quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Flannery O'Connor - cuidado com essa ameaça


Flannery O’Connor é malvada.

Sério, puro fel.

Demoníaca.

Manipuladora.

Gênia.

Escreveu uma obra que perverte a mente humana, ou seja, instiga-a. Pra ler Flannery tem que ter culhão e coração. Ela exige muito, exige tudo – pra no final nos lembrar que o prêmio por tanto esforço é sempre um saco cheio de desespero.

Essa literatura do soco no estômago não começa nessa católica recalcada, mas nela alcança uma espécie de ápice do mal-estar, uma poética da desrazão. O’Connor é dessas que enxerga a natureza como caos, nunca como harmonia. E não qualquer caos, mas caos violento, sanguinário, cruel. Mas tudo bem, isso é apenas uma visão de mundo, não garante nenhum qualidade estética. Mas aí acontece isso aqui:

 “Sentada no degrau, agarrada ao balaústre, pouco a pouco ela recuperou o fôlego, respirando em doses mínimas, e a escada parou de balançar como gangorra. Só então abriu os olhos. Voltou-os lá para baixo, lá para o fundo, lá para o buraco negro de onde ela mesma, há tanto tempo, tinha vindo. E disse: ‘Boa sorte’, dizendo-o numa voz cavernosa que ecoou nos vários níveis do poço, ‘neném’.
Maliciosamente os três ecos repetiram: ‘Boa sorte, neném’.
Mais uma vez ela reconheceu a sensação tão ligeira de coisa que se mexia. Era no entanto como se não fosse em seu ventre. Parecia mais um nada que ainda estava em nenhures, estando em repouso e à espera, na plenitude do tempo”. (Um Golpe de Sorte)

E o leitor pensa “como essa mulher faz uma descoberta de gravidez ser tão arrasadora???!!!”, é, isso é a Flannery O’Connor. Toda palavra é melifluamente ajambrada para que seu sentido comum seja pervertido até que se alcance a perfeita forma da palavra-ameaça – pois para O’Connor é a palavra o seu revólver, é com ela que Flannery ameaça, intimida e, constantemente, assassina. O gênero dessa literatura? Chamem de contos à La Lady Macbeth ou Histórias pra Mefistófeles dormir, não sei. Do gênero, realmente não sei. Assim como não sei do gênero de A Paixão Segundo G.H., Os Irmãos Karamazov, Moby Dick, porque como Lispector, Dostoievski e Melville, O’Connor só chegou até a palavra para estuprá-la e destruí-la – enquanto sorri diabolicamente com a verdade em suas mãos.

Falam muito sobre “representação do Sul dos EUA”, “realismo norte-americano”, “crítica social severa” quando Flannery está em pauta. Ainda não vi falarem do que mais me impressionou e transformou: que o verdadeiro e único lar da literatura brutal de O’Connor é nosso epicentro egocêntrico e tenebroso que nos acostumamos a chamar de alma, apenas isso. Alma que tudo traga para si, até que não aguenta tanto peso e morre. Ou não, pois até isso pode nos ser negado pela natureza:

“A ave brava que pairava sobre sua cabeça, numa espera misteriosa, durante os anos de sua infância e os dias da doença, pareceu de repente se mexer. Asbury descorou, e a última camada de ilusão, como que num redemoinho, foi-lhe arrancada dos olhos. Ele viu que pelo resto dos seus dias, frágil e atormentado, mas resistindo, teria de viver sempre em face de um purificante terror. Um grito fraco, derradeiro e impossível protesto, escapou-lhe ainda. Mas o Espírito Santo, blasonado em gelo, e não em fogo, mantinha-se a baixar, implacável”. (O Calafrio Constante)

Como Lúcifer, Flannery O’Connor não dá descanso aos condenados que escolhem entrar em seu inferno. Repito, não há recompensa a não ser desespero. Me ouçam: NÃO LEIAM ESSA MULHER.

quinta-feira, 22 de março de 2012

A Beleza do Desespero




Certos livros dariam origem a uma religião. Não é sempre, mas de vez em quando acontece de um livro ser mais que Literatura, ser mais que rigor, mais que um autor – esse fenômeno, esse milagre, exige muito para acontecer: exige o pulo sem volta no abismo do absurdo, onde não existe ego, não existe organização, não existe dominação, tudo é na única forma em que as essências conseguem ser, caos.

Moby Dick é, dessa forma, incontornável.

Como Os Irmãos Karamazov e A Montanha Mágica, Moby Dick entrega ao leitor um itinerário para sua própria alma, um mapa para os tortuosos caminhos do espírito. Herman Melville, o profeta dominado pela graça da prosa deste livro sagrado, sintetiza o indescritível, captura o inenarrável – faz Grande Literatura, enfim.

Nas páginas da odisseia de Ahab e seus escravos o leitor depara-se com um dos embates ancestrais da arte literária: a prosa x a poesia, a racionalização x a abstração, a inteligência x o incompreensível. O absurdo que a terrível baleia branca personifica jamais poderá ser inteiramente dominado pela determinação sistemática e doentia de Ahab, personagem que desde sempre já perdeu a batalha em que transformou sua existência. Da mesma forma, Melville luta bravamente ao impor uma narrativa clara e objetiva a um universo prenhe do mais incontrolável desespero, da mais tirânica sensibilidade. Enquanto acompanhamos o diário de um observador (que vai, lentamente, ser tragada pelo redemoinho de loucura e devaneio do Peacock) assistimos a prosa de Melville sucumbir ao poder fascinante da poesia, quando afirma, por exemplo, que “a mente não existe senão atada à alma” (p. 225), ou ainda quando faz com que a pessoa antes tão compacta e sólida de Ahab vá se deteriorando até chegar ao ponto que “Ahab nunca pensa; apenas sente, sente, sente; isso já é bastante tormentoso para um mortal! Pensar é audácia. Só Deus tem esse direito e privilégio” (p. 582).

Como os grandes épicos haviam ensinado (e aqui nos deparamos com os inevitáveis Ilíada, Odisseia, A Divina Comédia) a pretensa separação de prosa e poesia é um fracasso anunciado – às vezes de uma forma mais declarada (Virginia Woolf, William Faulkner, Raduan Nassar, Guimarães Rosa), às vezes de uma forma mais “discreta” (Cervantes, Graciliano Ramos, Flanney O’Connor, Dalton Trevisan) a poesia sempre encontra um caminho de contaminar, de infectar, a idealizada objetividade da prosa.

Temos, então, um livro que muito tem a dizer para a Literatura enquanto arte, enquanto expressão, enquanto pensamento e enquanto religião, profissão de fé. Como todo grande livro, Moby Dick é, em si mesmo, um mundo completo, onde só há espaço para a mentira legitimada da ficção, que alcança uma verdade jamais possível para a verossimilhança.




quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Permanecer




Acredito ser muito comum enxergar a obra de Theo Angelopoulos pela perspectiva do histórico, do coletivo, do universal. Como toda obra de arte genial, é óbvio que o gênio de Angelopoulos abre espaço para, praticamente, todo e qualquer viés de interpretação. Mas hoje, 8 de fevereiro de 2012, 15 dias após sua morte estúpida e precoce, o que mais me vem a mente quando penso neste diretor é o quanto ele é emotivo, particular e singular.

Seus planos-sequência longuíssimos tratam do avanço histórico-social de uma nação? Sim. Mas, talvez, a questão aqui seja entender o que significa para Angelopoulos o “histórico-social” – pois a humanidade e sua trajetória nada mais são do que os pequenos seres humanos, sempre tão insignificantes nos planos abertíssimos de Angelopoulos; insignificantes e, justamente por esse motivo, fascinantes.

Afinal, o que pode um casal de irmãos ainda tão crianças diante de uma mão imensa que brota do mar e aponta para lugar nenhum? Ou o que pode um simples diretor de cinema diante de uma película em branco que registrou as primeiras imagens em movimento da história de seu povo? Ou ainda, o que pode uma mulher abandonada e condenada à espera diante de um vale infinito de lágrimas e esperanças cobertas de poeira e desespero? Nada, não podem nada – e por isso mesmo podem tudo. Por mais divino que pareça, e seja, o coração do cinema de Angelopoulos está no fracasso ancestral dos homens, nos gigantes-na-verdade-moinhos que insistimos em desafiar.

Filho da terra que inventou a narrativa ocidental como conhecemos, este grego compreendeu que só é possível ser épico na medida em que respeita-se o poder arrasador do lírico. Tome-se Vale dos Lamentos: muito se fala de guerra, de despedidas, de filhos perdidos e amores nunca plenamente realizados, todos os temas da Ilíada e da Odisséia, nada mais narrativo e clássico. Mas, como todo bom espectador de cinema já deve ter percebido, milhares de artistas caminharam a mesma procissão – e nem 10% deles irá permanecer da forma que Angelopoulos permanecerá.

Por quê? Bem, este grego está longe de se ressentir de não haver, propriamente, “temas novos”, está, isso sim, encantando com a perenidade que determinados sentimentos parecem possuir; são aquelas sensações que poderíamos chamar “inescapáveis”, ou ainda “incontornáveis”. O amor proibido, a prisão eterna da maternidade, o horror sem sentido da guerra, tudo isso já sabemos de cor simplesmente porque somos pessoas. Essa familiaridade sanguínea libera nosso caminho para o confronto com o principal: as imagens. E imagens que se debatem em um caos sentimental e poético que a narrativa apenas parcialmente encobre.

Do lento zoom-in que vai, com muita delicadeza, se aproximando de um novelo de lã que se desfaz conforme os protagonistas se afastam, do pai inconsolável que se despede do espetáculo da vida em um teatro onde urra desiludido atrás da filha enquanto a câmera respeitosamente se afasta, da mudança de foco que assinala a mudança de tempo que foca uma lembrança perdida na memória, de tudo isso não nos fica por sua função narrativa ou sua adequação ao roteiro – fica por algo muito mais inefável, incomensuravelmente subsumido, fica pela sensação, pela onda invisível que toma conta do nosso corpo sempre que nos deparamos com algo emotivo, particular e singular e, consequentemente, histórico, coletivo e universal.

Não podemos esquecer que compartilhamos da incompreensão, que somos sozinhos juntos, que dividimos de uma mesma essência que nos faz únicos. Como toda grande arte, a de Angelopoulos divide-se aflita entre o épico e o lírico, tenta organizar aquilo que, se é belo, o é por ser de impossível captura. Correr atrás do impossível sempre e depois morrer aceitando nossa pequenez e celebrando nossa grandiosidade.
           
Existe algo que deuses nunca entenderiam, se chama Paixão.

sábado, 7 de janeiro de 2012

DAS MELHORES COISAS DE 2011

2011, ano pessoalmente canalha, mas esteticamente interessante – vamos à lista!



A DOCE VIDA – Assisti-lo, em película, foi ser nocauteado pela beleza só possível no cinema. Foi ter certeza de que existe algo no humano muito maior que o humano. Foi sair do cinema e querer morrer abraçado a um amigo. Não gosta desse filme? Desculpe, mas desista do cinema, pois não há nada nele pra você.




O REI LEÃO – A recordação é, talvez, a forma mais contundente de celebrar uma imagem – é como transformamos a imagem em sangue e sentimento. E o que é O Rei Leão se não a recordação exata do que já fui e daquilo que viria a ser? Último épico do estúdio que foi meu útero cinematográfico, despedida de uma certa forma de fazer animação, obra que provavelmente enlouqueceria John Ford e deixaria Tarkovsky com inveja da câmera sem limites da animação. Eterna. Lágrimas. Coração.




CÓPIA FIEL – Tem verdades que só vem com a mentira. Tem belezas que são oblíquas e certas coisas só se entende dissimulando. Certas imagens só se completam se sobrepostas. Como disse um crítico “Cópia Fiel deixa de ser grande para ser infinito”. É: infinito.




UM LUGAR QUALQUER – Poesia do abandono. Evidenciar beleza do vulgar. Dar a partida de um homem morto através da luz e do movimento de uma ninfa. Fazer música com o alarme de um carro. Criar hamonia com o som do Guitar Hero. Abraçar o coração com um zoom-out.




HOW I MET YOUR MOTHER – Prova que não existe formato esgotado, apenas mentes esgotadas. Que, quando se trata de sensibilidade, não importa se falamos de humor ou drama, de cinema ou TV. Que a montagem pode fazer milagres e que saber quando cortar para a próxima cena muda a cena que veio antes e prepara (ou não) para a cena que virá depois. Assistam e aprendam.




BRAVURA INDÔMITA – Beleza da pedra. Sem mais.




ÁRVORE DA VIDA – A importância de errar pra superar a perfeição e atingir a Verdade.




EMILY DICKINSON – Milagrosa. Pura luz. Gostaria de morar na poesia dela.



MOBY DICK – Daqueles livros que poderiam começar uma religião. Daqueles que se tornam referência pessoal para compreensão alheia. Monumental. Inescapável.


SALLY MANN – Ressignificou a palavra expressiva. Rigor maternal. Existe algo que só (n)as crianças... !

(Obviamente, nem tudo aqui foi produzido em 2011 - se trata, simplesmente do que eu vou levar deste ano)


domingo, 6 de novembro de 2011

Só resta chorar (que é um jeito exagerado de sorrir)




Pete Docter fez UP, não bastasse isso já havia feito também Monstros S.A.

Hoje, revendo trechos dessa animação enquanto eu almoçava, pensei sinceramente que essa obra é daquelas que são, antes de tudo, educativas.

Educativa porque nos ensina a ver, porque nos ensina a sentir. Toda a cuidadosa concepção de cada quadro, cada plano, cada parte da montagem - é tudo um grande aprendizado sobre o que é ser sensível.

Abrindo portas pra novos mundos, correndo freneticamente pelo direito de estabelecer laços com pessoas improváveis, esperneando como só as crianças de espírito sabem espernear contra as injustiças do mundo, Monstros S.A. sempre abre meus olhos para a Beleza (não à toa trata do sentimento que eu mais respeito e admiro, a Amizade).

Os olhos marejados de Sully, o humor que encobre a ternura de Mike, a percepção pura e criativa de mundo de Boo - não são personagens, apenas, são super-heróis, são salvadores do mundo.

Planos-detalhe que fazem questão de mostrar objetos minúsculos (um pedaço de porta, um desenho no papel amassado) em mãos monstruosas provando que, diante da delicadeza, só resta à brutalidade calar-se, sair de cena e deixar que a verdadeira beleza seja.

E o final... As mãos feridas de Mike, a porta praquele mundo inteiro e estranho que é Boo, a expectativa do reencontro, o extra campo que nos encanta com um "Gatinho!" que estávamos implorando para ouvir ainda mais um vez, nos cativa, nos mata para nos ressuscitar no sorriso de Sully, que já não é mais monstro, já não é mais indivíduo, é já e para sempre puro amor e felicidade.

Como é possível chorar tanto em um final feliz?