sexta-feira, 25 de março de 2011

O olhar de cada dia



Theodoros Angelopoulos é um homem que nunca vou esquecer, porque eu sei que ele nunca se esquecerá de nós.

Assistir a um filme deste diretor grego, que fez o filme da década na minha opinião (Vale dos Lamentos), é como estar exposto a toda a força devastadora do olhar de Deus, do olho que tudo vê. Amplidão, plenitude, atemporalidade, memória e angústia são as palavras que meu coração balbucia quando penso nesse gênio.

Talvez a melhor definição para Angelopoulos seja dada por um de seus personagens: o curador de cinema de Um Olhar a Cada Dia se refere a si mesmo como um "colecionador de olhares esvanecidos". Todo colecionador, é fato, preocupa-se com a preservação de algo - preservação que invariavelmente está a serviço da busca por uma explicação.

Penso ser inevitável para os artistas se debruçarem, eventualmente, sobre aquilo que os guia e os motiva: sua linguagem. Em maior ou menor grau sempre haverá o movimento em direção a meta-linguagem (que é, também, meta-entendimento e auto-conhecimento). É disso que se trata Um Olhar a Cada Dia - a busca Humana, que é sempre uma jornada, por si mesmo (e conseqüentemente pelo todo, nunca o contrário). Harvey Keitel é um diretor a procura de três rolos perdidos que registraram, pela primeira vez, uma imagem em movimento nos Balcãs, ele procura o "first gaze" dos irmãos Manakis. Desdobramento de nosso sempiterno drama: descubramos de onde viemos e, quem sabe, teremos uma visão de para onde estamos indo.

Mas se em um homem estão todos os homens (de Ulisses até John Dillinger) a câmera de Angelopoulos se desvencilha daquilo que poderíamos mais facilmente reconhecer como subjetividade e se realiza plenamente como a possibilidade de olharmos por trás do espelho que nos reflete – e ao invés de encontrarmos apenas nosso reflexo encontrarmos a nós mesmos.

Antes, dois ou três anos atrás, eu pensava cinema enquanto algo Aparente (se tratava de imagem, não é?), mas redescobrir Bresson, Bressane e me embasbacar com Angelopoulos me evidenciou como eu estava, o tempo todo, diante de uma linguagem absolutamente metafísica. Uma linguagem que se dá, também, entre o entre atos vazio que são os intervalos entre uma sequência e outra, que é capaz de catalisar o efeito de uma cena justamente por escondê-la e que (re)(des)constrói tempo e espaço a partir de um tempo e espaço que deixamos de reconhecer como nosso e como contínuo para participarmos de uma nova combinação dessas dimensões que dão luz ao que poderíamos limitar chamando de Ficção (e fricção).

Tempo. A câmera de Angelopoulos inventa tempo. Ao nunca cortar as sequências em que seus personagens recordam alguma coisa, ele deixa que a lembrança invada seu quadro e traga para dentro dele sua realidade, sem jamais interromper o fluxo que sempre representa o coração pulsante. Só vendo o homem Keitel se transformar na criança de um lar violentando, mas que ainda reclama para si a decência de ter uma fotografia, de ter uma lembrança, foi só ao assistir tal milagre acontecer diante dos meus olhos despreparados que entendi do que é capaz um plano-sequência. Foi na viagem de táxi do início do filme, dos poucos momentos em que o diretor usa cortes mais frequentes, que percebi com que força vem a angústia da mudança de uma imagem que não indica mudança de situação. Foi na chacina de inocentes, que faz o uso mais aterrorizante que já vi do som, que forçosamente doeu em mim o nevoeiro pelo qual a humanidade tem caminhado e por onde tantos tem se perdido.

Desculpem por ser tão vago, mas ainda hoje sinto meus olhos ofuscados pela lembrança deste filme que vi quase 4 meses atrás. Ofuscado como o branco projetado na tela onde deveria estar o filme dos irmãos Manakis. Contemplando fixamente e me percebendo pasmo. Vagando pelos destroços de uma Europa exausta. Encarando um homem que na falta de um futuro e sendo empurrado violentamente pelo passado não consegue ficar em pé no presente. Percebendo que o peso em suas costas não é tanto de não compreender o que está por vir, mas por reconhecer em si, em cada parte do seu corpo, tudo o que já passou.

Estamos tão acostumados a nos vermos perplexos quando contemplamos toda a vastidão que existiria se aceitássemos que há um Deus que nos esquecemos de como Deus se veria perplexo ao tentar compreender a caminhada que há séculos a humanidade, tortuosa e belamente, empreende sozinha (?). (!)

segunda-feira, 14 de março de 2011

John Hughes gostaria de ter assistido


Esse texto é uma urgência:

Greg Mottola é o mais novo descendente de Marcel Proust que conheci.

Assistir Adventureland (Férias Frustradas de Verão) apenas sublinha que em Superbad, além do envolvimento afetivo de Seth Rogen, Evan Goldberg e Judd Apatow, havia um grande homem de Cinema que transformou aquele amontoado de lembranças de escola em uma definição sensivelmente precisa do que é Amizade.

Não desconsidero em hipótese alguma o talento e a criatividade do trio Apatow, Rogen e Goldberg para a concepção de um universo narrativo/temático (O Virgem de 40 Anos, Ligeiramente Grávidos e Tá Rindo de Que? merecem muito mais respeito do que recebem de fato), mas quando parei pra pensar sobre quem eu deveria escrever um texto não tive dúvidas de que a resposta era Greg Mottola.

Se em Superbad o diretor teve que lidar com material e memória alheios (o roteiro, e as lembranças, eram de Rogen e Goldberg), em Adventureland ele se lança a reconstrução, memorialista e estética, do seu próprio passado, ou, como ele mesmo diz, do pior verão de sua vida (nesse caso o final dos anos 80, quando ele teve que trabalhar num parque de diversões) - o que parece abrir portas para a exploração mais intensa de sua identidade autoral. Não nos precipitemos, jamais se trata da "descoberta" de um estilo mas sim do aprofundamento daquilo que era pulsante em Superbad. E creio ser impraticável falar deste estilo que já era pulsante sem mencionar o uso de um recurso que pode ser tão facilmente banalizado (e que é tão sinceramente louvado por Mottola): o campo/contracampo.

Quem prestou atenção na sequência final de Superbad (só pra citar a mais óbvia) sabe do que eu estou falando: o homem é um cirurgião/poeta na edição e na montagem dos planos que constituem a cena; e raras vezes senti ser tão verdadeira a premissa de que uma sequência não é apenas ela n'ela mesma mas também aquilo que a precede e que a sucede. Peguemos dois exemplos: James, o protagonista, se empolga narrando uma corrida de cavalos de mentira no posto que ocupa em seu novo pior emprego de todos os tempos - é, provavelmente, a primeira cena em que sentimos franca afeição pelo personagem e sua situação e é, justamente, a cena escolhida para apresentar o personagem à futura garota de seus sonhos que conhecemos em um único contracampo guardado para o final da sequência, em que Em (a garota dos sonhos) sorri e observa James que se surpreende tanto quanto nós por ter sido capaz de despertar o interesse de alguém apresentado de maneira tão interessante (a elipse sempre vai ser essencial para o fascínio que Em exerce nele e em nós). Mais adiante Em leva James de carro para a casa dele; Mottola se propõe o velho e complicado campo/contracampo do silêncio que evidencia uma tensão amorosa. Ele sabe muito bem que se aquela sequência não convencer o espectador a respeito do efeito que uma garota como Em tem na vida de um garoto como James nada mais irá funcionar em seu filme (narrativa e esteticamente); como resolver? Primeiro, planos curtos de campo/contracampo (James olha de soslaio para Em), depois planos mais curtos de James e mais longos e próximos de Em, por fim um close longuíssimo (quando comparado com os outros planos da sequência) de Em que deixa claro um dos grandes encantos que a montagem é capaz de produzir: a dilatação do tempo e a concentração do espaço (só existe Em durante um tempo que não se pode definir cronologicamente - esse tipo de ressignificação de tempo e espaço aponta para a capacidade do diretor de conceder ao tom realista de seu filme aquele ar de invenção onírica tão próprio da lembrança).

Dizer que Mottola respeita e ama o tema de que trata já me parece dispensável - mas, diferente dos talentosos e interessantes Apatow, Rogen e Goldberg, ele consegue transformar a admiração por um universo temático em universo estético. Na valorização do clássico (o uso que ele opta por fazer do campo/contracampo) e nas pequenas grandes ousadias (como o close inicial em James que já deixa claro que estamos diante de um rapaz destinado a sofrer), Mottola expande tudo que já era por demais bonito e instigante em Superbad e faz aquilo que um bom memorialista deve ser capaz de fazer: mostrar que a experiência pessoal de um também é (sem nunca ser exatamente) a experiência pessoal de todos. Dominando o que já foi feito ele consegue mostrar aquilo que Ele é capaz de fazer, fazendo parecer possível (temática, estética e sensivelmente) o diálogo conturbado entre estilo e reinvenção (entre o que há dos outros em "mim" e o que "eu" posso oferecer aos outros de "meu").


Notinha: Faz uns 2 anos Greg Mottola me fez ter vontade de escrever sobre a importância da Imaturidade para arte. Para não cair na cilada de endeusar a juventude (da forma como alguns endeusam a velhice) digo: Que bom que existem as duas pontas, que doloroso que nada possa ser vivido duas vezes, que lindo que mesmo sabendo disso pessoas como Mottola, ao invés de se retraírem em um casulo de melancolia e distanciamento, insistam em recriar o que passou achando nessa revisitação a criação do Novo que finca os pés no passado e os olhos no céu. Que lindo.


sábado, 5 de março de 2011

O rigor de Natalie Portman




Com o tempo fui me desacostumando a levar em conta o trabalho do Ator no cinema e me acostumei a pensar que a excelência de uma interpretação em um filme dependia tanto do ator quanto do diretor. Transformei, assim, o ator em mais um dos indícios da identidade autoral do diretor.

Fazer com que eu repensasse essa questão foi a maior contribuição que Cisne Negro me ofereceu. Dos filmes de Darren Aranofsky o que eu mais gostava era Pi (e penso que ele ainda era o "favorito" por tê-lo assistido a quase 5 anos atrás, quando eu ainda simpatizava com o diretor), da apelação sem limites de Réquiem Para um Sonho até o desastre de A Fonte da Vida não ficou quase nada na minha memória. De Cisne Negro sei que tem algo que nunca vou me esquecer, e é a bailarina de Natalie Portman.

Não pretendo excluir totalmente Aranofsky da concepção da personagem (afinal não posso saber como se deu a preparação da atriz), mas levando em consideração a falta de rigor do diretor ao filmar a queda de Nina não consigo identificá-lo como um dos principais responsáveis pelo Rigor e Vigor com os quais Portman representa sua personagem (usando a idéia de rigor e vigor de que Ronaldo Passarinho fala em seu texto sobre Cisne Negro).

Nem o interessante trabalho de som do filme, nem os melhores momentos de direção e de montagem (como a cena da masturbação e o espetáculo final), superam o trabalho de corpo, de espírito e de técnica da atriz na construção da percepção estética de uma personagem que não aceita nada menos do que a perfeição: e não deixa de ser irônico assistir a um filme sobre a obsessão pela excelência e pelo domínio de uma técnica que é vítima de severas limitações do seu diretor.

Assim, se tivesse que apontar um Autor nesse filme seria Natalie Portman. Pois é, Se tivesse - mas uma vez sou levado a reconsiderar o que é indispensável para uma obra, ou o que é o Autor em uma obra, ou o que faz dela um obra una, ou se é necessário que a obra seja una ou como deve ser uma crítica sobre uma obra e o que é necessário que se leve em conta para avaliá-la.

Em Cisne Negro, por exemplo, creio ser essencial que a performance de Portman seja cuidadosamente observada para que se possa desfrutar o que de melhor o filme tem a oferecer - quanto a Aranofsky, ele geralmente não fica no caminho daquilo que realmente proporciona a fruição estética de seu filme e, algumas vezes, chega a contribuir de fato com o mergulho no abismo da personagem que a narrativa propõe, sem nunca se igualar, no entanto, a capacidade de mimetizar e expandir o lado mais sombrio daquela aparentemente frágil bailarina que Natalie Portman tão Rigorosamente alcança.