sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O ESPÍRITO DE AVENTURA




Ouvi muitos e muitos elogios sobre os 10 primeiros minutos de UP, nova animação dos estúdios Pixar. Elogios que são mais do que merecidos: praticamente sem palavras Pete Docter (diretor e um dos roteiristas) institui na animação tudo aquilo que será essencial para que entendamos a narrativa – e que narrativa, diga-se de passagem. Acompanhamos um menino e uma menina e o nascimento de uma amizade entre ambos: o que os une? A aventura – ou pelo menos o desejo de se aventurar, o que para crianças tem uma íntima relação com experimentar o desconhecido, com enfrentar mistérios. Sem querer dar aulas de semiótica, mas há nesses primeiros 10 minutos um símbolo/signo/ícone (tanto faz, afinal nesse caso a imagem vale mais que mil palavras): o balão. Balão que é o início do amor entre Carl e Ellie, e que indica o começo de todas as aventuras que ambos estão por experimentar. Ellie tem um caderno onde coloca todas as aventuras que já viveu e todas as que está por viver – sendo a mais aguardada aquela para a qual convida Carl: viajar para o topo de uma cachoeira na América do Sul e lá passar toda a vida, e assim preencher as páginas em branco das “aventuras que ainda vou ter”.

Eles crescem, eles casam, eles não podem ter filhos e nesse processo é desenvolvida tanto a cumplicidade do casal quanto nos é dado todo o grau de importância que Ellie tem para Carl: nesses inesquecíveis 10 minutos Carl nem sequer fala – Ellie significa absolutamente tudo para ele: ela é sua voz, seu coração, sua maior aventura até aquele momento. E nesse cotidiano a “grande aventura” vai sendo adiada e esquecida até ser trazida à tona pela morte de Ellie; se torna incontrolável o desejo de Carl em seguir o plano original e levar sua esposa para o topo daquela montanha, ao lado da cachoeira, para que fiquem lá para sempre.


E seria nesse ponto que começa a aventura? O filme nos provará que não – desde o momento em que os majestosos balões eclodem do teto da casa e a lançam ao céu (símbolo máximo da falta de limites) UP se propõe, de alguma forma, a desconstrução de tudo que aprendemos e acreditamos nos seus minutos iniciais e se esse processo não se dá sempre de forma harmoniosa, ele é predominantemente prazeroso nos sentidos estéticos, narrativos e sentimentais.


A jornada pela qual Carl e seu acompanhante acidental passam é antes uma necessidade do que uma experiência em si – por mais que seja uma necessidade inconsciente para ambos. Tal necessidade é usada aqui, narrativamente, nas suas funções mais tradicionais: a jornada exterior é reflexo da interior, algo está mudando durante essa jornada e algo deve ser apreendido de tudo isso ao final. Mas que importância tem a convencionalidade com que as funções narrativas da jornada são tratadas quando elas são concebidas em imagens tão lindas e arrebatadoras? UP é arrebatadoramente cativante – quase uma surra no coração do espectador – e talvez esteja na infinita capacidade que certos momentos do filme têm de sensibilizar-nos que esteja a estranheza que, às vezes, acompanha as mudanças de foco na história, ou mesmo as mudanças de gênero: da agridoce história de amor à aventura frenética.


Acredito piamente, no entanto, que esse estranhamento seja vencido ao passo que nos entregamos à aventura tanto quanto o resistente Carl se entrega (apesar de ainda ressoar sutilmente uma espécie de atrito entre as histórias de Carl e Ellie e a do caçador obcecado por uma ave – é importante dizer, no entanto, que o personagem de Russel, e todas as suas implicações, é brilhantemente inserido como um fio condutor entre as duas narrativas). E esse estranhamento é definitivamente vencido quando percebemos que tudo que vimos até os últimos momentos do filme foi necessário para que a mensagem final nos fosse passada: e aqui cada objeto já trabalhado por Pete Docter e sua equipe ganham uma força e uma presença em cena tamanhos que, sozinhos, são capazes de produzir as mais sinceras lágrimas: o álbum de Ellie, as poltronas do casal, o pote de moedas, a medalha de tampinha de refrigerante, o balão – uma força que também é observável na animação anterior de Docter, afinal quem esquece daquele pedacinho de madeira que antes fazia parte da porta de Boo?


Tudo pelo o que passamos durante a projeção foi fundamental para que entendêssemos que é difícil dizer adeus para certas coisas e certos sentimentos, mas invariavelmente nós não temos escolha. E o instante em que Carl se dá conta disso será sempre lembrado por mim como um dos momentos mais bonitos que já experimentei em uma sala de cinema.


Afinal o que é uma aventura? Onde ela começa? Quando ela acaba? Qual o seu espírito? Talvez seja pela impossibilidade de palavras que Docter tenha optado pela imagem para se expressar e, assim como no final genial de Monstros S.A., ele nos presenteia com uma última cena que é, ao mesmo tempo, poética, significativa e (por que não?) misteriosa.

Obrigado pela aventura Docter! Agora que venham outras.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O possível impossível e a impossibilidade de poder

"Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar e não do achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
E é inútil procurar encurtar o caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desitência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desisitir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição.
A desistência é uma revelação".

(Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H.)

Sempre que leio esse trecho do meu livro favorito no mundo todo eu penso que é um insulto fazer um trabalho que precisa mais estar de acordo com as regras ridículas da ABNT do que ser bom de verdade.
Bobo de mim que achava que a literatura seria entendida pelo menos no curso de Letras.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Da dor de perder e da alegria de encontrar







Muita coisa se perde na tradução. E não apenas de um idioma para o outro, mas também (e principalmente) de uma pessoa para a outra. E quando não é mais possível confiar em palavras ou atitudes, o que resta é o instinto de registrar e interpretar o fugaz, o inefável.
Conseguir enxergar beleza nessas situações transitórias, nesses perdidos rumos que traçam muitos caminhos, nessa doce melancolia de se sentir tão só que aquilo que nos une a outra pessoa é a solidão compartilhada é, talvez, uma das qualidades mais inegáveis de ENCONTROS E DESENCONTROS.
A câmera de Sofia Coppola tem um certo ar etéreo, uma certa leveza acidentada, um peso que quase não se sustenta em tanta sutileza: tal é o peso sobre os ombros de Bob Harris e Charlotte, protagonistas do segundo trabalho da diretora para o cinema.
Muito fácil enxergar que os dois são um corpo estranho na acelerada e confusa Tóquio, que o idioma é inconciliável, que os fuso horários são impossíveis. Muito mais doloroso é perceber que mais estranho eles são ainda às suas rotinas conjugais, no seu país de origem, entre seus amigos de anos. E (in) conscientemente um reconhece no outro esse fino desespero por uma companhia verdadeira, por um silêncio confortável. Em Tóquio se torna insuportável (ainda assim suportável) as coisas como são (e não a vida como está); do tédio que os lembra insistentemente de um aterrador vazio à forçada e dispendiosa comunicação com os seus.
E tudo isso poderia ser nada, mas então temos Sofia Coppola. Sua visão de mundo (a câmera) se interessa por aqueles que adorariam se encaixar em um mundo que lhes parece apropriado para sua existência, e expressa como é doído a constatação que esse encaixe não será possível. Mas a diretora enxerga beleza nos pequenos momentos de tentativa de uma interação verdadeiramente humana: seja ela uma noite de bebedeiras que termina em um videokê, seja uma conversa sonolenta sobre viver, casar, ter filhos e se acomodar. O olhar de Sofia é perdido, porque não sabe onde está exatamente aquilo que procura, daí tantas críticas a acusarem de uma direção “relaxada” e “sem propósito”. Mas é indispensável que se entenda que o que a interessa é, justamente, essa procura que insiste em nunca cessar, porque isso implicaria na última grande desistência, na última grande ilusão perdida. A luz aplicada em cada cena lembra a de olhos marejados, lágrimas que não querem cair, até que caem e se mostram tão verdadeiramente cativantes que a beleza imperceptível dos dias mais comuns se mostra então com uma força que duvidávamos que pudesse comportar.
A sua direção “desleixada” permite enquadramentos fora de quadro porque, antes de permitir, ela é isso. Ela é as guitarras sujas dos primeiros acordes de Just Like Honey, ela é as conversas aleatórias entre seus protagonistas e seus respectivos cônjuges, e ela é também a frustração, a realização e completude de uma despedida discreta em uma rua cheia de gente.
Sofia Coppola olha triste para os humanos e suas relações, mas não hesita em registrar a absurda felicidade fruto de um verdadeiro encontro, mesmo dentro de uma vida que é cheia de incongruências.
Catando pequenos momentos nos cantos empoeirados do cotidiano, a jovem diretora (a câmera) perscruta o que há entre as pessoas, e dentro delas, e no seu entorno. Existe a solidão, e existe a inigualável sensação de sabermos que podemos sim, por mais que por alguns instantes, ser completos.
Sofia sabe que muita coisa se perde na tradução, e sabe também aquilo que quer filmar: essa beleza que se desfaz logo que é reconhecida, mas que antes disso se mostra a nós, espectadores, através do olhos de uma autora que entende que o particular é intransferível (como é latente nos sussurros de Bob no ouvido de Charlotte ao fim da projeção), mas que também se deslumbra com essas possibilidades de conseguirmos compartilhar aquilo que nos é tão pessoal. É uma dessas vezes em que um filme é verdadeiramente bonito e doloroso.