quinta-feira, 10 de junho de 2010

O que faz de Clarice Lispector Deus?








Existimos nós, os humanos. Existem eles, os deuses. Criados por nós. Habitantes de nós. Nós.

Deuses são o mais próximo que chegaremos de nós mesmos. Nós somos o mais próximo que os Deuses chegarão do divino. Clarice Lispector é um Deus porque entra no sagrado de nós.

Esqueça que ela é mulher, esqueça que ela é brasileira, esqueça que ela é lembrada como autora “sensível e introspectiva”. Clarice é uma revolução, uma destruição, uma força da natureza. Ela é uma urgência, um urro atrás do pensamento que só sabe ser silêncio.

Com essa mulher tive minha grande experiência de real entendimento – que só é possível pela vivência legitimada pela realidade inventada da ficção. A dona-de-casa, judia, jornalista Clarice fez o sacrifício maior de se deixar para trás para poder ser instrumento de sua escrita transcendental, e que é maior que os limites da literatura enquanto pensamento intelectual. O que podemos dizer de uma mulher que só quando falha em sua construção consegue aquilo que não alcançou? Ou é louca ou é Deus. Mas são os dois.

Se tudo o que ela escreveu foi um eterno e cíclico fracasso, aonde seus livros nos levam é o lugar nenhum que é todo o lugar: estamos diante da plenitude. E o problema é que essa plenitude será para sempre limitada pelo nosso horizonte, e Clarice sabia disso, daí dizer que “não me entendo e ajo como se entendesse”. Temos a mentira do entendimento tão perto do nosso coração porque sem ela só resta desespero. Clarice era uma desesperada. A Maçã no Escuro, Laços de Família, A Paixão Segundo G.H., Água Viva e A Hora da Estrela, suas obras-primas definitivas (e se você não sabe isso, por favor aprenda) estão minados e construídos sobre o mais profundo e incontornável desespero.

O que dizer dessa mulher que me disse o seguinte: “A noite foi feita para dormir porque senão no escuro se compreende o que se quis dizer quando falaram em inferno, e tudo aquilo no que uma mulher não acredita de dia, de noite ela entenderá”. Clarice é uma insônia eterna.

Poucas, pouquíssimas vezes presenciei tanto rigor na construção de uma poética: para ela a palavra diz tão pouco, mas tão pouco, que não lhe resta escolha a não ser espremer, forçar, machucar e violentar tanto a palavra até o ponto em que não lhe sobra mais nada nas mãos a não ser destruição e a essência. Explodindo qualquer limite entre prosa e poesia, mandando para o inferno tempo, espaço e enredo, Clarice amplia nossa língua portuguesa até o nível do insuportável – por isso seu texto é água que escorre de nossas mãos e se transforma imediatamente em sangue nas nossas veias. Exaustos, gratos e aterrorizados nos entregamos ao real que nos escapa assim que o reconhecemos, mas que reencontramos nas próximas linhas dessas suas obras-primas. Reencontramos e perdemos de novo, porque a literatura de Lispector é uma perseguição sem fim, sem descanso, que só se detém diante do silêncio de nossa própria perplexidade.

Macabéa tinha o direito ao grito, G.H. tinha que amar e ser a barata, Martim tinha que deixar de ser um homem para saber o que é ser um homem para poder se tornar homem para depois entender que jamais seria um homem, Ana tinha que conviver com o caos excessivo ao qual só aqueles que amam são suscetíveis. Clarice Lispector tinha que fazer de toda a sua literatura um fracasso para nos mostrar que é só o fracasso, só a desistência que nos resta como última e única revelação daquilo que nunca temos e que sempre somos.

Para os que a acusam de escrever tratados filosóficos (e, na pior das cegueiras, auto-ajuda) e nunca literatura digo o que ela escreve: “Mas quem sabe é essa ânsia de peixe de boca aberta que o afogado tem antes de morrer, e então se diz que antes de mergulhar para sempre um homem vê passar a seus olhos a vida inteira; se em um instante se nasce, e se morre em um instante, um instante é bastante para a vida inteira”. Se a palavra tem que dizer, me desculpem os que pensam diferente, mas Clarice Lispector disse da forma como só os gênios conseguem: nos fazendo entender mesmo nos frustrando em qualquer tentativa de explicar. Esta inconsequente da linguagem cria imagens com jogos de palavras que simplesmente não consigo conceber que ocorram a qualquer um que não viva no limite do sagrado em que ela vive. Porque ela não quer brincar com a linguagem: quer destruí-la, para construí-la e vivê-la. E se todo esse conflito com a linguagem parece só birra de modernista-existencialista-perdido-no-mundo-sem-sentido-do-século-XX vejam como na literatura clariceana essa linguagem se transfigura em absolutamente todos os aspectos da ficção: ela passa a ser personagem, enredo, tempo, espaço e clímax. Passa a ser o tudo que alcança o nada e volta com o indizível que no entanto se expressa.

Clarice Lispector nunca teve escolha, Clarice Lispector nunca teve redenção, Clarice Lispector só teve uma coisa: esta selvageria de uma realidade proibida, que a rebeldia da necessidade de expressão transformou em um brado de Deus ferido, solitário e transbordante desta seiva quente que chamamos verdade.

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