentrar o seu mundo. Nesse início Abrams enfrenta com ternura e minimalismo o desafio de construir diversas atmosferas que, juntas, irão compor uma outra ainda maior. Neste caso os planos próximos e subjetivos de Joe, sentado no balanço sozinho segurando um colar na mão; o plano severo e grave da mãe do amigo de Joe observando-o pela janela e conversando com o marido e o plano do pai de Joe expulsando, sem motivo aparente, um homem do velório, são todos fatores que, juntos e dispostos da forma como o são, nos localizam em um mundo frágil que foi, obviamente, assolado por uma tragédia. Teremos, mais uma vez, a conhecida batalha das crianças contra o mundo.
O que me leva a tocar no ponto que mais me interessa em Super 8: o meio através do qual Abrams consegue, fazendo uso dos clichês mais conhecidos de seu mestre, extrair reações tão sinceras, emocionadas e espontâneas da platéia. E por mais que aparentemente Abrams apenas reformule e reapresente o universo e a estética já trabalhadas em E.T., é importante lembrar que outros já tentaram este mesmo processo, com resultados que nem de longe lembravam a excelência dos melhores momentos de Spielberg (sendo o maior exemplo disso Robert Zemeckis). O que Abrams atinge é um equilíbrio muito mais complexo e profundo do que o de uma mera homenagem ou simples cópia: por um viés francamente paródico, ele escapa da tentação de ridicularizar o universo ao qual se refere, conseguindo revisitá-lo de uma forma tão criativa e vigorosa que, em determinados momentos, supera sua matriz (é inegável que Super 8 está muito acima de um Indiana Jones 4, por exemplo).
E como ele obtém tal resultado espantoso? Como um bom aluno o faz – aprendendo e criando. É exemplar o uso de efeitos especiais neste filme (chega a ser ridículo assistir a um filme de James Cameron após Super 8, afinal o que Cameron tem de histérico e inseguro, Abrams tem de comedido e certeiro), que são consequência da escola Spielberg de formação de diretores. Porém, mais que exemplar são sequências como a de Alice maquiada como um zumbi simulando um ataque a Joe: a delicadeza devastadora do campo/contracampo da cena (campo/contracampo que respeita e celebra toda a potência que um acontecimento daquele tem na vida de um garoto de 13 anos) atinge um efeito emocional que não é consequência apenas de um roteiro bem amarrado, mas principalmente da cuidadosa e rigorosa orquestração de cada plano envolvendo Joe e Alice. Desde a apresentação sobrenatural da personagem dela (um zoom-in que revela aos poucos a presença de algo que aqueles meninos quase não conhecem e que Joe acabou de perder: o elemento feminino), até o silêncio tenso de quando Alice se refere pela primeira vez à morte da mãe de Joe (mais uma vez potencializado pelo campo/contracampo), até o segurar a mão um do outro na última cena, Abrams trabalha com convenções que nós conhecemos de trás pra frente e que já foram tão mal utilizadas que são consideradas, hoje em dia, balela. O que me assombra é como este diretor de apenas três filmes transforma uma aparente camisa de força em um trampolim, e voa livre e sem cinismo por um universo que o precede em muitos anos.
A nostalgia em Super 8 não é resultado apenas de uma localização do enredo, mas principalmente da possibilidade que nos é dada de revisitar um modus operandi com o qual nos acostumamos e que, aparentemente, até seu principal fundador abandonou por algum tempo. Quando na última sequência nós sabemos que Joe vai soltar o colar que era da mãe (e que é a lembrança mais preciosa que tinha dela) e, com as mãos desocupadas, vai procurar as mãos de Alice como novo apoio emocional, nos emocionamos ainda mais por uma questão de antecipação do que de concretização. Sabemos que é aquilo que precisa acontecer – assim como as crianças aceitam com mais facilidade as regras da fantasia nós somo levados a aceitar que é, sim, aquele o único desfecho possível; onde as crianças, enfim, são levadas a sério e subjugam, mesmo que por pouco tempo, a realidade dura do cotidiano adulto. No fim das contas, não é questão de vencer o bem ou o mal (até porque o filme não propõe essa divisão), é, isso sim, sobre a valorização de certos ideais artísticos – como a imaginação e o rigor.
Interessante que os últimos três filmes que assisti (Film Socialism, do Godard, A Árvore da Vida, do Mallick e este Super 8) se detenham, em maior ou menor grau, nas crianças. Cada um apontado do seu jeito extremamente singular para uma direção de entendimento de nossas origens. Cada um chafurdando neste período da vida em que somos, aparentemente, mais verdadeiros; procurando as belas imagens que são belas por serem falsas, pedindo ao público que acredite, nos lembrando que mais importante que a verossimilhança é a Verdade, pelo menos quando falamos em arte.
Spielberg-Pan plantou, afinal, uma semente. A semente da infância. Eu prefiro esta ingenuidade infantil à “maturidade” de um Ron Howard ou de um Jason Bateman; diretores que a cada filme estrangulam um pouco mais a sua capacidade de criar. Levando para as telas tubarões assassinos, extra-terrestres amigáveis, dinossauros perdidos, Spielberg fez muito mais pelo cinema do que qualquer Spike Lee ou Paul Haggis – nos lembrando que para algo ser verdadeiro é só preciso acreditar, este diretor-criança salvou um pouco nossa geração, e tornou possível grandes espetáculos de sensibilidade e técnica como este afetuoso e necessário Super 8.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

“e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ (...) ‘estamos indo sempre para casa’”


Por prematuro que seja, é importante esse registro do primeiro impacto de A Árvore da Vida sobre mim. Um filme que, desde seu início, propõe ao espectador passar pela experiência transcendental que os filmes de Kubrick e Tarkovsky costumavam ser – e que, hoje, os filmes de Theo Angelopoulos são.
Diante de nossos olhos está um homem com uma missão sagrada: aquele ato tão difuso que se confunde entre a revelação e o enigma, chamado às vezes milagre, às vezes mistério e, nesse caso, cinema. Mallick, ao que parece, foi o diretor que melhor absorveu as mudanças ocorridas no romance do século XX – o fluxo de consciência de Faulkner e Virginia Woolf está lá, não há dúvida, mas transmutado para a imagem expressiva de um cineasta que desafia a câmera a uma corrida pelo registro daquilo que de mais divino existe nas coisas que nos cercam.




É já a epígrafe que nos localiza em uma obra essencialmente religiosa (porém não ascética), em que todos serão encharcados pela luz úmida e quente da criação, da graça. Mallick trabalha com forças que só sabem correr soltas, que não podem ser limitadas – e sendo a arte e o homem limitados por natureza (Mallick diz com todas as letras: “subjetivo quer dizer que só existe na sua cabeça, não pode ser provado”) podemos dimensionar o tamanho da empreitada que é filmar aquilo que sempre se excede e transborda, aquilo que nada pode conter. Durante a projeção chamaremos isso de várias coisas: Deus, vida, infância, memória, Mãe.
O presente da frustração (só o reconhecemos no filme porque sabemos que nunca romantizamos ou engrandecemos o presente) e o passado da origem guerreiam, aqui, a mesma guerra de Lavoura Arcaica – afinal, somos aquilo da onde viemos, e na lente líquida de Mallick reconhecemos o momento em que passamos a repudiar a origem que nos criou como somos, repudiando, assim, principalmente a nós mesmos.
A atmosfera uterina de constante segurança e risco, aquela sensação tão orgânica de sairmos de dentro de algo vivo e nos alimentarmos dessa vida, a possibilidade de olharmos para trás e contemplarmos nosso início, todas essas coisas, impregnam o quadro de Mallick e produzem a beleza quase exaustiva desta obra. Exaustiva e necessária – afinal, do início dos tempos até o fim de tudo, talvez o que de mais concreto reste ao ser humano sejam as imagens. A imagem translúcida, vibrante e graciosa da mãe. A imagem dura, consistente e vaidosa do pai. A imagem de um par correspondente a nossa essência na forma de um irmão.
Se em O Novo Mundo (especialmente na morte de Pocahontas) Mallick explorou o máximo que pôde as elipses, o não-dito, o extra-campo, o que o olhar só pega de relance; aqui ele parece ultrapassar-se a si mesmo e entregar-se por inteiro ao tão falado fluxo de vida que tudo leva (daí a imagem recorrente da água, o elemento que possui as partes mais indissociáveis de seu todo), na liberdade da linguagem que, na corajosa escolha de não limitar seu objeto, o torna mais misterioso e imperscrutável.
É besteira falar em presente, passado ou futuro. A noção de continuidade? Só existe a serviço da memória afetiva-transcendental-individual-coletiva. A cena? A sequência? O filme tem toda sua unidade justamente na forma como suas partes aparentemente não se cruzam, não se correspondem. Como se chegássemos a um lugar e, só então, percebêssemos que tudo que nos aconteceu durante toda nossa vida (e antes dela) nos levou até ali.
É muito, mas não é demais. Terrence Mallick acaba de tornar ainda mais divina a profissão de cineasta. O criador lança sua criação como desafio àqueles que pretendem entender a existência. É destino consumado que haverá o momento em que a criação desafiará o criador. Disso nenhum criador escapa. Assim como ninguém escapa da Graça e como ninguém escapa da Natureza, os corajosos também não escaparão desse filme, irão, sem sombra de dúvida, o mais rápido possível em sua direção.







sexta-feira, 17 de junho de 2011

Me leva junto Totoro



Meu Amigo Totoro é sobre a beleza. É sobre o pânico histérico que vem da possibilidade dessa beleza desaparecer diante dos nossos olhos.
Não é um épico; é um diário - onde, antes de qualquer coisa, o autor parece querer falar sobre como o tempo anda em círculos de conforto intermitentemente tomados de assalto pela melancolia.
Não é a fantasia que invade a animação de Hayao Miyazaki – somos nós (público, personagens) que invadimos a fantasia da mente mais intrigante e fascinante deste século. Daí que a imagem mais exata para a arte de Miyazaki seja o vôo: vôo de espírito, vôo de linguagem. Mei é, ela mesma, a própria Animação: a fluidez e vivacidade dos seus movimentos – como disse um amigo – jamais teriam a mesma espontaneidade no corpo de um ator; porque o que Miyazaki evidencia é um movimento que nem nossa retina é capaz de captar, apesar de ser notório que tal dança de membros ocorre na realidade.

Meu Amigo Totoro é o antídoto contra toda a vulgaridade, contra todo o cinismo e contra toda a maldade do mundo. Miyazaki quer falar, sempre, daqueles que não aprenderam ainda a ter vergonha de chorar, daqueles que choram gritando e voam sonhando enquanto árvores mágicas crescem a seus pés.
As duas irmãs protagonistas, na espera cruel que lhes é imposta, vão chutando com graça e curiosidade as pedras do seu cotidiano, e é neste hang-out infantil (e, geralmente, tão ignorado pelos grandes estúdios de animação) que está o interesse do movimento animado: o vento que põe tudo em movimento é Totoro, que é Imaginação, que é Criança, que é Animação, que é o Artista.
Repito: é desesperador voltar para este mundo em ruínas após tanto tempo na companhia do belo – é, no entanto, necessário; e, após Meu Amigo Totoro, até este nosso mundo se torna mais suportável.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Ao Humano e A L É M



Jogo
Penso que só há jogo quando há diálogo. Dialética. Não faz sentido criar uma estratégia e colocá-la em ação a não ser que se tenha em mente algo exterior a nós mesmos; algo que nos ultrapasse.
Não existe monólogo no jogo. Tudo é dirigido a alguma coisa.

Cena
Me parece que cena é aquilo que nossa percepção cinge. É nossa limitação e nossa liberdade de escolha. É o que se passa dentro e fora. É o que está aqui e lá. No diálogo (jogo) entre cenas configura-se A cena, essa quase instituição que respira através da subjetividade inescapável do ponto de vista, mas que, sentimos e sabemos, é bem maior do que nossos olhos podem (e devem) alcançar.

Salvando uma vida
Eduardo Coutinho coloca um anúncio no jornal “recrutando” mulheres que queiram contar suas histórias diante de uma câmera. Depois escala atrizes que interpretarão essas histórias, também diante das câmeras. Diante, neste caso, é palavra essencial: porque aquilo que Coutinho faz (não sei se é possível chamar de cinema, de arte, de milagre) sempre parece lembrar à câmera que é dela o privilégio de estar colocada frente à matéria humana – e não o contrário.

Humana também é palavra essencial; Jogo de Cena é, primeiro e principalmente, fruto de tudo o que é e que nos torna humano(s). No relato interpretativo das mais diversas histórias (cada uma trágica dentro de sua proporção) encontro com verdades e revelações que dizem respeito a cada um de nós. Aquelas mulheres, como anunciadoras da boa nova, verbalizam com seus olhos que só passando pelo desespero chega-se a salvação. Não que alguém se salve em Jogo de Cena (muito pelo contrário); mas se a salvação é possível é só pelo calvário da desistência.

E isso é só o tema.

Sentado em um palco de teatro vazio, com uma câmera e um microfone direcional, Coutinho desafia toda e qualquer idéia acabada que tenhamos formulado sobre ficção, realidade, narração, personagem, memória, sinceridade, criação, manipulação, etc, etc, etc. No processo que inicialmente se desenrola pelo jogo de adivinhação de quem é a atriz e quem é a pessoa “real” e que atinge o alvo da metalinguagem espelhada quando nos força a perguntar qual a verdade da atriz que finge mentir e qual a mentira da pessoa real que garante dizer a verdade.

Perplexa, maravilhada, fascinada, Fernanda Torres contempla o momento em que a memória de outrem entra em sua corrente sanguínea emocional e torna-se memória SUA. No ímpeto de REpresentar (reapresentar? (N)o que a repetição (se) transforma?) a atriz cria o novo; novo porque não existia antes, ao mesmo tempo que ancestral porque sempre existiu através de outras vozes, de outros olhos, de outras lágrimas.

Na montagem divina (divina por ser plenamente humana, nunca podemos esquecer) vozes emolduram cenas; pausas dramáticas exigem closes; lágrimas pedem respeito. É Coutinho, talvez, um dos homens que mais se aproxima de Hitchcock no amor pela imagem; e também o que mais se afasta – porque Coutinho vê além da imagem, Coutinho quer tudo que ela representa (essa palavra que persegue as atrizes e que se impõem às mulheres “reais”). Como nas fotografias de Sally Mann, a potência das imagens de Coutinho parece estar mais em algo que já foi, que já não existe, restando “apenas” aquelas cinzas que vislumbramos.

É ainda preciso dizer que Jogo de Cena é das coisas mais lindas já feitas em homenagem ao melodrama (gênero genuinamente feminino – sem melindres!). Que Jogo de Cena reduz seu aparato técnico ao mínimo do mínimo para que não reste dúvidas do que é aquilo que realmente importa. É preciso dizer. É preciso chorar por Jogo de Cena. É preciso amá-lo, do jeito que é preciso que amemos nossa mãe, nosso pai, nossa origem.

Não sei mais escrever; esse ato fílmico me esgotou, me calou. Me mudou.

Fazia tempo que não me deparava com o Amor em estado tão bruto.

domingo, 8 de maio de 2011

De partir o coração

É desconcertante o alcance do tempo.

Esta linha que só sabe (e só é capaz) de seguir em frente nos empurra para adiante mesmo quando nosso coração ainda olha para trás. E sempre olhamos para trás – nos arriscando diariamente a nos tornarmos estátuas de sal; mas sem poder evitar o ancestral ímpeto de contemplar o que passou.

Talvez venha deste meu lado que sempre pendeu para a nostalgia o gosto que tenho por acompanhar séries de TV. A satisfação que sinto ao reconhecer uma mesma frase que foi dita temporadas (e anos) atrás, de relembrar um mesmo plano, de reencontrar com um personagem querido, são coisas que o cinema não me proporciona na mesma proporção. E é de todo o envolvimento que invisto sempre que me disponho a acompanhar uma série que vem a dor quase infantil que sinto quando é hora de dizer Adeus.

Comecei a assistir The Office de forma quase relutante. Era muito constrangimento, era muita liberdade, era a superação de um modo de produção que cresci assistindo e pelo qual tenho grande carinho (a boa e velha sitcom). Mas não é possível ignorar The Office por muito tempo. Aquelas câmeras na mão, aqueles personagens aparentemente tão pequenos, aquela aparência pálida e medíocre de uma empresa que vende folha de papel não me saiam da cabeça e ficava cada vez mais evidente que algo de muito precioso estava abrigado sob o teto da Dunder Mifflin.

A versão americana (nunca assisti à original inglesa, da BBC) foi concebida por Greg Daniels e, pelo que dizem, demorou um pouco para encontrar o tom que a diferenciaria de sua matriz; mas quando encontrou...

De início pensei que The Office ia ser mais uma série de comédia cínica que, em questão de episódios, me faria ter desprezo e nada mais por todos os personagens. Me enganei redondamente, pois um dos problemas mais graves da comédia em geral foi graciosamente superado pela equipe de alucinados que trabalham nesta série. Me refiro aqui a difícil combinação entre comédia e ternura, que sempre angustia qualquer roteirista, diretor ou produtor que resolva se lançar ao desafio de fazer rir toda semana. Seinfeld ignorou o máximo que pode a questão emotiva (até explodir de carinho por seus personagens no final, afinal o último episódio é nada mais nada menos que um afetuoso flashback), Gilmore Girls era muito engraçado para ser drama e muito dramático para ser comédia (foi sempre um injustiçado híbrido), Os Simpsons tende a ser criticado justamente nos momentos em que se decide por um caminho mais doce. No cinema não é muito diferente: nos acostumamos a gargalhar durante a comédia e a esperar sentados e impacientes que o drama passe logo para que possamos voltar a rir sem ter que nos preocupar com as sequências açucaradas. Neste impasse do humor Chaplin, claro, sempre foi um mestre – mas era CHAPLIN. Woody Allen só em seus picos criativos conseguiu conciliar as duas pontas (e aí temos Annie Hall, Manhattan e Memórias). Jerry Lewis dizia que o drama era fácil: você mostra um cara lendo jornal enquanto toma café, depois mostra ele dirigindo até o trabalho e pronto, tem-se drama. Agora a comédia... aí a coisa já mudava de figura. Nos mais diferentes contextos havia sempre a constante de considerar comédia e doçura como antagonistas.

Os roteiristas e produtores de The Office (e nesta lista estão desde pessoas do elenco até velhos amigos de faculdade) sempre tiveram uma postura que me agradou imensamente neste quesito: a de não menosprezar nem a potência libertadora da comédia e nem as possibilidades cativantes do drama. E se, desde seu início, o programa acostumou a platéia a se “emocionar” majoritariamente com os momentos dedicados à história de Jim e Pam (única história de amor que se equipara a de Anos Incríveis), não deixa de ser curioso que com o tempo o envolvimento emocional de produtores, atores e espectadores com os personagens da série tenha nos levado até a catarse que representa o último episódio que foi exibido: a despedida do “world Best boss” Michael Scott.

Foram os quase sete anos de constrangimento, falta de noção e amizade que nos levaram às lágrimas nesta despedida. Foi a construção meticulosa do cotidiano modorrento e surpreendentemente bonito da Dunder Mifflin que fez com que todos aqueles que acompanharam a série com atenção compreendessem imediatamente que a despedida de Michael Scott era o fim do mundo que conhecíamos. E neste mundo sempre me deleitei com a sensação de que tanto os envolvidos na produção da série quanto eu e você, vez ou outra, nos surpreendíamos com a vastidão daquele escritório. Seria pura tolice, neste caso, abrir mão ou tentar eliminar da série as inúmeras possibilidades dramáticas que, ano após anos, só iam aumentando. Daí temos obras-primas do humor (a descoberta de que Oscar é gay, o falso incêndio provocado por Dwight, a entrega dos Dundies) e do drama (a entrega da medalha à Michael quando ele compra sua casa, o pedido de casamento de Jim, a entrega dos Dundies). E agora junta-se ao time de episódios irrepreensíveis de The Office o adeus à Michael.

Se desde sempre The Office fez questão de chamar atenção para seu formato (o chamado mockumentary – um documentário de mentira que apresenta de forma documental algo que sabemos ser ficção), e, ao contrário das sitcoms, sempre fez da câmera parte indispensável de seu efeito cômico/dramático, neste último episódio temos uma espécie de revisão de todas as regras estabelecidas desde a primeira temporada, retificando algumas e superando outras (dependendo do efeito almejado). Como assim retificação e superação? Peguemos as principais pessoas de quem Michael se despede neste episódio: Toby, Erin, Dwight, Jim e Pam; para cada um teremos certas escolhas formais que impulsionarão a cena em direção a um certo alvo narrativo.

O odiado (e desprezível) Toby ganha o primeiro sorriso de Michael – em um campo/contracampo hilário que evidencia todo o asco que Michael sente pelo cara dos recursos humanos e que é encerrado com o sorriso mais congelado e forçado da história da série (e estamos falando de sete temporadas do mais puro constrangimento, o que não é pouco).



Erin ganha a revisitação de um plano que já conhecemos: sentados do lado de fora do escritório, ela e seu chefe/pai discutem a vida amorosa dela. Nenhum dos dois fala em “Adeus”, mas nós sabemos que aquele plano nunca mais voltará na série – é um despedida toda construída sobre uma escolha formal.



Chega a vez de Dwight (talvez o personagem mais difícil de encaixar no tom saudoso e melancólico do episódio) e a solução encontrada por Greg Daniels e Paul Feig (diretor do episódio e um dos criadores de Freaks and Geeks) é tanto inteligente quanto sensível: em um leve zoom-in, que é inédito para o registro de Dwight, acompanhamos a sua surpresa ao ler a carta de recomendação que Michael escreveu para ele; e finalmente entendemos o que a palavra “supremo” significa. Daniels sabe que a despedida daqueles dois jamais seria bem representada através de lágrimas e resolve tratá-los por aquilo que sempre foram: crianças, daí a guerra de paintball que chega antes que pudéssemos presenciar o choro de Dwight.



O grande indicador de quão absurdas as situações que aconteciam naquele escritório eram sempre foi Jim. O olhar algo desesperado que ele tendia a lançar para a câmera sempre que o constrangimento tomava conta da cena se transformou na principal expressão do personagem. E é esta a força de termos Jim olhando diretamente para Michael, com lágrimas nos olhos, e admitindo que ele foi o seu melhor chefe – olhar que também deixa claro que ele é, talvez, o único que compreende que a despedida mais difícil de todas ainda estar por vir.


Pam sempre foi uma espécie de mãe de Michael. É ela o personagem que melhor entende como funcionava a perturbada mente daquele “executivo”. Sempre foi ela a primeira a perceber que no absurdo ambulante que é Michael Scott havia uma beleza de caráter inconfundível (assim como Michael sempre foi o primeiro a reconhecer em Pam uma capacidade criativa que a maioria sempre subestimou). E por mais bonita que seja a história de amor de Jim e Pam não posso deixar de lembrar como a relação de Pam e Michael sempre foi tratada com uma solenidade que é absolutamente adequada ao nível de cumplicidade que ambos atingiram no passar das temporadas. É, sem sombra de dúvida, intimidador ter que criar o último momento perfeito que condense toda a potencialidade desses dois; a opção foi, então, deixar as palavras para trás. Após o derradeiro “that’s what she said”, após a retirada formal de Michael do universo documental da série, é Pam que invade o quadro apressada e repete o abraço da terceira temporada (abraço que Michael ofereceu a ela após reconhecer o esforço que ela havia feito para ser vista enquanto artista), e assim como em alguns outros momentos dramáticos essenciais para o desenvolvimento dos personagens, somos provisoriamente deixados de fora da cena (não ouvimos nada) para depois participarmos daquela emoção tendo diante de nós aquela ex-secretária emocionada garantindo que nosso querido Michael está esperançoso em relação ao futuro. É o ponto de vista Pam, por fim, que é adotado como definitivo Adeus; da mulher que, de repente, melhor entendeu Michael Scott.





Um amigo me contou que Bordwell escreveu um texto uma vez sobre a TV, o nome era “Tv will break your heart”. O autor se referia a recorrência de despedidas nas séries televisivas, a ter que, às vezes inesperadamente, ver o fim de uma obra de arte que já durava anos e anos. Este último episódio de The Office partiu meu coração. Michael está agora na companhia de Lorelai, Kevin, Monica, Kramer e outros grandes amigos que foram embora. Fica, agora, este peso no meu peito (-That’s what she said).


P.S.: esse texto é dedicado às risadas da Glenda e do Miguel que me fizeram (e farão) companhia em muitos episódios de The Office.

terça-feira, 3 de maio de 2011

A Origem



Tem me surpreendido o silêncio da crítica diante de Pânico 4. Primeiro pelo sucesso comercial da franquia e sua consequente legião de seguidores que inundou o gênero slasher na última década do cinema de terror americano. Segundo, e mais importante, por ter sido o melhor momento que tive nesse ano dentro de uma sala de cinema (e olha que já estamos em Maio).

Com exceção da crítica de Wellington Sari para o site da Contracampo (http://www.contracampo.com.br/96/critpanico4.htm), que apesar de ter dado destaque ao filme enveredou por uma associação com o caso da escola de Realengo que não me agrada muito, Pânico 4, ao que me parece, passou meio despercebido – irônico, pois imagino que tenha sido ostensivamente distribuído pelo Brasil todo.

O primeiro da série assisti Deus sabe há quanto tempo, na Band, dublado, no início da adolescência. Mesmo num tempo tão distante me ficou a imagem de um filme que não parava de se criticar e se subverter, e que criou minha heroína favorita do gênero – a persistente e perturbada Sidney Prescott. Penso que de alguma forma inconsciente eu já sentia toda a potência que a metalinguagem tinha nas mentes de Wes Craven (diretor) e Kevin Williamson (roteirista), que estiveram envolvidos em todos os filmes da série (Williamson só não escreveu o roteiro do terceiro, que, no entanto, produziu). Não esperava que essa metalinguagem crescesse tanto a ponto de atingir o patamar de franca carta de amor ao cinema de horror que este quarto representa.

É indispensável que se diga, vale lembrar, que o filme não se valoriza apenas por reconhecer todos os ótimos membros que o precedem na família da qual faz parte. Trata-se, antes, de uma idéia instigante levada às últimas consequências com muito vigor por Craven. E essas inconseqüentes conseqüências não poderiam ter se dado em nenhum dos três primeiros filmes da série, neste caso por um contexto social-histórico-técnico típico de nosso tempo imediato: a internet e toda a interatividade que ela promove no campo virtual (e, por que não?, ficcional).

Williamson e Craven parecem ter tido suas cabeças formatadas pelo fenômeno da conectividade mundial e pela vertiginosa velocidade em que a informação se espalha pelo globo. Imagino os dois se deparando com fenômenos como o Facebook, a explosão de blogs e a tecnologia portátil e se perguntando que efeitos tais circunstâncias teriam no universo narrativo que criaram nos últimos 15 anos. E é desde o início da projeção que a dupla deixa claro que não estão para brincadeira: pois o filme será sempre uma caixinha dentro da outra dentro da outra e dentro da outra, pulando na nossa frente e afirmando com dedo em riste “vamos ver quem engana quem por mais tempo da forma mais criativa”. Deste pira-esconde estético/narrativo temos a essência de Pânico 4 – um filme que olha com certa admiração para a geração que tão rapidamente decodifica códigos tradicionais, mas que também a desafia a compreender porque esses códigos se tornaram tradição e até que ponto eles podem ser subvertidos tendo como ponto de partida apenas uma evolução técnica.

Temos, então, as várias jovens que assistem inúmeras versões de Stab (falsa série de terror criada desde o segundo Pânico e que leva aos cinemas ficcionais os acontecimentos de Woodsboro): elas criticam as convenções que todos nós conhecemos muito bem ao mesmo tempo em que mostram que essas convenções podem ser facilmente descartadas, bastando para isso alguma pitada de rebeldia e bom humor. Teríamos até esse ponto um simples Todo Mundo em Pânico mais legítimo? Não, estas primeiras sequências são antes uma defesa (e nunca uma ridicularização) de um certo modo de levar o suspense para as telas, transformando-o em imagens. Este modo nada mais é do que aquele que tem seu ícone máximo no assassinato de Drew Barrymore no primeiro Pânico: uma garota (ou garotas) bonita sozinha em casa, o telefone toca, ela não está sozinha, ela não sabe onde está o assassino, ela vai morrer. As camadas narrativas vão se evidenciado até que chegamos à sua matriz: reencontramos Sidney, Gale e Dewey (personagens com os quais nos acostumamos a nos importar – e isso é essencial para o “suspense humanista” de Craven e Williamson); cada um com sua vida sempre definitivamente modificada pelos acontecimentos que se sucederam desde 1996. Porém, temos agora a presença numerosa de uma novidade: as câmeras “amadoras”. Câmera que Gale segura e que revela que o assassino se aproxima dela a um marido que assiste à cena quase explodindo de angústia, câmera do geek que anda sempre presa a sua cabeça e que registra tudo o que ele vê transmitindo as cenas, em tempo real, para seu blog (e que é o ponto de visa adotado para mostrar ao personagem que ele também irá morrer – acontecendo um uso no mínimo irônico daquilo que chamamos câmera subjetiva), câmera que o próprio assassino esconde em uma festa para registrar sua “obra de arte” e eternizá-la através de imagens em movimento. Câmeras que tornaram mundialmente conhecido o caso de Sidney e que criaram, em última instância, o seu mais terrível algoz: o assassino que se vende como vítima para atingir alguma notoriedade pública.

Pânico 4 é, assim, um filme radicalmente opaco – sendo-o plenamente em um gênero que, aparentemente, necessita da transparência para atingir o essencial envolvimento do público com sua narrativa. Claro que isso, por si só, não garantiria tantos méritos; pelo menos não quando visto pelo olhar sempre titubeante daquilo que é “novidade” (lembremos de Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai e Peeping Tom, este último sendo lembrado pelo próprio filme). Mas é em uma cena como a da revelação da identidade do assassino que está a verdadeira grandeza deste quarto volume da série: em um jogo de duplicação de causas e efeitos, de inversão da moral da vítima e de releitura da cartilha do horror, Craven e Williamson exploram toda a abrangência do amor que têm por aquele mundo. É quando a nova vítima (a descendente direta de Sidney) realiza a mise-em-scéne da qual ela irá se beneficiar temporariamente (tal qual os maridos assassinos de Janela Indiscreta e Um Corpo que Cai) que Pânico 4 retira sua última máscara e revela a sua mais aterradora face: é tudo tão “espetaculoso” que a própria dor de se ver jogado em meio a perseguição de um assassino alucinado se tornou encenação.

Era mais do que fácil, era praticamente inevitável, que Craven e Williamson se perdessem em algum momento dentro de um tal baile de máscaras que acontece dentro de uma sala de espelhos, porém é justamente a capacidade que ambos possuem de fazer com que público e personagens jamais se esquecem daquilo que é essencial para a existência, persistência e permanência daquela realidade que faz com que jamais percamos o norte da estrutura narrativa/estética deste filme. Atitude que pode ser mimetizada por um plano e uma frase. O PLANO: Sidney e Jill, deitadas diante uma da outra, ocupando a mesma posição física que é, no entanto, narrativamente oposta, logo após a (re) encenação do desfecho do primeiro filme e que serve de falso-desfecho para este último. A FRASE: Sidney, após arrancar na unha a última camada de artifícios e mentiras arregimentadas pelo assassino, vocifera para seu vilão “- You don’t fuck with the original!”.

Me perdoem tantas palavras, mas já estava achando imoral o silêncio diante de um filme tão poderoso. E respondendo à pergunta do Ghostface: Pânico 4 é um dos meus filmes de terror favoritos.







terça-feira, 5 de abril de 2011

Vestígios do dia




Um dia a muito incisiva e devotada a Tchekhov Virginia Woolf se perguntou: o que haveria no romance se não houvesse narração? O que haveria num romance que fosse inteiramente construído sobre impressões, sussurros, incertezas?

O que poderia ser capturado se de um abraço só se revelasse o ímpeto das mãos? Se de uma perda trágica só se desvendasse uma porta batendo? Se de um amor impossível só se soubesse alguns passos solitários no meio da madrugada?

O que resta à ficção quando não lhe resta quase nada? Virginia respondia sorrindo: resta o essencial.

Poucos são os artistas que conheço que foram tão autoconscientes do papel que exerciam na História de sua linguagem quanto Virginia Woolf. Nenhum usou tão bem quanto ela esta autoconsciência para encontrar sua própria voz.

Como Ego amava comida, Virginia amava Literatura. E como o crítico de Ratatouille, se ela não Amava, ela não engolia. Principalmente quando se tratava de suas obras.

Em um livro essencial de ensaios seus, ela nos fala da melhor forma que existe de dimensionarmos o trabalho de um escritor: ao fim do dia pense em tudo que aconteceu, colete suas impressões e sensações, suas certezas e reflexões; pegue esse amontoado de pensamentos e abstrações e tente dispô-los em ordem de forma a despertar algum interesse; tente encontrar alguma unidade em tudo o que você quer expressar, tente relacionar uma coisa com a outra e produzir desse encontro algo significativo. Claro que não demora muito para entendermos que o trabalho (como não poderia deixar de ser) é árduo. Virginia mostra, de maneira praticamente irrefutável, que Literatura não é lugar para despejar impressões do dia, nem para exibir habilidades estilísticas: no livro não há espaço para desonestidade e vaidade, pois a Arte para Virginia estava acima do homem (ou pelo menos o fazia entrar em contato com algo que o transcende) e não poderia se subordinar a coisas tão pequenas quanto ego e orgulho.

Não se engane o desavisado: para esta inglesa não havia tema menor ou maior; havia, isso sim, obras que encaravam a Literatura de frente e obras que tentavam driblá-la a qualquer custo. Ora, se não era o bastante uma cabeça cheia de impressões e nem uma técnica cheia de recursos, do que se tratava a Literatura então? Para Virginia, só fazia sentido falar em Arte quando se falava em percepção estética das coisas. Um livro só seria absolutamente necessário (artisticamente falando) quando o artista era capaz de trazer suas impressões e sua técnica para a obra à luz do senso estético que está (ou deveria estar) acima de qualquer outra questão.

O que se pode fazer com essas informações? Dar-se conta que, provavelmente, havia apenas uma coisa que Virginia valorizava tanto quanto o ato de desafiar sua linguagem: e eram os momentos de não-existência de que ela tão insistentemente falava em seus diários.

Estes momentos, comumente perdidos dentro de nossa memória que prefere selecionar e eleger instantes de maior “arco dramático”, pensava Virginia, deveriam ser de alguma forma resgatados para que ao nos depararmos com personagens e narrativas que acontecem quando ninguém está olhando pudéssemos enxergar o que os quilos de costume e repetição cotidiana nos impedem de ver. Essa escolha já não se tratava de definição categórica, mas de caminho pessoal e intransferível. Woolf sabia que era disso que precisava falar; e foi incansável na marcha incessante de trabalho e insistência que a levaram até seu estilo definitivo.

E o que seria esse “estilo definitivo”? Como Tarkovski, Virginia Woolf passou toda sua vida esculpindo o tempo. O Quarto de Jacob, Mrs. Dalloway, Orlando, As Ondas, Entre os Atos, são narrativas que obrigam seus personagens a deparar-se e debater-se com a indiferente passagem do tempo (que Virginia se especializou a dilatar e a concentrar a seu bel-prazer). É em Ao Farol, no entanto, que se dá o momento mais inacreditável do gênio de Woolf. Para quem já leu Mrs. Dalloway ou Orlando ou As Ondas, não encare essa afirmação como menosprezo a essas outras obras-primas, mas sim como um meio de dimensionar toda a amplidão desta obra da onde ninguém sai ileso.

Dividido em três partes (“A Janela”, “O Tempo Passa” e “O Farol”) Ao Farol é a obra em que a parcimônia e a delicadeza de Woolf mais abalam as fundações da ficção. Três dias se passam na vida da família Ramsay, entre cada um desses dias vários anos correm e várias mudanças ocorrem. Tudo muda em um movimento que, por fim, se revela circular. Na primeira parte somos apresentados a uma família numerosa que está de férias em uma casa de verão hospedando alguns convidados. Um dos filhos quer ir ao farol, um pedido de casamento pode estar acontecendo, uma pintora sem muitos atrativos físicos se torna cada vez mais invisível, Mrs. Ramsay (esposa e anfitrião perfeita) circula entre as várias pequenas esferas sociais que colidem em sua casa sempre destilando angústias e cultivando receios. Ocorre, então, quando Mr. Ramsay observa sua esposa que observa o farol, um dos momentos mais arrebatadores da literatura de Woolf:

“Getting up she stood at the window with the reddish-brown stocking in her hands, partly to turn away from him, partly because she did not mind looking now, with him watching, at the Lighthouse. For she knew that he had turned his head as she turned; he was watching her. She knew that he was thinking, You are more beautiful than ever. And she felt herself very beautiful. Will you not tell me for once that you love me? He was thinking that […]. But she could not do it; she could not say it. Then, knowing that he was watching her, instead of saying anything she turned, holding her stocking, and looked at him. And as she looked at him she began to smile, for though she had not said a word, he knew, of course he knew, that she loved him. He could not deny it. And smiling she looked out of the window and said (thinking to herself, Nothing on earth can equal this happiness) - ”

Mr. e Mrs. Ramsay (não sabemos seus primeiros nomes) tornam possível um diálogo de monólogos nessa passagem. Se o conceito de monólogo interior em si nem se quer pode ser chamado de moderno (alô Homero!) o jogo de comunicação a partir da incapacidade de se comunicar que Virginia propõe aqui é atordoante. Por que? Ora, como pode alguém utilizar a incapacidade de dizer “eu te amo” justamente para trazer à tona a potência de todo o amor inexprimível? Como pode alguém correr tão livremente entre discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre sem jamais permitir que o leitor se perca dentro de um mar de pontos de vista? Como pode alguém encerrar uma parágrafo desta extensão, em que nenhuma palavra foi dita, no momento em que a personagem se atreve a dizer alguma coisa justamente para sublinhar que tudo que havia de essencial a ser transmitido já foi percebido? Como mensurar o tamanho da prova de amor de que somos testemunhas e que faz com que a sempre recalcada e agradável Mrs. Ramsay pense consigo que nada no mundo pode se igualar àquela felicidade?

É dessa mulher que estamos falando. Desta mulher capaz de mostrar que, se ela se revolta com a vaidade de um Joyce ou com as reclamações de uma Charlotte Brontë, é porque a Literatura existe para que se alcance instantes como este: e há muito tempo que já não se trata de escolher temas grandiosos ou pequenos (ela aprendeu muito bem com Tchekhov e Austen que existe tensão e interesse em tudo que é humano), ou seguir formas testadas e aprovadas por classicistas, românticos, realistas e outros etceteras – é preciso que o artista chegue o mais próximo possível de uma sinceridade que só permita a expressão que é necessária. Sim, esta é uma das autoras mais rigorosas da Literatura. Como afirmou Auerbach, em seu famoso artigo sobre Ao Farol chamado “A Meia Marrom”, Virginia traz o ato de entrelaçar fios soltos para a produção de uma colcha de retalhos para a sua literatura. Ela estava sempre, em maior ou menor grau, trabalhando a partir desse conceito.

Na dispersão das pequenas evidências do dia ela enxergava a essência que define, problematiza e esconde o indivíduo (como é repetido incessantemente em Mrs. Dalloway: “um dia em sua vida, e nesse dia toda a sua vida”). É a reação grosseira de Mr. Ramsay ao pedido do filho de ir ao farol que joga uma luz trêmula sobre aquela relação estremecida, é a insistência de Mrs. Ramsay em estar sempre ocupada a proporção de sua solidão, é a obsessão de Lilly (a pintora) com seu quadro que nunca fica pronto o único meio que ela encontra de se fazer existir. São os dias perdidos de infância e de coisas que jamais esqueceremos que aconteceram porque elas se tornam aquilo que somos e poderemos ser.

Por mais admiradora que tenha sido de Jane Austen e Tolstoi, Virginia decide-se por essa interiorização da narrativa da qual, aparentemente, ninguém conseguiu escapar no século XX. No caso dela (levando em consideração os dois fracassos criativos que são seus dois primeiros romances – justamente aqueles em que ainda se aventura por um realismo clássico) não resta dúvidas de que esta não é apenas uma escolha intelectual, mas também, e principalmente, sensível e moral. Sensível por ser a forma como sua percepção se dá; moral porque ela sabe que não seria sincero da parte dela escrever de outra forma.

É essa busca pelo interior, pelo despercebido, pelo escondido que leva Woolf até a maior ousadia que propôs em sua obra ficcional: a segunda parte de Ao Farol – “O Tempo Passa”.

A casa de verão, que conhecemos cheia de personagens, cheia de vida, está vazia. O verão acabou e não é possível saber ao certo quantos anos se passaram.

“So loveliness reigned and stillness, and together made the shape of loveliness itself, a form from which life had parted; solitary like a pool at evening, far distant, seen from a train window, vanishing so quickly that the pool, pale in the evening, is scarcely robbed of its solitude, though once seen. Loveliness and stillness clasped hands in the bedroom, and among the shrouded jugs and sheeted chairs even the prying of the wind, and the soft nose of the clammy sea airs, rubbing, snuffling, iterating, and reiterating their questions – ‘Will you fade? Will you perish?’ – scarcely disturbed the peace, the indifference, the air of pure integrity, as if the question they asked scarcely needed that they should answer: we remain.”

É esta segunda parte a favorita de Woolf. É onde ela toca mais profundamente em toda a impessoalidade temporal que sempre trouxe para suas narrativas. Impessoalidade que aqui se materializa pela escolha de fazer com que o tempo não passe para ninguém a não ser para ele mesmo. Virginia expõe o que significa para o próprio tempo a sua passagem; eleva-o de circunstância a personagem, de advérbio a sujeito. Ele não apenas muda o entorno como se transforma. Como ela mesma diz neste trecho, a visão que temos da casa vazia é como a visão de uma piscina a noite, distante, vista de um trem em movimento, que esvanece tão rapidamente quanto o trem passa. E não seria assim que o próprio tempo enxerga as coisas pelas quais passa e as quais transforma? São estes instantâneos de quando piscamos os olhos enquanto corremos que interessam. São esses milésimos definitivos que devem ser eternizados.

Se só é possível considerarmos qualquer essência quando ela se dá através de uma existência, Woolf faz o grande salto em direção ao abismo do auto-entendimento ao se voltar para aquilo que proporciona a existência de todas as essências; aquilo que torna possível ser também é, e para que assim seja é preciso que se dê. E quando Virginia resolve que não vai mostrar personagens envelhecendo para explicitar como o tempo se dá, mas sim expor toda a pressão que a transformação de hoje em ontem exerce sobre coisas que não podem reagir (as cadeiras cobertas por lençóis, os quartos vazios e empoeirados) é que ela oferece a possibilidade de expressar o puramente concreto através do absolutamente abstrato. E por mais repetitiva que essa escolha pareça (qualquer um pode dizer que os poetas fazem isso há séculos e séculos) é difícil ignorar as consequências que ela provoca na estrutura da Narrativa.

Quando abole personagens, enredo e clímax, Virginia não está acabando com o que conhecemos enquanto romance – está expandindo-o.

Como terminar?

Na terceira parte (“O Farol”) a família Ramsay volta àquela mesma casa. Finalmente concretiza-se a viagem que havia começado a ser planejada tantos anos antes. As ausências são muitas e a maioria das mortes nos foi informada entre parênteses. Do muito que passou quase nada mudou. É quando Lilly resolve voltar ao quadro que, faz tanto tempo, ela começou. É quando Lilly percebe que toda aquela existência na qual foi jogada não se pode transpor para a tela através de linhas realistas, de cores harmônicas, de uma composição sólida. Foi tudo tão transitório, foi tudo tão diluído.

Enquanto observa a família Ramsay finalmente chegando ao farol, Lilly é assaltada por um pulo em seu peito:

“But what did that matter? she asked herself, taking up her brush again. She looked at the steps: they were empty; she looked at her canvas: it was blurred. With a sudden intesity, as if she saw it clear for a second, she drew a line there, in the centre. It was done; it was finished. Yes, she thought, laying down her brush in extreme fatigue, I have had my vision."

sexta-feira, 25 de março de 2011

O olhar de cada dia



Theodoros Angelopoulos é um homem que nunca vou esquecer, porque eu sei que ele nunca se esquecerá de nós.

Assistir a um filme deste diretor grego, que fez o filme da década na minha opinião (Vale dos Lamentos), é como estar exposto a toda a força devastadora do olhar de Deus, do olho que tudo vê. Amplidão, plenitude, atemporalidade, memória e angústia são as palavras que meu coração balbucia quando penso nesse gênio.

Talvez a melhor definição para Angelopoulos seja dada por um de seus personagens: o curador de cinema de Um Olhar a Cada Dia se refere a si mesmo como um "colecionador de olhares esvanecidos". Todo colecionador, é fato, preocupa-se com a preservação de algo - preservação que invariavelmente está a serviço da busca por uma explicação.

Penso ser inevitável para os artistas se debruçarem, eventualmente, sobre aquilo que os guia e os motiva: sua linguagem. Em maior ou menor grau sempre haverá o movimento em direção a meta-linguagem (que é, também, meta-entendimento e auto-conhecimento). É disso que se trata Um Olhar a Cada Dia - a busca Humana, que é sempre uma jornada, por si mesmo (e conseqüentemente pelo todo, nunca o contrário). Harvey Keitel é um diretor a procura de três rolos perdidos que registraram, pela primeira vez, uma imagem em movimento nos Balcãs, ele procura o "first gaze" dos irmãos Manakis. Desdobramento de nosso sempiterno drama: descubramos de onde viemos e, quem sabe, teremos uma visão de para onde estamos indo.

Mas se em um homem estão todos os homens (de Ulisses até John Dillinger) a câmera de Angelopoulos se desvencilha daquilo que poderíamos mais facilmente reconhecer como subjetividade e se realiza plenamente como a possibilidade de olharmos por trás do espelho que nos reflete – e ao invés de encontrarmos apenas nosso reflexo encontrarmos a nós mesmos.

Antes, dois ou três anos atrás, eu pensava cinema enquanto algo Aparente (se tratava de imagem, não é?), mas redescobrir Bresson, Bressane e me embasbacar com Angelopoulos me evidenciou como eu estava, o tempo todo, diante de uma linguagem absolutamente metafísica. Uma linguagem que se dá, também, entre o entre atos vazio que são os intervalos entre uma sequência e outra, que é capaz de catalisar o efeito de uma cena justamente por escondê-la e que (re)(des)constrói tempo e espaço a partir de um tempo e espaço que deixamos de reconhecer como nosso e como contínuo para participarmos de uma nova combinação dessas dimensões que dão luz ao que poderíamos limitar chamando de Ficção (e fricção).

Tempo. A câmera de Angelopoulos inventa tempo. Ao nunca cortar as sequências em que seus personagens recordam alguma coisa, ele deixa que a lembrança invada seu quadro e traga para dentro dele sua realidade, sem jamais interromper o fluxo que sempre representa o coração pulsante. Só vendo o homem Keitel se transformar na criança de um lar violentando, mas que ainda reclama para si a decência de ter uma fotografia, de ter uma lembrança, foi só ao assistir tal milagre acontecer diante dos meus olhos despreparados que entendi do que é capaz um plano-sequência. Foi na viagem de táxi do início do filme, dos poucos momentos em que o diretor usa cortes mais frequentes, que percebi com que força vem a angústia da mudança de uma imagem que não indica mudança de situação. Foi na chacina de inocentes, que faz o uso mais aterrorizante que já vi do som, que forçosamente doeu em mim o nevoeiro pelo qual a humanidade tem caminhado e por onde tantos tem se perdido.

Desculpem por ser tão vago, mas ainda hoje sinto meus olhos ofuscados pela lembrança deste filme que vi quase 4 meses atrás. Ofuscado como o branco projetado na tela onde deveria estar o filme dos irmãos Manakis. Contemplando fixamente e me percebendo pasmo. Vagando pelos destroços de uma Europa exausta. Encarando um homem que na falta de um futuro e sendo empurrado violentamente pelo passado não consegue ficar em pé no presente. Percebendo que o peso em suas costas não é tanto de não compreender o que está por vir, mas por reconhecer em si, em cada parte do seu corpo, tudo o que já passou.

Estamos tão acostumados a nos vermos perplexos quando contemplamos toda a vastidão que existiria se aceitássemos que há um Deus que nos esquecemos de como Deus se veria perplexo ao tentar compreender a caminhada que há séculos a humanidade, tortuosa e belamente, empreende sozinha (?). (!)

segunda-feira, 14 de março de 2011

John Hughes gostaria de ter assistido


Esse texto é uma urgência:

Greg Mottola é o mais novo descendente de Marcel Proust que conheci.

Assistir Adventureland (Férias Frustradas de Verão) apenas sublinha que em Superbad, além do envolvimento afetivo de Seth Rogen, Evan Goldberg e Judd Apatow, havia um grande homem de Cinema que transformou aquele amontoado de lembranças de escola em uma definição sensivelmente precisa do que é Amizade.

Não desconsidero em hipótese alguma o talento e a criatividade do trio Apatow, Rogen e Goldberg para a concepção de um universo narrativo/temático (O Virgem de 40 Anos, Ligeiramente Grávidos e Tá Rindo de Que? merecem muito mais respeito do que recebem de fato), mas quando parei pra pensar sobre quem eu deveria escrever um texto não tive dúvidas de que a resposta era Greg Mottola.

Se em Superbad o diretor teve que lidar com material e memória alheios (o roteiro, e as lembranças, eram de Rogen e Goldberg), em Adventureland ele se lança a reconstrução, memorialista e estética, do seu próprio passado, ou, como ele mesmo diz, do pior verão de sua vida (nesse caso o final dos anos 80, quando ele teve que trabalhar num parque de diversões) - o que parece abrir portas para a exploração mais intensa de sua identidade autoral. Não nos precipitemos, jamais se trata da "descoberta" de um estilo mas sim do aprofundamento daquilo que era pulsante em Superbad. E creio ser impraticável falar deste estilo que já era pulsante sem mencionar o uso de um recurso que pode ser tão facilmente banalizado (e que é tão sinceramente louvado por Mottola): o campo/contracampo.

Quem prestou atenção na sequência final de Superbad (só pra citar a mais óbvia) sabe do que eu estou falando: o homem é um cirurgião/poeta na edição e na montagem dos planos que constituem a cena; e raras vezes senti ser tão verdadeira a premissa de que uma sequência não é apenas ela n'ela mesma mas também aquilo que a precede e que a sucede. Peguemos dois exemplos: James, o protagonista, se empolga narrando uma corrida de cavalos de mentira no posto que ocupa em seu novo pior emprego de todos os tempos - é, provavelmente, a primeira cena em que sentimos franca afeição pelo personagem e sua situação e é, justamente, a cena escolhida para apresentar o personagem à futura garota de seus sonhos que conhecemos em um único contracampo guardado para o final da sequência, em que Em (a garota dos sonhos) sorri e observa James que se surpreende tanto quanto nós por ter sido capaz de despertar o interesse de alguém apresentado de maneira tão interessante (a elipse sempre vai ser essencial para o fascínio que Em exerce nele e em nós). Mais adiante Em leva James de carro para a casa dele; Mottola se propõe o velho e complicado campo/contracampo do silêncio que evidencia uma tensão amorosa. Ele sabe muito bem que se aquela sequência não convencer o espectador a respeito do efeito que uma garota como Em tem na vida de um garoto como James nada mais irá funcionar em seu filme (narrativa e esteticamente); como resolver? Primeiro, planos curtos de campo/contracampo (James olha de soslaio para Em), depois planos mais curtos de James e mais longos e próximos de Em, por fim um close longuíssimo (quando comparado com os outros planos da sequência) de Em que deixa claro um dos grandes encantos que a montagem é capaz de produzir: a dilatação do tempo e a concentração do espaço (só existe Em durante um tempo que não se pode definir cronologicamente - esse tipo de ressignificação de tempo e espaço aponta para a capacidade do diretor de conceder ao tom realista de seu filme aquele ar de invenção onírica tão próprio da lembrança).

Dizer que Mottola respeita e ama o tema de que trata já me parece dispensável - mas, diferente dos talentosos e interessantes Apatow, Rogen e Goldberg, ele consegue transformar a admiração por um universo temático em universo estético. Na valorização do clássico (o uso que ele opta por fazer do campo/contracampo) e nas pequenas grandes ousadias (como o close inicial em James que já deixa claro que estamos diante de um rapaz destinado a sofrer), Mottola expande tudo que já era por demais bonito e instigante em Superbad e faz aquilo que um bom memorialista deve ser capaz de fazer: mostrar que a experiência pessoal de um também é (sem nunca ser exatamente) a experiência pessoal de todos. Dominando o que já foi feito ele consegue mostrar aquilo que Ele é capaz de fazer, fazendo parecer possível (temática, estética e sensivelmente) o diálogo conturbado entre estilo e reinvenção (entre o que há dos outros em "mim" e o que "eu" posso oferecer aos outros de "meu").


Notinha: Faz uns 2 anos Greg Mottola me fez ter vontade de escrever sobre a importância da Imaturidade para arte. Para não cair na cilada de endeusar a juventude (da forma como alguns endeusam a velhice) digo: Que bom que existem as duas pontas, que doloroso que nada possa ser vivido duas vezes, que lindo que mesmo sabendo disso pessoas como Mottola, ao invés de se retraírem em um casulo de melancolia e distanciamento, insistam em recriar o que passou achando nessa revisitação a criação do Novo que finca os pés no passado e os olhos no céu. Que lindo.


sábado, 5 de março de 2011

O rigor de Natalie Portman




Com o tempo fui me desacostumando a levar em conta o trabalho do Ator no cinema e me acostumei a pensar que a excelência de uma interpretação em um filme dependia tanto do ator quanto do diretor. Transformei, assim, o ator em mais um dos indícios da identidade autoral do diretor.

Fazer com que eu repensasse essa questão foi a maior contribuição que Cisne Negro me ofereceu. Dos filmes de Darren Aranofsky o que eu mais gostava era Pi (e penso que ele ainda era o "favorito" por tê-lo assistido a quase 5 anos atrás, quando eu ainda simpatizava com o diretor), da apelação sem limites de Réquiem Para um Sonho até o desastre de A Fonte da Vida não ficou quase nada na minha memória. De Cisne Negro sei que tem algo que nunca vou me esquecer, e é a bailarina de Natalie Portman.

Não pretendo excluir totalmente Aranofsky da concepção da personagem (afinal não posso saber como se deu a preparação da atriz), mas levando em consideração a falta de rigor do diretor ao filmar a queda de Nina não consigo identificá-lo como um dos principais responsáveis pelo Rigor e Vigor com os quais Portman representa sua personagem (usando a idéia de rigor e vigor de que Ronaldo Passarinho fala em seu texto sobre Cisne Negro).

Nem o interessante trabalho de som do filme, nem os melhores momentos de direção e de montagem (como a cena da masturbação e o espetáculo final), superam o trabalho de corpo, de espírito e de técnica da atriz na construção da percepção estética de uma personagem que não aceita nada menos do que a perfeição: e não deixa de ser irônico assistir a um filme sobre a obsessão pela excelência e pelo domínio de uma técnica que é vítima de severas limitações do seu diretor.

Assim, se tivesse que apontar um Autor nesse filme seria Natalie Portman. Pois é, Se tivesse - mas uma vez sou levado a reconsiderar o que é indispensável para uma obra, ou o que é o Autor em uma obra, ou o que faz dela um obra una, ou se é necessário que a obra seja una ou como deve ser uma crítica sobre uma obra e o que é necessário que se leve em conta para avaliá-la.

Em Cisne Negro, por exemplo, creio ser essencial que a performance de Portman seja cuidadosamente observada para que se possa desfrutar o que de melhor o filme tem a oferecer - quanto a Aranofsky, ele geralmente não fica no caminho daquilo que realmente proporciona a fruição estética de seu filme e, algumas vezes, chega a contribuir de fato com o mergulho no abismo da personagem que a narrativa propõe, sem nunca se igualar, no entanto, a capacidade de mimetizar e expandir o lado mais sombrio daquela aparentemente frágil bailarina que Natalie Portman tão Rigorosamente alcança.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Confronto, não conforto

Identificar o estilo e o espírito de um autor em uma obra de arte é muito confortável. Afinal, se é um “autor” da forma em que geralmente o concebemos poderemos confirmar algumas de suas tendências que já podiam ser observadas em trabalhos anteriores e notar o que ele propõe de Novo em termos de linguagem (no sentido daquilo que ainda não havia sido experimentado por ele). Assim, deparar-se com um filme ou um livro em que podemos conciliar tanto a confirmação de uma forma quanto o constante auto-desafio em levar esta forma a novos limites para não transformá-la em fôrma é o sonho de qualquer um que se interesse pôr escrever sobre arte.

Mas os sonhos (a idéia de ideal) existem, talvez, para nunca serem alcançados. “Only fools are satisfied”, não é isso? Acontece, então, de haver muitas obras em que não há o que poderíamos chamar de equilibro perfeito entre identidade autoral e desafio formal. Entre um extremo que se estabelece tendo por base a constância (o estilo autoral propriamente dito) e outro que tem sua existência condicionada ao incessante movimento (o ímpeto de desafiar a linguagem) está o artista; e não se trata de exigir uma postura sempre equilibrada diante da harmonização de pólos tão díspares (tenho cada vez mais me interessado justamente pelo conflito que surge desse paradoxo), trata-se, isso sim, de observar e refletir sobre como estas duas forças criativas se relacionam e dão luz àquilo que vem a ser a obra.

Agora chego a uma das obras que me fez pensar mais cuidadosamente essa questão: Além da Vida, novo filme de Clint Eastwood. Tiremos de uma vez as informações do caminho: é um filme dividido em três núcleos narrativos; o de um homem que é capaz de falar com os mortos, o de um menino que perde seu irmão gêmeo em um acidente e o de uma jornalista que passa por uma experiência de quase-morte. Eu considero, para o bem e para o mal, Clint Eastwood um dos grandes autores do cinema; é incontornável, portanto, que ao assistir algum novo filme seu eu sempre procure identificar aqueles traços estilísticos (o que se vê) e espirituais (o que não se vê mas está lá) com os quais me habituei. No caso de Eastwood, no entanto, tenho identificado algo como um fenômeno em seus trabalhos mais recentes: depois de sua morte em Gran Torino (morte de um personagem, de um universo) já houveram três filmes em que a figura física do cavaleiro solitário está ausente – ausência que era puramente material em A Troca (o espírito de Eastwood está em cada fotograma daquele filme, vale sempre lembrar), que é palpável e prejudicial em Invictus (um filme que parece ter sido feito a distância) e que é intermitente neste Além da Vida.

Intermitente por que? Voltamos a questão do início desse texto. Eastwood tende a ser acusado de certa burocracia em seu trabalho; um velhinho que faz tudo como manda o figurino e não se permite escapar de uma receita que o precede em muitos anos e da qual se serve minuciosamente para obter algum êxito. Eu discordo totalmente dessa visão. O homem responsável por Cartas de Iwo Jima, A Conquista da Honra, Menina de Ouro, Gran Torino e A Troca, este homem eu o vejo como um gênio. Gênio por compreender de forma tão serena a selvagem disputa entre a constância contínua da marca autoral e o movimento incessante de desafiar uma linguagem de que falo acima, e por usar a favor de seus filmes o que de melhor cada uma dessas forças é capaz de oferecer. Se cada vez mais me convenço de que essa compreensão emocional/técnica se esvaiu em Invictus, fico perplexo diante da potência com a qual ela volta em alguns momentos de Além da Vida, e como subitamente ela se esconde ou, em algumas seqüências, desaparece.

Curiosamente cada um dos núcleos narrativos desse filme corresponde a um nível de força autoral eastwoodiana: quando assistimos a história do homem que fala com os mortos esta força autoral é esmagadora, quando se trata do menino que perde o irmão ela é dispersa e quando acompanhamos a jornalista que morreu e voltou ela nos abandona.

Mas como é possível isso? Como UM filme, por mais que sub-dividido em três, pode sofrer dessa crise de personalidade? Principalmente quando além de dirigido ele é produzido por um homem que é reconhecido enquanto Autor? Resposta mesmo eu não vejo (pelo menos não uma resposta baseada em “fatos”), mas fui levado a algumas conjecturas. Os três protagonistas de Além da Vida não apenas tiveram sua vida tocada pela morte, tiveram sua existência temporariamente suspensa por ela. São pessoas que não conseguem se recuperar do contato avassalador que tiveram com o momento em que algo cessa para sempre. Logo, são solitários, logo estão nas trevas, logo deveriam ser perfeitos para um filme de Clint Eastwood. E são, é só lembrar de uma seqüência exemplar: quando o personagem de Matt Damon (o paranormal) leva sua colega de curso de cozinha para jantar na sua casa o diretor investe naquilo que é seu forte estilístico - a simplicidade. Ao saber que o rapaz é capaz de falar com os mortos, a moça pede que ele tente se comunicar com alguém próximo a ela que já morreu; ele resiste mas acaba cedendo (avisando insistentemente que uma vez que eles façam aquilo não haverá mais volta); ele consegue se comunicar com os pais da moça; algo terrível do passado dela vem à tona; ela vai embora. Escolhendo uma câmera fixa (que no fim da seqüência gira em seu próprio eixo) Eastwood dá vazão a todos os sentimentos em jogo: a decida em direção ao passado; o perceber-se cercado pelas trevas de algo terrível; a ânsia de voltar para a luz, para a vida que se tinha antes desta ter sido tomada pela escuridão; a desesperadora conclusão da impossibilidade de voltar atrás. São conflitos densos e seria fácil perder-se no seu registro ou mesmo simplificá-los – mas a sobriedade sensível de Eastwood não permite que nenhuma das duas coisas aconteça. Movimentando a moça dentro do apartamento do paranormal, fazendo com que ela oscile entre a “luz” (o corredor de entrada que está todo iluminado) e a “escuridão” (a sala, onde o paranormal realiza o contato com os mortos e que está com as luzes apagadas), estando consciente do tanto que pode ser feito apenas ao explorar o espaço cênico e os recursos de iluminação e câmera Eastwood tira da cena tudo o que ela tinha a oferecer.

E qual é o problema da narração dos outros personagens? Enquanto na história do menino que perde o irmão percebo a preguiça de um autor acomodado (mas ainda autor), quando se trata da jornalista me surpreendo com o que temo, mas não posso evitar, chamar de desleixo. Com exceção de uma cena (a morte que a jornalista assiste ao visitar um centro que pesquisa experiências de quase-morte) tudo me parece puramente informativo e raso. Os conflitos da personagem são simplificados (nem sombra da densidade dramática do núcleo narrativo do paranormal) e as mudanças que ocorrem em sua vida são introduzidas como ilustrações de um livro que ao invés de enriquecerem as palavras de que já dispúnhamos as empobrecem, ou as tornam desnecessárias (maior exemplo é a troca de outdoors, ou o diálogo no restaurante em que a personagem é informada de que foi substituída em todos os sentidos). As partes do filme destinadas a esta vertente do roteiro não apontam nem um autor inquieto nem um autor acomodado, simplesmente não apontam para autor nenhum; não me instigam a nada.

É, de novo a pergunta é incontrolável: mas como pode isso?! De novo digo que não sei; mas (ha! Como é chato e necessário fazer ressalvas quando falamos de arte) me sinto provocado por essas obras que não são domadas a primeira vista (quem pode ter certeza do que uma revisão é capaz de mudar?), ou que não se enquadram em todas as pré-concepções que eu tinha de Autor, de unidade ficcional e de identidade estética. Uma parte de mim acha bom que eu não consiga dizer se um filme como Além da Vida é bom ou não. E eu inteiro fico excitado pela enésima prova que tenho de que não há sistema que dê conta de tudo (neste caso chamo sistema a velha e boa “política de autores” que muito me ajuda e muito me deixa na mão), e que o juízo de valor, sozinho, não é nada mais do que uma forma de colocar artistas e obras em competição, como se fossem cavalos de corrida.

Além da Vida só evidenciou o problema. Se Deus quiser não me livro dele tão cedo.