quinta-feira, 22 de março de 2012

A Beleza do Desespero




Certos livros dariam origem a uma religião. Não é sempre, mas de vez em quando acontece de um livro ser mais que Literatura, ser mais que rigor, mais que um autor – esse fenômeno, esse milagre, exige muito para acontecer: exige o pulo sem volta no abismo do absurdo, onde não existe ego, não existe organização, não existe dominação, tudo é na única forma em que as essências conseguem ser, caos.

Moby Dick é, dessa forma, incontornável.

Como Os Irmãos Karamazov e A Montanha Mágica, Moby Dick entrega ao leitor um itinerário para sua própria alma, um mapa para os tortuosos caminhos do espírito. Herman Melville, o profeta dominado pela graça da prosa deste livro sagrado, sintetiza o indescritível, captura o inenarrável – faz Grande Literatura, enfim.

Nas páginas da odisseia de Ahab e seus escravos o leitor depara-se com um dos embates ancestrais da arte literária: a prosa x a poesia, a racionalização x a abstração, a inteligência x o incompreensível. O absurdo que a terrível baleia branca personifica jamais poderá ser inteiramente dominado pela determinação sistemática e doentia de Ahab, personagem que desde sempre já perdeu a batalha em que transformou sua existência. Da mesma forma, Melville luta bravamente ao impor uma narrativa clara e objetiva a um universo prenhe do mais incontrolável desespero, da mais tirânica sensibilidade. Enquanto acompanhamos o diário de um observador (que vai, lentamente, ser tragada pelo redemoinho de loucura e devaneio do Peacock) assistimos a prosa de Melville sucumbir ao poder fascinante da poesia, quando afirma, por exemplo, que “a mente não existe senão atada à alma” (p. 225), ou ainda quando faz com que a pessoa antes tão compacta e sólida de Ahab vá se deteriorando até chegar ao ponto que “Ahab nunca pensa; apenas sente, sente, sente; isso já é bastante tormentoso para um mortal! Pensar é audácia. Só Deus tem esse direito e privilégio” (p. 582).

Como os grandes épicos haviam ensinado (e aqui nos deparamos com os inevitáveis Ilíada, Odisseia, A Divina Comédia) a pretensa separação de prosa e poesia é um fracasso anunciado – às vezes de uma forma mais declarada (Virginia Woolf, William Faulkner, Raduan Nassar, Guimarães Rosa), às vezes de uma forma mais “discreta” (Cervantes, Graciliano Ramos, Flanney O’Connor, Dalton Trevisan) a poesia sempre encontra um caminho de contaminar, de infectar, a idealizada objetividade da prosa.

Temos, então, um livro que muito tem a dizer para a Literatura enquanto arte, enquanto expressão, enquanto pensamento e enquanto religião, profissão de fé. Como todo grande livro, Moby Dick é, em si mesmo, um mundo completo, onde só há espaço para a mentira legitimada da ficção, que alcança uma verdade jamais possível para a verossimilhança.




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