quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Permanecer




Acredito ser muito comum enxergar a obra de Theo Angelopoulos pela perspectiva do histórico, do coletivo, do universal. Como toda obra de arte genial, é óbvio que o gênio de Angelopoulos abre espaço para, praticamente, todo e qualquer viés de interpretação. Mas hoje, 8 de fevereiro de 2012, 15 dias após sua morte estúpida e precoce, o que mais me vem a mente quando penso neste diretor é o quanto ele é emotivo, particular e singular.

Seus planos-sequência longuíssimos tratam do avanço histórico-social de uma nação? Sim. Mas, talvez, a questão aqui seja entender o que significa para Angelopoulos o “histórico-social” – pois a humanidade e sua trajetória nada mais são do que os pequenos seres humanos, sempre tão insignificantes nos planos abertíssimos de Angelopoulos; insignificantes e, justamente por esse motivo, fascinantes.

Afinal, o que pode um casal de irmãos ainda tão crianças diante de uma mão imensa que brota do mar e aponta para lugar nenhum? Ou o que pode um simples diretor de cinema diante de uma película em branco que registrou as primeiras imagens em movimento da história de seu povo? Ou ainda, o que pode uma mulher abandonada e condenada à espera diante de um vale infinito de lágrimas e esperanças cobertas de poeira e desespero? Nada, não podem nada – e por isso mesmo podem tudo. Por mais divino que pareça, e seja, o coração do cinema de Angelopoulos está no fracasso ancestral dos homens, nos gigantes-na-verdade-moinhos que insistimos em desafiar.

Filho da terra que inventou a narrativa ocidental como conhecemos, este grego compreendeu que só é possível ser épico na medida em que respeita-se o poder arrasador do lírico. Tome-se Vale dos Lamentos: muito se fala de guerra, de despedidas, de filhos perdidos e amores nunca plenamente realizados, todos os temas da Ilíada e da Odisséia, nada mais narrativo e clássico. Mas, como todo bom espectador de cinema já deve ter percebido, milhares de artistas caminharam a mesma procissão – e nem 10% deles irá permanecer da forma que Angelopoulos permanecerá.

Por quê? Bem, este grego está longe de se ressentir de não haver, propriamente, “temas novos”, está, isso sim, encantando com a perenidade que determinados sentimentos parecem possuir; são aquelas sensações que poderíamos chamar “inescapáveis”, ou ainda “incontornáveis”. O amor proibido, a prisão eterna da maternidade, o horror sem sentido da guerra, tudo isso já sabemos de cor simplesmente porque somos pessoas. Essa familiaridade sanguínea libera nosso caminho para o confronto com o principal: as imagens. E imagens que se debatem em um caos sentimental e poético que a narrativa apenas parcialmente encobre.

Do lento zoom-in que vai, com muita delicadeza, se aproximando de um novelo de lã que se desfaz conforme os protagonistas se afastam, do pai inconsolável que se despede do espetáculo da vida em um teatro onde urra desiludido atrás da filha enquanto a câmera respeitosamente se afasta, da mudança de foco que assinala a mudança de tempo que foca uma lembrança perdida na memória, de tudo isso não nos fica por sua função narrativa ou sua adequação ao roteiro – fica por algo muito mais inefável, incomensuravelmente subsumido, fica pela sensação, pela onda invisível que toma conta do nosso corpo sempre que nos deparamos com algo emotivo, particular e singular e, consequentemente, histórico, coletivo e universal.

Não podemos esquecer que compartilhamos da incompreensão, que somos sozinhos juntos, que dividimos de uma mesma essência que nos faz únicos. Como toda grande arte, a de Angelopoulos divide-se aflita entre o épico e o lírico, tenta organizar aquilo que, se é belo, o é por ser de impossível captura. Correr atrás do impossível sempre e depois morrer aceitando nossa pequenez e celebrando nossa grandiosidade.
           
Existe algo que deuses nunca entenderiam, se chama Paixão.

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