segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A razão e a sensibilidade de uma mente confinada





É uma verdade universalmente conhecida que um escritor em posse de grande talento deve estar à procura do mundo ficcional ideal para expressar sua capacidade estética/criativa. Homero foi o poeta dos conflitos entre Homens (o efêmero) e Deuses (o perene); Shakespeare não resistia em chafurdar o constante descompasso entre o que deveríamos fazer moralmente e o que temos que fazer emocionalmente; Dostoievski tinha fascínio pelo crime e sua conseqüente violência – já Jane Austen só precisava de uma sala de estar e duas pessoas tomando chá para mostrar do que era capaz seu gênio artístico.

Um dos principais exemplos de como uma vida condicionada a um mundo extremamente limitado pode se expandir através da amplitude da linguagem, na sua reclusão de inglesa recatada e contida, Austen aprendeu a desnudar seus personagens enquanto tomavam café da manhã ou atendiam a qualquer tipo de compromisso social. Cercada de um mundo onde as boas maneiras eram infinitamente mais importantes do que a boa conduta, Austen se tornou mestre em dissimular com fina ironia todo o ridículo que atribuía àquela sociedade feita de pura encenação e recalque.

Talvez por sempre ter sido ensinada a não ser explícita em suas opiniões (ou seja, a ser “agradável”), esta inglesa tenha conseguido desenvolver a rara capacidade de criar diálogos que esclarecem seus personagens ao mesmo tempo em que os aprofundam e problematizam, sem, para tanto, abrir mão de um dos grandes prazeres que tenho ao ler seus livros: o de estar sempre dominado pelo seu poder de sugerir.

Como uma de suas heroínas mais famosas (a mimada Emma, protagonista do livro homônimo) é fácil dizer que Jane Austen desperdiça sua capacidade de observação e seu senso de humor ao tratar de assuntos tão pueris quanto moças às voltas com sua obsessão em casar, ou mulheres que se submetem às ligações mais desagradáveis para garantir sua sobrevivência social. Para os fanáticos por temas “grandiosos” ou para os que têm fobia a artistas que assumem abertamente a preferência por certo assunto, Austen é um prato cheio. Mas para aqueles que se interessam pelo deleite que a Literatura é capaz de proporcionar não haverá a menor dificuldade em perceber o que esta inglesa foi capaz de fazer dispondo de tão pouco, sendo tão inigualável no que fez que mesmo um gênio como o de Virginia Woolf conseguiu pouco mais do que imitá-la em seus dois primeiros romances.

Com uma ironia que faria inveja a Jonathan Swift, um dos mestres desse recurso, Austen era capaz de criar personagens igualmente reprováveis e fascinantes (sua Elizabeth Bennet ou sua Anne Elliot não perdem em nada para Emma Bovary ou para Júlia d’Aiglemont). Sempre escrevendo como se estivesse sendo absolutamente explícita, Austen guardava para os mais atentos pequenas pistas nas entrelinhas que evidenciam o trabalho árduo a que um artista se submete quando opta por representar apenas aparências para tratar daquilo que é essencial e inevitavelmente interior. Vejamos o início de Emma:

“Emma Woodhouse, handsome, clever, and rich, with a comfortable home and happy disposition, seemed to unite some of the best blessings of existence; and had lived nearly twenty-one years in the world with very little to distress or vex her.
She was the youngest of the two daughters of a most affectionate, indulgent father, and had, in consequence of her sister’s marriage, been mistress of his house from a very early period. Her mother had died too long ago for her to have more than an indistinct remembrance of her caresses, and her place had been supplied by an excellent woman as governess, who had fallen little short of a mother in affection.”

Nesses dois parágrafos, como o leitor perceberá ao fim do romance, Jane Austen já dispõe tudo o que a interessa nessa personagem: sua aparente felicidade, a valorização de certas circunstâncias como ideais para que alguém seja feliz, a ausência da mãe, a indulgência do pai e o amor quase maternal de uma governanta. E, se Austen sempre é educada, ela é na mesma medida impetuosa – ridiculariza Emma ao mesmo tempo em que a afaga, mostra como ela é digna de pena ao mesmo tempo em que observa sua inteligência emocional; o que nos leva a uma das maiores qualidades dessa escritora: ela não faz de seus romances diários, em que encontraríamos pouco mais do que confidências e histerismos pessoais; Austen está interessada no humano, naquilo que ele tem de falso e mesquinho e naquilo que ele tem de legítimo e belo. Simplificar situações e personagens seria a morte de um autor que pretende a crítica social e a investigação psicológica, e Jane Austen faz o contrário de simplificar: ela parte de situações absolutamente triviais para chegar ao núcleo duro e disforme de seus personagens. Como Tchekhov (só que quase 70 anos antes) ela tece suas narrativas com as mais anticlimáticas situações e extrai delas uma dramatização que está sempre a serviço da objetividade ambígua de sua mente zombeteira e sensível.

Em Persuasão, seu último romance, há demonstrações claras de que ela não era excepcional apenas na criação e no desenvolvimento de personagens (que grande dramaturga teria sido), mas também na descrição de lugares e situações, e na união da capacidade descritiva, narrativa e dramática em trechos como o que segue:

“Elizabeth did not quite equal her father in personal contentment. Thirteen years had seen her mistress of Kellynch Hall, presiding and directing with a self-possession and decision which could never have given the idea of her being younger than she was. For thirteen years had she been doing the honours, and laying down the domestic law at home, and leading the way to the chaise and four, and walking immediately after Lady Russell out of all the drawing-rooms and dining-rooms in the country. Thirteen winter’s revolving frosts had seen her opening every ball of credit which a scanty neighborhood afforded; and thirteen springs shewn their blossoms, as she travelled up to London with her father, for a few-weeks’ annual enjoyment of the great world. She had the remembrance of all this; she had the consciousness of being nine-and-twenty, to give her some regrets and some apprehensions. She was fully satisfied of being still quite as handsome as ever; but she felt her approach to the years of danger, and would have rejoiced to be certain of being proper solicited by baronet-blood within the next twelve-month or two. Then might she again take up the book of books with as much enjoyment as in the early youth; but now she liked it not. Always to be presented with the date of her own birth, and see no marriage follow but that of a youngest sister, made the book an evil; and more than once, when her father had left it open on the table near her, had she closed it, with averted eyes, and pushed it away.”

Aqui Jane Austen não se limita a descrever o decorrer de treze anos e o contexto em que o passar desse tempo se deu, ela utiliza essa passagem cronológica (que poderia ser puramente informativa-descritiva) para aprofundar a inércia da situação de Elizabeth (tornando-a expressiva-dramática), trazendo à tona o sutil sufocamento que a rotina cíclica de bailes no outono, clausura no inverno e Londres na primavera causam na personagem. É em Persuasão também que Austen parece mais decidida a mostrar como as convenções sociais inglesas e a forma dissimulada como essas convenções determinavam a vida de todos que queriam “pertencer a sociedade” eram patéticas, cruéis e sem sentido. É o seu livro mais “amplo”, por assim dizer. É onde mais se fala do mundo que existe para além das fronteiras da chuvosa ilha britânica, é onde o amor já veio e já passou e agora só resta a sensação outonal (melancólica e serena) da maturidade solitária, é o livro que Austen tem mais compaixão por sua protagonista, mas também o romance em que ataca e critica mais duramente os personagens que a rodeiam. Poderia se dizer que se trata de uma obra “madura”? Sim, mas sem jamais utilizar essa maturidade para colocar Persuasão acima de Orgulho e Preconceito ou Emma. Se em seus romances anteriores entrávamos em contato com uma juventude solar e debochada, em Persuasão nos deparamos com um mundo mais sóbrio e ressentido – e parte da grandeza de Jane Austen está em ter escrito sobre momentos tão distintos da vida com igual objetividade, inteligência e sensibilidade. Era uma mulher que conhecia tanto o frescor promissor da primavera, quanto a beleza monocromática do outono.

A irônica, a objetiva, a inteligente, a sensível, a hilária, a crítica, a genial Jane Austen morreu deixando a pergunta que Virginia Woolf fez a quase um século e que ainda me ocorre com freqüência: o que ela teria feito se tivesse continuado a escrever? Se não tivesse morrido aos 42 anos? Se tivesse vivido para acompanhar o impacto que seus livros tiveram na literatura européia? Para Virginia ela teria começado o Modernismo 80 anos antes dos russos e de Marcel Proust. Eu continuo dizendo que não sei o que teria acontecido; mas não me ressinto nem um pouco de sua morte prematura, pois o que mais eu poderia pedir para alguém que já me presenteou com Orgulho e Preconceito, Emma e Persuasão? Me resta dar em troca a única coisa que posso oferecer: reconhecimento.


Obs: Dedico esse texto a Ingrid, que foi quem fez eu começar a ler Jane Austen. Muito obrigado!

2 comentários:

Anônimo disse...

gostei muito, felipe

mari

Anônimo disse...

Se a Mari gostou muito, imagina eu. Escreveste muito bem!