sexta-feira, 17 de junho de 2011

Me leva junto Totoro



Meu Amigo Totoro é sobre a beleza. É sobre o pânico histérico que vem da possibilidade dessa beleza desaparecer diante dos nossos olhos.
Não é um épico; é um diário - onde, antes de qualquer coisa, o autor parece querer falar sobre como o tempo anda em círculos de conforto intermitentemente tomados de assalto pela melancolia.
Não é a fantasia que invade a animação de Hayao Miyazaki – somos nós (público, personagens) que invadimos a fantasia da mente mais intrigante e fascinante deste século. Daí que a imagem mais exata para a arte de Miyazaki seja o vôo: vôo de espírito, vôo de linguagem. Mei é, ela mesma, a própria Animação: a fluidez e vivacidade dos seus movimentos – como disse um amigo – jamais teriam a mesma espontaneidade no corpo de um ator; porque o que Miyazaki evidencia é um movimento que nem nossa retina é capaz de captar, apesar de ser notório que tal dança de membros ocorre na realidade.

Meu Amigo Totoro é o antídoto contra toda a vulgaridade, contra todo o cinismo e contra toda a maldade do mundo. Miyazaki quer falar, sempre, daqueles que não aprenderam ainda a ter vergonha de chorar, daqueles que choram gritando e voam sonhando enquanto árvores mágicas crescem a seus pés.
As duas irmãs protagonistas, na espera cruel que lhes é imposta, vão chutando com graça e curiosidade as pedras do seu cotidiano, e é neste hang-out infantil (e, geralmente, tão ignorado pelos grandes estúdios de animação) que está o interesse do movimento animado: o vento que põe tudo em movimento é Totoro, que é Imaginação, que é Criança, que é Animação, que é o Artista.
Repito: é desesperador voltar para este mundo em ruínas após tanto tempo na companhia do belo – é, no entanto, necessário; e, após Meu Amigo Totoro, até este nosso mundo se torna mais suportável.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Ao Humano e A L É M



Jogo
Penso que só há jogo quando há diálogo. Dialética. Não faz sentido criar uma estratégia e colocá-la em ação a não ser que se tenha em mente algo exterior a nós mesmos; algo que nos ultrapasse.
Não existe monólogo no jogo. Tudo é dirigido a alguma coisa.

Cena
Me parece que cena é aquilo que nossa percepção cinge. É nossa limitação e nossa liberdade de escolha. É o que se passa dentro e fora. É o que está aqui e lá. No diálogo (jogo) entre cenas configura-se A cena, essa quase instituição que respira através da subjetividade inescapável do ponto de vista, mas que, sentimos e sabemos, é bem maior do que nossos olhos podem (e devem) alcançar.

Salvando uma vida
Eduardo Coutinho coloca um anúncio no jornal “recrutando” mulheres que queiram contar suas histórias diante de uma câmera. Depois escala atrizes que interpretarão essas histórias, também diante das câmeras. Diante, neste caso, é palavra essencial: porque aquilo que Coutinho faz (não sei se é possível chamar de cinema, de arte, de milagre) sempre parece lembrar à câmera que é dela o privilégio de estar colocada frente à matéria humana – e não o contrário.

Humana também é palavra essencial; Jogo de Cena é, primeiro e principalmente, fruto de tudo o que é e que nos torna humano(s). No relato interpretativo das mais diversas histórias (cada uma trágica dentro de sua proporção) encontro com verdades e revelações que dizem respeito a cada um de nós. Aquelas mulheres, como anunciadoras da boa nova, verbalizam com seus olhos que só passando pelo desespero chega-se a salvação. Não que alguém se salve em Jogo de Cena (muito pelo contrário); mas se a salvação é possível é só pelo calvário da desistência.

E isso é só o tema.

Sentado em um palco de teatro vazio, com uma câmera e um microfone direcional, Coutinho desafia toda e qualquer idéia acabada que tenhamos formulado sobre ficção, realidade, narração, personagem, memória, sinceridade, criação, manipulação, etc, etc, etc. No processo que inicialmente se desenrola pelo jogo de adivinhação de quem é a atriz e quem é a pessoa “real” e que atinge o alvo da metalinguagem espelhada quando nos força a perguntar qual a verdade da atriz que finge mentir e qual a mentira da pessoa real que garante dizer a verdade.

Perplexa, maravilhada, fascinada, Fernanda Torres contempla o momento em que a memória de outrem entra em sua corrente sanguínea emocional e torna-se memória SUA. No ímpeto de REpresentar (reapresentar? (N)o que a repetição (se) transforma?) a atriz cria o novo; novo porque não existia antes, ao mesmo tempo que ancestral porque sempre existiu através de outras vozes, de outros olhos, de outras lágrimas.

Na montagem divina (divina por ser plenamente humana, nunca podemos esquecer) vozes emolduram cenas; pausas dramáticas exigem closes; lágrimas pedem respeito. É Coutinho, talvez, um dos homens que mais se aproxima de Hitchcock no amor pela imagem; e também o que mais se afasta – porque Coutinho vê além da imagem, Coutinho quer tudo que ela representa (essa palavra que persegue as atrizes e que se impõem às mulheres “reais”). Como nas fotografias de Sally Mann, a potência das imagens de Coutinho parece estar mais em algo que já foi, que já não existe, restando “apenas” aquelas cinzas que vislumbramos.

É ainda preciso dizer que Jogo de Cena é das coisas mais lindas já feitas em homenagem ao melodrama (gênero genuinamente feminino – sem melindres!). Que Jogo de Cena reduz seu aparato técnico ao mínimo do mínimo para que não reste dúvidas do que é aquilo que realmente importa. É preciso dizer. É preciso chorar por Jogo de Cena. É preciso amá-lo, do jeito que é preciso que amemos nossa mãe, nosso pai, nossa origem.

Não sei mais escrever; esse ato fílmico me esgotou, me calou. Me mudou.

Fazia tempo que não me deparava com o Amor em estado tão bruto.