terça-feira, 14 de setembro de 2010

Where the truth lies



Toda arte é feita para ser apreciada.

O pintor espera que seus quadros sejam vistos, o escritor espera que seus livros sejam lidos, o dramaturgo espera que suas peças sejam assistidas. Este momento de contato entre público e obra de arte é um ato de comunicação: alguém (o artista) envia uma mensagem (sua obra) e nós (os potenciais apreciadores) a recebemos das mais diversas formas.

Toda a comunicação pode ser facilitada por um veículo que seja eficiente em transmitir a mensagem, e por 50 anos a televisão foi um dos grandes veículos de difusão das mais diversas obras (perdendo hoje, talvez, para a internet).

Atacada por Adorno e Horkheimer (e muitos outros) como o veículo das massas, a responsável pela idiotização da audiência, a destruidora da essência artística através da produção industrial de novelas, tele-jornais e séries, a TV indiscutivelmente teve sucesso em sua proposta primeira: levar o que quer que fosse que ela apresentava para a sala e os quartos das pessoas ao redor do mundo.

Quando assistimos a uma final de Copa do Mundo sabemos que não estamos sozinhos, mas na companhia de bilhões que se reúnem em vários países para vivenciar a mesma experiência. E esse potencial de conectividade (sem sombra de dúvida ligado ao poder aquisitivo dos donos das gigantes da comunicação) fez da TV uma presença incontornável nos lares humanos.

Mas o que é feito dessa capacidade de atingir um número vertiginoso de pessoas em escala global? Ou melhor, o que pode ser feito dessa capacidade?

Um homem de mais de 30 anos relembra de sua infância na década de 60, quando tudo o que ele vivenciava era a mais assustadora e maravilhosa novidade. Um chefe de família com distúrbios emocionais tenta se adequar a violência inerente à sua profissão de mafioso. Um homem que perdeu sua identidade e caminha em direção à auto-destruição como meio de atingir o tão sonhado auto-conhecimento. Essas premissas não se tratam de um filme de Fellini, nem de Martin Scorsese ou de Michelangelo Antonioni, mas sim de, respectivamente, Anos Incríveis, Família Soprano e Mad Men, exemplos da excelência que algumas séries de TV tem alcançado nos últimos anos – e que foram ou são acompanhadas religiosamente pela audiência “idiotizada” de que Adorno e Horkheimer tanto reclamavam na metade do século XX.

Assim como o cinema já foi considerado o patinho feio das artes (era um entretenimento de feira barato), hoje a televisão ainda é vista como um campo impermeável à possibilidade de verdadeira expressão artística. Mas as séries citadas acima (e muitas outras ainda) não só mostram que esta impermeabilidade à arte é um falso obstáculo, como confirmam (episódio após episódio) que esta é uma união que gera belos frutos.

Dentro do modo de produção televisivo (o difícil equilíbrio entre a permanência de uma identidade autoral e a capacidade de satisfazer o público) há grandes artistas (como Carol Black, Neal Marlens, David Chase e Mathew Weiner) que atingem o feito de nos entregar produções que mostram que o essencial não é satisfazer os telespectadores, mas instigá-los. Pois o que pode uma tacanha rotulação que afirme que em determinado lugar não há possibilidade de arte diante de provas cabais dadas por grandes artífices de que a arte sempre pode brotar de toda e qualquer fonte?

Uma das mostras de tanta capacidade criativa pode ser assistida hoje por qualquer um com TV a cabo ou internet banda larga: a série Mad Men. Donald Draper, o protagonista da série ambientada nos anos 60 em uma agência de publicidade, é o personagem televisivo da década (e sem dúvida uma das maiores conquistas de toda a história da TV): o violento, controlador, ambíguo e melancólico Draper. O perdido, solitário e sem raízes Dick. Na radiografia de seu passado nos deparamos com a angústia e o desespero de uma origem mísera, de um crescimento doentio e de um presente sombrio.

A série, em sua quarta temporada, vem, com a contundência inerente aos que dominam a sutileza, expor cirúrgica/liricamente o interior do indivíduo perseguido pelo passado e acuado pelo futuro; e no último episódio exibido nos preenche com a importância de se ter alguém que nos conheça nessa vida a partir da (des) construção da cumplicidade entre Don e Peggy. A ex-secretária e o poderoso patrão, em uma noite verdadeiramente passada na companhia um do outro, se dão conta da irmandade de seus destinos: são dois indivíduos que relutam em aceitar um destino que lhes é imposto por eles mesmos, esperneando sempre que são obrigados a seguir em frente pagando o preço de afundarem mais e mais na solidão. Só que realmente não estão sozinhos, ou melhor, estão sozinhos juntos.

Nesta série todos os sobreviventes estão mortos: a histérica Betty, o decadente Roger, a vaidosa Joan, os solitários Don e Peggy. Mathew Weiner, criador e produtor da série, tem a sensibilidade de nos fazer compreender que não se trata apenas da falta de direção para a qual os anos 60 apontavam, mas sim, essencialmente, para a inexistência de um norte que é também essência da condição humana – demonstrando isso pelas elipses no tempo que desnorteiam público e personagens, pelos planos-detalhe que insistem em mostrar mãos que não encontram outras mãos para segurá-las, pelo rigor obsessivo nos enquadramentos e movimentos de câmera que só fazem saltar aos olhos o caos que comanda a vida daqueles seres.

Este último episódio de Mad Men (e todos os anteriores, em maior ou menor grau) é prenhe da irascível insistência humana de continuar caminhando sem qualquer garantia de que, um dia, se chegará a qualquer lugar que seja. É o mais esmagador dos medos. É a mais nobre das esperanças.

São homens loucos. Não somos todos?

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