segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Confronto, não conforto

Identificar o estilo e o espírito de um autor em uma obra de arte é muito confortável. Afinal, se é um “autor” da forma em que geralmente o concebemos poderemos confirmar algumas de suas tendências que já podiam ser observadas em trabalhos anteriores e notar o que ele propõe de Novo em termos de linguagem (no sentido daquilo que ainda não havia sido experimentado por ele). Assim, deparar-se com um filme ou um livro em que podemos conciliar tanto a confirmação de uma forma quanto o constante auto-desafio em levar esta forma a novos limites para não transformá-la em fôrma é o sonho de qualquer um que se interesse pôr escrever sobre arte.

Mas os sonhos (a idéia de ideal) existem, talvez, para nunca serem alcançados. “Only fools are satisfied”, não é isso? Acontece, então, de haver muitas obras em que não há o que poderíamos chamar de equilibro perfeito entre identidade autoral e desafio formal. Entre um extremo que se estabelece tendo por base a constância (o estilo autoral propriamente dito) e outro que tem sua existência condicionada ao incessante movimento (o ímpeto de desafiar a linguagem) está o artista; e não se trata de exigir uma postura sempre equilibrada diante da harmonização de pólos tão díspares (tenho cada vez mais me interessado justamente pelo conflito que surge desse paradoxo), trata-se, isso sim, de observar e refletir sobre como estas duas forças criativas se relacionam e dão luz àquilo que vem a ser a obra.

Agora chego a uma das obras que me fez pensar mais cuidadosamente essa questão: Além da Vida, novo filme de Clint Eastwood. Tiremos de uma vez as informações do caminho: é um filme dividido em três núcleos narrativos; o de um homem que é capaz de falar com os mortos, o de um menino que perde seu irmão gêmeo em um acidente e o de uma jornalista que passa por uma experiência de quase-morte. Eu considero, para o bem e para o mal, Clint Eastwood um dos grandes autores do cinema; é incontornável, portanto, que ao assistir algum novo filme seu eu sempre procure identificar aqueles traços estilísticos (o que se vê) e espirituais (o que não se vê mas está lá) com os quais me habituei. No caso de Eastwood, no entanto, tenho identificado algo como um fenômeno em seus trabalhos mais recentes: depois de sua morte em Gran Torino (morte de um personagem, de um universo) já houveram três filmes em que a figura física do cavaleiro solitário está ausente – ausência que era puramente material em A Troca (o espírito de Eastwood está em cada fotograma daquele filme, vale sempre lembrar), que é palpável e prejudicial em Invictus (um filme que parece ter sido feito a distância) e que é intermitente neste Além da Vida.

Intermitente por que? Voltamos a questão do início desse texto. Eastwood tende a ser acusado de certa burocracia em seu trabalho; um velhinho que faz tudo como manda o figurino e não se permite escapar de uma receita que o precede em muitos anos e da qual se serve minuciosamente para obter algum êxito. Eu discordo totalmente dessa visão. O homem responsável por Cartas de Iwo Jima, A Conquista da Honra, Menina de Ouro, Gran Torino e A Troca, este homem eu o vejo como um gênio. Gênio por compreender de forma tão serena a selvagem disputa entre a constância contínua da marca autoral e o movimento incessante de desafiar uma linguagem de que falo acima, e por usar a favor de seus filmes o que de melhor cada uma dessas forças é capaz de oferecer. Se cada vez mais me convenço de que essa compreensão emocional/técnica se esvaiu em Invictus, fico perplexo diante da potência com a qual ela volta em alguns momentos de Além da Vida, e como subitamente ela se esconde ou, em algumas seqüências, desaparece.

Curiosamente cada um dos núcleos narrativos desse filme corresponde a um nível de força autoral eastwoodiana: quando assistimos a história do homem que fala com os mortos esta força autoral é esmagadora, quando se trata do menino que perde o irmão ela é dispersa e quando acompanhamos a jornalista que morreu e voltou ela nos abandona.

Mas como é possível isso? Como UM filme, por mais que sub-dividido em três, pode sofrer dessa crise de personalidade? Principalmente quando além de dirigido ele é produzido por um homem que é reconhecido enquanto Autor? Resposta mesmo eu não vejo (pelo menos não uma resposta baseada em “fatos”), mas fui levado a algumas conjecturas. Os três protagonistas de Além da Vida não apenas tiveram sua vida tocada pela morte, tiveram sua existência temporariamente suspensa por ela. São pessoas que não conseguem se recuperar do contato avassalador que tiveram com o momento em que algo cessa para sempre. Logo, são solitários, logo estão nas trevas, logo deveriam ser perfeitos para um filme de Clint Eastwood. E são, é só lembrar de uma seqüência exemplar: quando o personagem de Matt Damon (o paranormal) leva sua colega de curso de cozinha para jantar na sua casa o diretor investe naquilo que é seu forte estilístico - a simplicidade. Ao saber que o rapaz é capaz de falar com os mortos, a moça pede que ele tente se comunicar com alguém próximo a ela que já morreu; ele resiste mas acaba cedendo (avisando insistentemente que uma vez que eles façam aquilo não haverá mais volta); ele consegue se comunicar com os pais da moça; algo terrível do passado dela vem à tona; ela vai embora. Escolhendo uma câmera fixa (que no fim da seqüência gira em seu próprio eixo) Eastwood dá vazão a todos os sentimentos em jogo: a decida em direção ao passado; o perceber-se cercado pelas trevas de algo terrível; a ânsia de voltar para a luz, para a vida que se tinha antes desta ter sido tomada pela escuridão; a desesperadora conclusão da impossibilidade de voltar atrás. São conflitos densos e seria fácil perder-se no seu registro ou mesmo simplificá-los – mas a sobriedade sensível de Eastwood não permite que nenhuma das duas coisas aconteça. Movimentando a moça dentro do apartamento do paranormal, fazendo com que ela oscile entre a “luz” (o corredor de entrada que está todo iluminado) e a “escuridão” (a sala, onde o paranormal realiza o contato com os mortos e que está com as luzes apagadas), estando consciente do tanto que pode ser feito apenas ao explorar o espaço cênico e os recursos de iluminação e câmera Eastwood tira da cena tudo o que ela tinha a oferecer.

E qual é o problema da narração dos outros personagens? Enquanto na história do menino que perde o irmão percebo a preguiça de um autor acomodado (mas ainda autor), quando se trata da jornalista me surpreendo com o que temo, mas não posso evitar, chamar de desleixo. Com exceção de uma cena (a morte que a jornalista assiste ao visitar um centro que pesquisa experiências de quase-morte) tudo me parece puramente informativo e raso. Os conflitos da personagem são simplificados (nem sombra da densidade dramática do núcleo narrativo do paranormal) e as mudanças que ocorrem em sua vida são introduzidas como ilustrações de um livro que ao invés de enriquecerem as palavras de que já dispúnhamos as empobrecem, ou as tornam desnecessárias (maior exemplo é a troca de outdoors, ou o diálogo no restaurante em que a personagem é informada de que foi substituída em todos os sentidos). As partes do filme destinadas a esta vertente do roteiro não apontam nem um autor inquieto nem um autor acomodado, simplesmente não apontam para autor nenhum; não me instigam a nada.

É, de novo a pergunta é incontrolável: mas como pode isso?! De novo digo que não sei; mas (ha! Como é chato e necessário fazer ressalvas quando falamos de arte) me sinto provocado por essas obras que não são domadas a primeira vista (quem pode ter certeza do que uma revisão é capaz de mudar?), ou que não se enquadram em todas as pré-concepções que eu tinha de Autor, de unidade ficcional e de identidade estética. Uma parte de mim acha bom que eu não consiga dizer se um filme como Além da Vida é bom ou não. E eu inteiro fico excitado pela enésima prova que tenho de que não há sistema que dê conta de tudo (neste caso chamo sistema a velha e boa “política de autores” que muito me ajuda e muito me deixa na mão), e que o juízo de valor, sozinho, não é nada mais do que uma forma de colocar artistas e obras em competição, como se fossem cavalos de corrida.

Além da Vida só evidenciou o problema. Se Deus quiser não me livro dele tão cedo.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A tristeza azul




Foi relativamente tarde que conheci Joni Mitchell; e a conheci sem saber quem era, já que ouvi The last time I saw Richard pela primeira vez cantada pelo Renato Russo no acústico do Legião Urbana. Depois ouvi seu nome com mais atenção assistindo Simplesmente Amor, numa cena que até hoje significa muito pra mim, em que uma mulher se descobre traída e chora ouvindo Both Sides Now.
Mas foi só lá por 2006/2007 que resolvi correr atrás da Joni, e comecei como a maioria, penso eu, começa: ouvindo Blue, de 1971, álbum que também é conhecido por mim como “uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida”. Sem saber muito bem como, aquela mulher, sem nunca precisar de eletricidade, pegava um violão ou um piano e fazia miséria com o meu coração (daí eu nunca ter conseguido gostar tanto dos álbuns da década de 80 dela, onde começam a se meter umas guitarras e outras coisas com tomada).
Como sempre é bom começar pelo começo, imaginei que esse texto inacreditavelmente tardio sobre o meu amor pela música de Joni Mitchell devia tratar especialmente deste álbum de 71, pelo qual ela é tão reconhecida e que tanto determinou a relação levemente obsessiva que tenho com sua obra.
Blue é um disco inteiramente acústico, em que é mais do que óbvio que Joni não domina apenas as técnicas de canto que moldam perfeitamente sua voz desde sempre interessante, ela é também exímia pianista e toca violão como se tivesse nascido com palhetas no lugar dos dedos. Canadense, miserável durante sua juventude, mãe solteira aos 17 anos que entregou a filha para adoção e marginal por natureza, essa mulher me conquistou quando percebi que se me constrangia diante de tal exposição de sentimentos, de tal ousadia nos limites até os quais levava sua voz, de tal gravidade nas introduções de todas as músicas desse álbum, era porque eu não tinha a coragem que 40 anos atrás Joni teve de transformar tantos infortúnios e fragilidades em poesia musical.
Ouvir que a voz dela é um dos instrumentos que ela utiliza com tanta propriedade quanto os outros é um óbvio ululante para qualquer pessoa que já tenha ouvido River (minha música de Natal favorita); mais importante é perceber como o domínio vocal de Joni constrói junto com os instrumentos a base rítmica de suas canções. Nem ela corre atrás da melodia nem a melodia corre atrás dela: voz e violão, ou voz e piano trabalham juntos na concepção de uma cadência que sempre evita as rimas para encontrar harmonia menos na métrica e mais em uma expressão sensorial/sentimental. Como assim “expressão sensorial/sentimental”? É que para Joni Mitchell não existe separação entre o como ela canta e sobre o que ela canta; sendo uma letrista extremamente literária ela não pretende, de forma alguma, fazer poesia propriamente dita, mas também não ignora a importância que o conteúdo de suas letras têm para a forma como ela concebe seus arranjos. Daí que ela esteja tão mais interessada na criação de atmosferas (sensações e sentimentos) do que na exatidão de rimas ou na concepção de refrãos.
Blue é todo ele uma busca incessante pela sinceridade. Óbvio que essa sinceridade encontra-se com a melancolia que sempre permeia as músicas de Joni, mas é ao almejar um completo desnudamento de si que ela encontra motivação para cantar e tocar como se não tivesse nada a esconder: são totalmente audíveis os barulhos que seus dedos fazem quando passam de uma corda a outra do violão e quando o verso já acabou mas a voz insiste em alguma palavra então o dedo força ainda mais o piano que já deveria ter passado para outra nota. É o direito que a tristeza tem de abrir mão do “bom gosto” em benefício do desabafo. Um desabafo que poderia ser tomado por pura musiquinha de fazer chorar mocinha, não fosse existir introduções ao piano de músicas como The last time I saw Richard, solos de violão como os de Little Green e quebras rítmicas/vocais como as de A Case of You (a excelência das suas composições, me parece, já foi largamente reconhecida, e não penso existir alguém que conheça seu trabalho e duvide da qualidade de suas letras).
Se Joni Mitchell exerceu alguma influência? Pegue aí Jeff Buckley, Aimee Mann e Leonard Cohen, ouça-os com atenção, depois ponha pra tocar qualquer álbum de Joni e a resposta será imediata. Se Joni Mitchell foi um gênio? Ouça o violão penetrante de All I Want, se dê conta de um verso como “He went to California hearing that everything is warmer there, so you write him a letter and say ‘her eyes are blue’, he sends you a poem and she is lost to you, a little Green, have a happy ending” e seja sincero consigo mesmo.
O desconforto inicial que qualquer um pode experimentar ao ouvir pela primeira vez Blue será superado por aqueles que se deram conta de que este álbum não poderia se dar de outra forma. Como ela mesma disse, quando gravou esse disco ela “quis mostrar ao mundo que não poderia fingir ser forte. Ou feliz”. A tristeza, como a impaciência, tem seus direitos – e a tristeza de Joni Mitchell é tão respeitada por ela mesma que ganhou a representação mais perfeita que este sentimento, eterno carrasco dos homens, poderia ter.

A razão e a sensibilidade de uma mente confinada





É uma verdade universalmente conhecida que um escritor em posse de grande talento deve estar à procura do mundo ficcional ideal para expressar sua capacidade estética/criativa. Homero foi o poeta dos conflitos entre Homens (o efêmero) e Deuses (o perene); Shakespeare não resistia em chafurdar o constante descompasso entre o que deveríamos fazer moralmente e o que temos que fazer emocionalmente; Dostoievski tinha fascínio pelo crime e sua conseqüente violência – já Jane Austen só precisava de uma sala de estar e duas pessoas tomando chá para mostrar do que era capaz seu gênio artístico.

Um dos principais exemplos de como uma vida condicionada a um mundo extremamente limitado pode se expandir através da amplitude da linguagem, na sua reclusão de inglesa recatada e contida, Austen aprendeu a desnudar seus personagens enquanto tomavam café da manhã ou atendiam a qualquer tipo de compromisso social. Cercada de um mundo onde as boas maneiras eram infinitamente mais importantes do que a boa conduta, Austen se tornou mestre em dissimular com fina ironia todo o ridículo que atribuía àquela sociedade feita de pura encenação e recalque.

Talvez por sempre ter sido ensinada a não ser explícita em suas opiniões (ou seja, a ser “agradável”), esta inglesa tenha conseguido desenvolver a rara capacidade de criar diálogos que esclarecem seus personagens ao mesmo tempo em que os aprofundam e problematizam, sem, para tanto, abrir mão de um dos grandes prazeres que tenho ao ler seus livros: o de estar sempre dominado pelo seu poder de sugerir.

Como uma de suas heroínas mais famosas (a mimada Emma, protagonista do livro homônimo) é fácil dizer que Jane Austen desperdiça sua capacidade de observação e seu senso de humor ao tratar de assuntos tão pueris quanto moças às voltas com sua obsessão em casar, ou mulheres que se submetem às ligações mais desagradáveis para garantir sua sobrevivência social. Para os fanáticos por temas “grandiosos” ou para os que têm fobia a artistas que assumem abertamente a preferência por certo assunto, Austen é um prato cheio. Mas para aqueles que se interessam pelo deleite que a Literatura é capaz de proporcionar não haverá a menor dificuldade em perceber o que esta inglesa foi capaz de fazer dispondo de tão pouco, sendo tão inigualável no que fez que mesmo um gênio como o de Virginia Woolf conseguiu pouco mais do que imitá-la em seus dois primeiros romances.

Com uma ironia que faria inveja a Jonathan Swift, um dos mestres desse recurso, Austen era capaz de criar personagens igualmente reprováveis e fascinantes (sua Elizabeth Bennet ou sua Anne Elliot não perdem em nada para Emma Bovary ou para Júlia d’Aiglemont). Sempre escrevendo como se estivesse sendo absolutamente explícita, Austen guardava para os mais atentos pequenas pistas nas entrelinhas que evidenciam o trabalho árduo a que um artista se submete quando opta por representar apenas aparências para tratar daquilo que é essencial e inevitavelmente interior. Vejamos o início de Emma:

“Emma Woodhouse, handsome, clever, and rich, with a comfortable home and happy disposition, seemed to unite some of the best blessings of existence; and had lived nearly twenty-one years in the world with very little to distress or vex her.
She was the youngest of the two daughters of a most affectionate, indulgent father, and had, in consequence of her sister’s marriage, been mistress of his house from a very early period. Her mother had died too long ago for her to have more than an indistinct remembrance of her caresses, and her place had been supplied by an excellent woman as governess, who had fallen little short of a mother in affection.”

Nesses dois parágrafos, como o leitor perceberá ao fim do romance, Jane Austen já dispõe tudo o que a interessa nessa personagem: sua aparente felicidade, a valorização de certas circunstâncias como ideais para que alguém seja feliz, a ausência da mãe, a indulgência do pai e o amor quase maternal de uma governanta. E, se Austen sempre é educada, ela é na mesma medida impetuosa – ridiculariza Emma ao mesmo tempo em que a afaga, mostra como ela é digna de pena ao mesmo tempo em que observa sua inteligência emocional; o que nos leva a uma das maiores qualidades dessa escritora: ela não faz de seus romances diários, em que encontraríamos pouco mais do que confidências e histerismos pessoais; Austen está interessada no humano, naquilo que ele tem de falso e mesquinho e naquilo que ele tem de legítimo e belo. Simplificar situações e personagens seria a morte de um autor que pretende a crítica social e a investigação psicológica, e Jane Austen faz o contrário de simplificar: ela parte de situações absolutamente triviais para chegar ao núcleo duro e disforme de seus personagens. Como Tchekhov (só que quase 70 anos antes) ela tece suas narrativas com as mais anticlimáticas situações e extrai delas uma dramatização que está sempre a serviço da objetividade ambígua de sua mente zombeteira e sensível.

Em Persuasão, seu último romance, há demonstrações claras de que ela não era excepcional apenas na criação e no desenvolvimento de personagens (que grande dramaturga teria sido), mas também na descrição de lugares e situações, e na união da capacidade descritiva, narrativa e dramática em trechos como o que segue:

“Elizabeth did not quite equal her father in personal contentment. Thirteen years had seen her mistress of Kellynch Hall, presiding and directing with a self-possession and decision which could never have given the idea of her being younger than she was. For thirteen years had she been doing the honours, and laying down the domestic law at home, and leading the way to the chaise and four, and walking immediately after Lady Russell out of all the drawing-rooms and dining-rooms in the country. Thirteen winter’s revolving frosts had seen her opening every ball of credit which a scanty neighborhood afforded; and thirteen springs shewn their blossoms, as she travelled up to London with her father, for a few-weeks’ annual enjoyment of the great world. She had the remembrance of all this; she had the consciousness of being nine-and-twenty, to give her some regrets and some apprehensions. She was fully satisfied of being still quite as handsome as ever; but she felt her approach to the years of danger, and would have rejoiced to be certain of being proper solicited by baronet-blood within the next twelve-month or two. Then might she again take up the book of books with as much enjoyment as in the early youth; but now she liked it not. Always to be presented with the date of her own birth, and see no marriage follow but that of a youngest sister, made the book an evil; and more than once, when her father had left it open on the table near her, had she closed it, with averted eyes, and pushed it away.”

Aqui Jane Austen não se limita a descrever o decorrer de treze anos e o contexto em que o passar desse tempo se deu, ela utiliza essa passagem cronológica (que poderia ser puramente informativa-descritiva) para aprofundar a inércia da situação de Elizabeth (tornando-a expressiva-dramática), trazendo à tona o sutil sufocamento que a rotina cíclica de bailes no outono, clausura no inverno e Londres na primavera causam na personagem. É em Persuasão também que Austen parece mais decidida a mostrar como as convenções sociais inglesas e a forma dissimulada como essas convenções determinavam a vida de todos que queriam “pertencer a sociedade” eram patéticas, cruéis e sem sentido. É o seu livro mais “amplo”, por assim dizer. É onde mais se fala do mundo que existe para além das fronteiras da chuvosa ilha britânica, é onde o amor já veio e já passou e agora só resta a sensação outonal (melancólica e serena) da maturidade solitária, é o livro que Austen tem mais compaixão por sua protagonista, mas também o romance em que ataca e critica mais duramente os personagens que a rodeiam. Poderia se dizer que se trata de uma obra “madura”? Sim, mas sem jamais utilizar essa maturidade para colocar Persuasão acima de Orgulho e Preconceito ou Emma. Se em seus romances anteriores entrávamos em contato com uma juventude solar e debochada, em Persuasão nos deparamos com um mundo mais sóbrio e ressentido – e parte da grandeza de Jane Austen está em ter escrito sobre momentos tão distintos da vida com igual objetividade, inteligência e sensibilidade. Era uma mulher que conhecia tanto o frescor promissor da primavera, quanto a beleza monocromática do outono.

A irônica, a objetiva, a inteligente, a sensível, a hilária, a crítica, a genial Jane Austen morreu deixando a pergunta que Virginia Woolf fez a quase um século e que ainda me ocorre com freqüência: o que ela teria feito se tivesse continuado a escrever? Se não tivesse morrido aos 42 anos? Se tivesse vivido para acompanhar o impacto que seus livros tiveram na literatura européia? Para Virginia ela teria começado o Modernismo 80 anos antes dos russos e de Marcel Proust. Eu continuo dizendo que não sei o que teria acontecido; mas não me ressinto nem um pouco de sua morte prematura, pois o que mais eu poderia pedir para alguém que já me presenteou com Orgulho e Preconceito, Emma e Persuasão? Me resta dar em troca a única coisa que posso oferecer: reconhecimento.


Obs: Dedico esse texto a Ingrid, que foi quem fez eu começar a ler Jane Austen. Muito obrigado!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O que é pra sempre


Somewhere é uma palavra que, na sua língua original, lembra uma espécie de promessa. Do jeito que “someday” parece passar a idéia de “em algum dia...”, “somewhere” parece dizer “em algum lugar...”. É uma palavra reticente, incerta. Sim, é uma esperança.

Já seria um começo dizer que o novo filme de Sofia Coppola trata dessas possibilidades inerentes ao seu título – assistiremos, no entanto, a uma dilatação de significados que se dá por uma concentração de universo ficcional/estilístico.

Pra muito além da comparação óbvia (e preguiçosa) com Encontros e Desencontros, este filme apresenta uma dureza e uma inflexibilidade estética/temática que é principal responsável justamente pela concentração do universo ficcional/estilístico de que falei aí em cima; é um filme que se dá através de uma aparência árida e bruta.

Temos um pai e uma filha, temos alguns hotéis, temos aquele gosto amargo de abandono que os protagonistas compartilham. Ao invés da sensação de encontro e perda de Bob e Charlotte, agora temos uma certeza: Johnny tem uma filha, e seria necessário arrancar meu coração fora para ridicularizar de qualquer forma que fosse a Esperança que Cleo traz para o mundo circular de seu pai; afinal, ao que parece, poucas coisas mudam tanto a idéia da pessoa que somos e da pessoa que deveríamos ser quanto um filho. Sofia trata, portanto, de um amor perene e sólido - mas que ainda assim precisa ser descoberto; é uma consequência inevitável que sempre que a rotina de astro de cinema de Johnny é colocada ao lado da relação que desenvolve com a filha seu cotidiano de celebridade pareça das coisas mais ridículas e sem finalidade do mundo. Porque Cleo, da altura dos seus 11 anos, não é apenas a luz que brilha na treva de Johnny, ela é a prova viva de que ele também é capaz de dar origem a algo belo.

As câmeras estáticas e os planos longos evidenciam uma autora que já construiu o seu universo ficcional (e, tenho que admitir, gosto cada vez mais do que muitos chamam de ‘repetição’) e que se apega ao estritamente necessário na concepção de momentos que condensam toda a potencialidade quase sempre elíptica de seus personagens (afinal, ela sempre fará cinema de personagens); neste sentido existem duas cenas exemplares: o zoom-in agonizante e solidário em Johnny coberto de uma pasta branca que esconde totalmente seu rosto, nos deixando apenas a respiração pesada e abafada daquele homem imobilizado; e o abraço no coração em forma de zoom-out de pai e filha à beira da piscina, após termos assistido uma sequência de imagens que nos deu a dimensão da cumplicidade alcançada e que é coroada com a plenitude (zoom-out) de se sentir bem ao lado do outro.

Sofia Coppola alcança uma simplicidade que só consigo chamar de genial: como encarar uma diretora que já nos expressa todo seu protagonista precisando apenas de um plano fixo que mostra parte de uma estrada circular com um carro dando voltas sem parar? Como ficar impassível diante da necessidade de Johnny dizer que lamenta muito não estar por perto, percebendo que se Cleo não ouve é porque ele está dizendo aquilo para si mesmo? Como não sentir a mais honesta e invasiva esperança ao contemplar o semi-sorriso de Johnny encarando o sol? (um ato de coragem que só um close afetuoso é capaz de nos revelar)

Li algumas pessoas que atacam o “simplismo” desse filme, a “fetichização” da vida de celebridades, a cópia que ele seria de Encontros e Desencontros, os vícios estilísticos de Sofia e as “lições de moral” que a diretora insiste em dar no final. Pra mim tudo isso é bobagem. Enquanto assistia Somewhere tudo o que sentia era estar sendo tomado por uma artista que não tem medo de assumir temas que foram eternamente tratados por todos (ainda falta alguém saber que não se trata do quê, mas do como?) e que não se compromete com ninguém a não ser com essas pessoas que ela mesma cria e por quem, como uma pai ou uma mãe, tem irrefreável ternura.

Se Johnny chega a algum lugar ou não, ou o que é “chegar a algum lugar” são coisas que Sofia não se interessa em saber – o que ela sente e expressa é a importância e a beleza do ímpeto de mudança: porque ao invés das despedidas definitivas de Virgens Suicidas, Encontros e Desencontros e Maria Antonieta temos, pela primeira vez, a sensação de possibilidade na forma de um promissor "até logo". Um filme estático que trabalha rigorosamente para pôr seu protagonista em movimento.

É que essa diretora que sempre gostou de filmar o incerto e o efêmero encontrou com essa coisa ancestral, eterna e quente que pode nos invadir quando nos sentimos responsáveis pelo início de um novo ser humano.