sexta-feira, 1 de novembro de 2013

L'enfant terrible



Fiquei em silêncio nas outras duas vezes que Mateus Moura fez um filme. O motivo: achava que eu estar diretamente envolvido na produção me desqualificava para escrever a respeito; achava que minha opinião estava contaminada pelas experiências de alegria e satisfação que tive ao participar da produção de "D. Juan" e "Primeiro".

Mas cansei do silêncio. Comecei a achar uma questão de honra me pronunciar em puro agradecimento pelo convite que me foi feito para viver mais uma vez a aventura* de fazer um filme - que sempre é, antes de tudo, um ato de amor.

"A Ilha" foi, desde o dia em que Mateus me falou dele, um filho muito amado. Presenciei ele deixar de ser uma conversa entre amigos e se tornar viagens a Cotijuba, materiais de produção pesados, o prazer de conhecer Rodolfo, Raquel, Kid, Carline, Rosilene e, por fim, filme. Assisti, inflado de carinho, o crescimento daquela ideia.

Então assisti "A Ilha".

"Foi esse filme que ajudei a fazer?", pensei perplexo, "Quando ele se tornou isso? em que momento se deu a transformação que o levou a ser aquilo que ele é?"

Descobri recentemente um conceito freudiano (acho) que se chama "unheimlich", e que se trata do familiar estranho; o estranho que um dia foi familiar e que então retorna como força selvagem, como ameaça.

"A Ilha" voltou desfigurada - esperava reencontrar a ideia que amei durante toda a produção do filme; me deparei com um bicho cinematográfico que me devorou ao invés de me afagar.

E nada poderia ter me preenchido de maior satisfação.

Porque foi não reconhecendo "A Ilha" que pude, enfim, habitá-la. Foi no contato  com sua dimensão obscura e irascível (personificada no corpo, na voz e no espírito de Rosilene Cordeiro) que me embasbaquei com a experiência de participar de algo que me ultrapassa e aniquila.

Assim como o casal vítima daquilo que não pode ser explicado, fui jogado na loucura do desespero, na esperança da vingança, para que no fruto oferecido pelo marido à esposa devastada pelo absurdo eu me recompusesse apenas para lembrar que "a vida come a vida".

Por tudo isso quero dizer olhando nos olhos infinitos d'A ilha: me perdoe por acreditar que eu te compreendia e, obviamente, te limitava; e permita-me te celebrar por tua indiferença ao meu amor de pai e tua liberdade em implodir a pretensa ordem de meus dias.


*Para entender o que significa "aventura" favor assistir "Up" de Pete Docter.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Fazer, perceber o tempo


 


Sem nós não haveria o Tempo.

Ele depende de que nós expressemos sua existência, sua pisada, sua ditadura. Ele depende de que nós o deixemos ser.

Assim, somos instrumentos - mas instrumentos recriadores, pois reinventamos nosso autor, o reinterpretamos. E é assim que, subitamente, 9 anos se tornam um buraco negro para dentro do qual foi sugado tudo o que antes acreditávamos ser e o que éramos então. É assim que 9 anos sepultam uma vida, mesmo que seja para fazer nascer, à força, uma outra. É assim que ganhamos senso histórico de nós mesmos e que as insignificâncias se acumulam até romper a barragem que o sonho juvenil constrói para proteger nossos corações da triste constatação: tudo passa.

Já me é impossível, há algum tempo, dizer o que se trata de Antes do Amanhecer e Antes do Pôr do sol, e o que se trata de mim, Felipe Bruno Silva da Cruz, 25 anos, tão instrumento do tempo quanto Jesse e Celine.

Daí a crise desesperada de reencontrá-los, pela primeira vez de fato 9 anos depois: é que o Felipe de 25 não estava de todo preparado para dar adeus ao Felipe de 16. Mas agora é tarde, jamais seremos o mesmo um para o outro, porque das infindáveis qualidades de Antes da meia-noite a mais contundente é a de ter me reescrito, me reinventado. Como só o tempo poderia fazer.


"Still there, still there, still there. Gone."

Os pelos ruivos da barba de Jesse que brilhavam à luz do sol se foram, a voz doce e melancólica de Celine acompanhada por um violão silenciou, o abraço que se certificava que Jesse não se dissolveria em moléculas não chega. Antes da meia-noite é uma coletânea de ausências e um quase total soterramento da jovialidade onírica daquela inacreditável noite em Viena. E o que corta mais fundo na carne é sentir que, dos três filmes, este é o mais inevitável.

O longo plano de Jesse assistindo Hank partir, a conversa com amigos em que Celine e Jesse podem fazer pouco mais do que se darem conta daquilo que seu relacionamento não é, a caminhada pela cidade que demora a sair e que, quando sai, é para que um não caminhe ao lado do outro, a redução das ruas e parques de Viena e Paris a um claustrofóbico quarto de hotel, de uma impessoalidade que leva às lágrimas qualquer um que se lembra do poder de ressignificar qualquer ambiente (um cemitério, um café, uma estátua, um barco no rio Sena) que Jesse e Celine possuíam.

É, então, tudo perda? Tudo vazio? Tudo morto? Não, claro que não. Para o nosso próprio bem, não.

A verdade é que não sei, jamais terei certeza, mas não estou preparado pra dizer que tudo se foi, não dá, não posso, é perder muito só de uma vez - por isso resolvi inventar uma verdade, como o Jesse fez:

O tempo é reversível. Nós podemos voltar e depois seguir adiante. Uma história de amor não é linear, ela pode terminar bem antes de começar, e o começo pode ser aquilo que só é possível quando tudo acaba. Por favor, acreditem. É preciso. Podemos reverter a realidade, por uma noite, por um dia, por um filme, por uma vida. Não me digam que depois tudo volta, porque é óbvio que volta, mas é pra isso que fomos dotados dessa coisa chamada persistência, que é um jeito mais corajoso de ser burro.

É só na fabulação que podemos encontrar alguma verdade, não tem jeito, a realidade é a coisa mais falsa que existe. Sendo assim, que bom que a Celine mandou uma carta do futuro para ela mesma, que bom que o Jesse encontrou a carta e que bom que ele leu a carta para a Celine do presente, bem a tempo dela ainda acreditar em algum tipo de futuro. Que bom que o filme não acaba com aquele sequíssimo "Eu não te amo mais". Que bom que, enquanto Jesse olha para um horizonte e Celine para outro, separados como nunca estiveram mesmo quando achavam que nunca mais iam se encontrar, Richard Linklater não cortou e subiu os créditos. Que bom que Celine virou o rosto para Jesse e disse que a noite adivinhada na carta, que ainda estava por vir, seria maravilhosa. Que bom que o último movimento da câmera é um zoom-out, que inclui a cada um de nós naquela cena tão ampla, tão eterna, tão imprescindível para a resistência de algum brilho: seja o brilho promissor do amanhecer ou o crepúsculo agonizante da tarde.

Somos instrumentos criadores do tempo. Jesse e Celine reinventaram aquilo que os inventou. E, mais uma vez, o mundo não será mais o mesmo.






   

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Poesia



Sobre o que trata Ratatouille?

Sobre Amor, que nesse caso vem com o subtítulo de Animação e com a essência da Arte.

Brad Bird/Pixar nos lembram a beleza de não poder explicar. Assim como não podemos explicar o olhar de Sully ao reabrir a porta do quarto de Boo, ou como não podemos explicar a tristeza de Dori ao saber que não pode esquecer Marlin (mas que irá esquecê-lo, a não ser que aconteça um milagre), ou como não podemos explicar o campo/contracampo de Andy-todos-nós e Woody enquanto Andy explica para Bonnie que Woody jamais desiste de você.

É que explicar lágrimas tem algo de vulgar, de tirânico. Daí não explicar, nesses casos, ser um contato tão direto com a liberdade.

Podemos analisar cada frame de Ratatouille e constatar a excelência técnica de Bird e do estúdio que mudou nossas vidas nesses últimos quase 20 anos, podemos celebrar a montagem, a edição, os planos-sequência, a trilha sonora, o roteiro - mas no fundo do nosso coração sabemos que cada um desses elementos só têm a força que têm pela nossa completa incapacidade de racionalizar e sistematizar o todo que os rege.

Quero para sempre jamais dominar Ratatouille.

E quero nunca esquecer que das várias belezas da arte, talvez a mais exuberante seja a sua rebeldia de poder vir de qualquer lugar.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Era uma vez,

um príncipe chamado Victor. Dos muitos dons com os quais nascera, talvez o mais fascinante fosse sua capacidade para o belo. Os olhos de Victor eram uma extensão direta de seu coração (que é uma das formas de dizer “alma”) e justamente por isso cada imagem que perpassava sua mente prodigiosa era repleta de afeto e luminosidade.

Os olhos de Victor eram tão grandes que um dia foi necessário que se transformassem em outras coisas: uma casa isolada na campina, um cinema perdido em uma pequena cidade, uma mulher que de tanta saudade não podia permitir-se a nostalgia, um homem solitário e aterrorizado por sua colméia, uma menina que descobre com prazer sua capacidade para a maldade e uma outra menina, menor que esta, que se tratava de um dos seres mais belos que qualquer olhar já produziu. E havia, também, um monstro.

Cada um desses pequenos pedaços dos olhos de Victor estavam envoltos em uma luz de puro mel – doce, dourada, perene. E o pedacinho que agora se chamava Ana via, subitamente, diante de si, a possibilidade de um amigo; e não, não importava que fosse inventado, que fosse um monstro ou que fosse a morte. Era, pois, antes de tudo, uma mão gentil, que mesmo que a estrangulasse o faria repleta de ternura. 

Então atraída por aquilo que não compreendia (que podemos chamar maldade, mas que quase sempre trata-se de mistério) Ana caminhou o quanto pode, com sua maletinha vermelha e suas esperanças pesadas, passando pelo calvário do medo e da tristeza, até encontrar-se, enfim, com seu amigo monstro (que, sim, mesmo sem saber também procurava por ela todo esse tempo).

E do fundo de seu pequeno corpo brotou aquela vontade de não existir que tanto acomete as crianças – ou, pelo menos, de não existir daquela forma, fazendo com que ela se refugiasse no esconderijo favorito de toda criança: o impossível.

Talvez você se preocupe, perguntando-se se o príncipe Victor não se incomodou de se dividir em tantas pequeninas partes. Mas fique tranqüilo, o amor só é possível compartilhado – mesmo quando junto a ele vem um tanto de solidão, e um tanto de melancolia.

Não se sabe se todos os desdobramentos dos olhos de Victor viveram felizes para sempre, mas se me permitir que eu diga o que penso que aconteceu, leia o que vem a seguir: acredito que tudo o que esses olhos criaram tornaram-se o que chamamos de eterno e que nos tristes olhos de Ana ainda brilha o reflexo de seu monstro amigo. E aquilo que brilha em nossos olhos o tempo não é capaz de apagar.



    O espírito da colmeia, de Victor Erice: um filme que assistirei a vida toda.        

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

2012

O ano de 2012 na forma de expressão. O que ficou do ano que quase não foi, foi:


Poemas, Wislawa Szymborska - Livro salva-vidas do ano. Cheio de milagres. A essência não se perde na tradução. Os poemas que eu gostaria de ter escrito. Carta de amor à humanidade. Palmas.


Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, Beto Brant e Renato Ciasca - O corpo e o espírito de uma mulher que é o paraíso e o inferno.  O prazer de filmar Lavínia/Camila. Uma mulher é uma mulher. O tempo de um plano deve respeitar sua respectiva e singular beleza.


Contos completos, Flannery O'Connor - Gênio do mal. O fel da verdade que apenas a mentira encerra. O sereníssimo bater de asas do anjo da maldade. A palavra é uma arma - que, sim, mata. Inconsequente. Extremamente perigosa.


Moonrise kingdom, Wes Anderson - A beleza de sonhar. Fugir é uma necessidade espiritual. A liberdade de não amadurecer. Câmera-flutuante. Nada mais comovente do que reconhecer-se no outro. C'est le temps de l'amour.


Ariel, Sylvia Plath - A verdade é que não há rima que abarque a poesia. Sylvia nasceu pra ser poesia.


Blue valentine, Derek Cianfrance - Foi difícil seguir em frente depois desse filme. Não há bom gosto quando o amor acaba - apenas raiva e frustração. Eles não tem mais nada pra dizer um ao outro. Apenas terminou.



O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, Evandro Affonso Ferreira - É possível ler e fazer literatura. Marguerite Duras ia sorrir. O parágrafo que vale uma vida.



5ª Temporada de Mad men, Matthew Weiner - A temporada das despedidas. O retorno às trevas. A quase-redenção de um condenado.



Nadja, André Breton - A mulher é o impossível.



Procurando Nemo, Andrew Stanton - A beleza é o movimento. Irmão mais novo (e livre-lírico) de Valente.



Trópico de câncer, Henry Miller - A língua é, essencialmente, sexual. E, por favor, chega de falar do Bukowski.




As vantagens de ser invisível, Stephen Chbosky - Para esse filme eu só tenho a dizer OBRIGADO.



Carta a D. André Gorz - É, aparentemente existe sim. Para ser amado com muita força.



Caminho para o nada, Monte Hellman - A arte não tem piedade.



Essencial, Franz Kafka - Título de livro mais honesto do ano. Para ler e morrer.