segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Era uma vez,

um príncipe chamado Victor. Dos muitos dons com os quais nascera, talvez o mais fascinante fosse sua capacidade para o belo. Os olhos de Victor eram uma extensão direta de seu coração (que é uma das formas de dizer “alma”) e justamente por isso cada imagem que perpassava sua mente prodigiosa era repleta de afeto e luminosidade.

Os olhos de Victor eram tão grandes que um dia foi necessário que se transformassem em outras coisas: uma casa isolada na campina, um cinema perdido em uma pequena cidade, uma mulher que de tanta saudade não podia permitir-se a nostalgia, um homem solitário e aterrorizado por sua colméia, uma menina que descobre com prazer sua capacidade para a maldade e uma outra menina, menor que esta, que se tratava de um dos seres mais belos que qualquer olhar já produziu. E havia, também, um monstro.

Cada um desses pequenos pedaços dos olhos de Victor estavam envoltos em uma luz de puro mel – doce, dourada, perene. E o pedacinho que agora se chamava Ana via, subitamente, diante de si, a possibilidade de um amigo; e não, não importava que fosse inventado, que fosse um monstro ou que fosse a morte. Era, pois, antes de tudo, uma mão gentil, que mesmo que a estrangulasse o faria repleta de ternura. 

Então atraída por aquilo que não compreendia (que podemos chamar maldade, mas que quase sempre trata-se de mistério) Ana caminhou o quanto pode, com sua maletinha vermelha e suas esperanças pesadas, passando pelo calvário do medo e da tristeza, até encontrar-se, enfim, com seu amigo monstro (que, sim, mesmo sem saber também procurava por ela todo esse tempo).

E do fundo de seu pequeno corpo brotou aquela vontade de não existir que tanto acomete as crianças – ou, pelo menos, de não existir daquela forma, fazendo com que ela se refugiasse no esconderijo favorito de toda criança: o impossível.

Talvez você se preocupe, perguntando-se se o príncipe Victor não se incomodou de se dividir em tantas pequeninas partes. Mas fique tranqüilo, o amor só é possível compartilhado – mesmo quando junto a ele vem um tanto de solidão, e um tanto de melancolia.

Não se sabe se todos os desdobramentos dos olhos de Victor viveram felizes para sempre, mas se me permitir que eu diga o que penso que aconteceu, leia o que vem a seguir: acredito que tudo o que esses olhos criaram tornaram-se o que chamamos de eterno e que nos tristes olhos de Ana ainda brilha o reflexo de seu monstro amigo. E aquilo que brilha em nossos olhos o tempo não é capaz de apagar.



    O espírito da colmeia, de Victor Erice: um filme que assistirei a vida toda.        

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

2012

O ano de 2012 na forma de expressão. O que ficou do ano que quase não foi, foi:


Poemas, Wislawa Szymborska - Livro salva-vidas do ano. Cheio de milagres. A essência não se perde na tradução. Os poemas que eu gostaria de ter escrito. Carta de amor à humanidade. Palmas.


Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, Beto Brant e Renato Ciasca - O corpo e o espírito de uma mulher que é o paraíso e o inferno.  O prazer de filmar Lavínia/Camila. Uma mulher é uma mulher. O tempo de um plano deve respeitar sua respectiva e singular beleza.


Contos completos, Flannery O'Connor - Gênio do mal. O fel da verdade que apenas a mentira encerra. O sereníssimo bater de asas do anjo da maldade. A palavra é uma arma - que, sim, mata. Inconsequente. Extremamente perigosa.


Moonrise kingdom, Wes Anderson - A beleza de sonhar. Fugir é uma necessidade espiritual. A liberdade de não amadurecer. Câmera-flutuante. Nada mais comovente do que reconhecer-se no outro. C'est le temps de l'amour.


Ariel, Sylvia Plath - A verdade é que não há rima que abarque a poesia. Sylvia nasceu pra ser poesia.


Blue valentine, Derek Cianfrance - Foi difícil seguir em frente depois desse filme. Não há bom gosto quando o amor acaba - apenas raiva e frustração. Eles não tem mais nada pra dizer um ao outro. Apenas terminou.



O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, Evandro Affonso Ferreira - É possível ler e fazer literatura. Marguerite Duras ia sorrir. O parágrafo que vale uma vida.



5ª Temporada de Mad men, Matthew Weiner - A temporada das despedidas. O retorno às trevas. A quase-redenção de um condenado.



Nadja, André Breton - A mulher é o impossível.



Procurando Nemo, Andrew Stanton - A beleza é o movimento. Irmão mais novo (e livre-lírico) de Valente.



Trópico de câncer, Henry Miller - A língua é, essencialmente, sexual. E, por favor, chega de falar do Bukowski.




As vantagens de ser invisível, Stephen Chbosky - Para esse filme eu só tenho a dizer OBRIGADO.



Carta a D. André Gorz - É, aparentemente existe sim. Para ser amado com muita força.



Caminho para o nada, Monte Hellman - A arte não tem piedade.



Essencial, Franz Kafka - Título de livro mais honesto do ano. Para ler e morrer.

sábado, 22 de dezembro de 2012

O Som e a Fúria



Acho que a cena chave de As Vantagens de Ser Invisível é aquele momento em que Sam explica por que os garotos ingênuos são os piores: porque seus pais gostam deles e você nunca espera que eles ataquem. 

E, uma hora, eles atacam.

Provavelmente meus pais não veriam o menor problema em eu assistir esse filme aos 16 anos e eu acharia ele um filme muito legal sem me dar conta do mal que ele, secretamente, estaria me fazendo. Talvez porque a adolescência seja justamente essa inconsciência do quanto cada uma daquelas coisas mínimas e trágicas e alegóricas serão, de uma forma ou de outra, carregadas por nós para sempre.

As dores sempre relegadas ao extracampo, os closes apaixonados em Emma Watson, a iluminação sentimental de uma época em que tudo é excessivo, a montagem paralela que todo adolescente é obrigado a fazer para começar a construção do adulto que ele será, a câmera que flutua ao som de Heroes.

As Vantagens de Ser Invisível é um voo, onde, sem dúvida, muita coisa passa rápido demais, muita coisa é vista pela metade, muita coisa ganha atenção demais - mas me seria extremamente absurdo assistir a um filme sobre ter 16 anos que não se entregasse a excessos. Temos uma vida inteira para ser comedidos e racionais, e como certo russo disse uma vez "o homem que não se permite a paixão na juventude é mais tolo que o mais ridículo apaixonado".

Se podemos ser heróis, mesmo que só por um dia, por que dizer não?

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Querida Wislawa,

como você está? Espero que bem. Melhorei exponencialmente após ler suas cartas tão carinhosamente feitas especialmente para mim; achei a delicadeza de escrevê-las em forma de poemas cativante e devo dizer que me sinto, de alguma forma, curado do que quer que fosse que estava me devorando.

Me contaram que você não está mais tão por perto assim, aparentemente ocorreu uma grande e irreversível viagem no começo do ano, é isso? Bom, tanto eu quanto você sabemos que entre nós dois não existe distância irreversível, sua mão está sempre ao alcance da minha e, também por isso, obrigado.

É preciso confessar o alívio que você me provocou ao mostrar que, no que diz respeito a expressão, não existe tanto assim o que gostamos tanto de chamar de "barreiras da tradução". Eu, olha que engraçado, sempre me considerei refém da tradução e foi preciso suas cartas para me mostrar que o essencial realmente não está na palavra. Sabe, fazia um tempo eu suspeitava que nem tudo era morfologia nesse mundo, pois você foi a confirmação disso - porque sempre que leio (e te garanto que já li e reli muitas vezes) "Tem uns quarenta anos, mas não agora", sei que há algo tão maior que o "tem" o "uns" o "quarenta" o "anos" a "," o "mas" o "não" e o "agora", algo maior ainda do que a junção dessas palavras, algo maior ainda que o feixe de luz que perpassou sua mente ao descobrir esse verso.

Há algo maior, querida Wislawa.

Há algo maior que o Vietnã naquele "- São" de uma mulher sem memória, há algo maior n'"A vingança da mão mortal", do que uma mão e um lápis, há algo maior do que a rima, a métrica, a técnica. Maior do que você Wislawa (que é uma mulher gigante), algo que foge do seu controle, como também fugia ao controle de Breton, de Duras, de O'Connor.

Acho que uma folhinha voou de mim até você, ou que sua bola se perdeu em algum arbusto da minha infância, ou ainda que tentamos entrar na mesma pedra só para procrastinar ainda mais a cruel e insensível tarefa de redigir um currículo.

Procrastinar com você foi tão bom que pareceu, em certos momentos, com criação.

Me escreva mais, certo? Algo me diz que ainda vou precisar muito do efeito de flutuação que suas palavras provocam em mim. Prometo sempre responder, não importa se de formas inteligíveis, como você bem sabe.

Te amo Wislawa, 
e já estou com saudades.

Felipe.


sábado, 3 de novembro de 2012

BANG BANG PJ!



Esse ano conheci a PJ Harvey.

As referências eram ótimas (se a Rory gosta, deve ser bom, etc etc) e não havia nada que indicasse que eu não fosse gostar. Não se tratava de um risco - mas aí é que está, dentro do melhor que era esperado PJ Harvey foi ainda mais longe. Tão longe que achei necessário dizer alguma coisa.

Primeiro: criar expectativas a respeito dela é completamente inútil, talvez porque, como Patti Smith e Joni Mitchell, ela esteja completamente comprometida com algo que vai além de si mesma, além do público, além mesmo da música. Talvez o que pudesse ser chamado de profissão de fé.

A questão é que acho uma bobagem reclamar que em White Chalk ela deixou de ser a roqueira que era em Rid of Me e To Bring You My Love pra se tornar uma filha chata da Vashti Bunyan, ou que Stories From the City, Stories From The Sea é um álbum feito pra vender, ou ainda que Let England Shake é um disco histérico só porque ela pega pesado nos agudos: porque todas essas definições simplesmente não existem pra PJ Harvey; foram só coisas que, sendo ditas tantas vezes, passaram a parecer proposta do artista e não rótulo imposto pelo público.

Pra abraçar Polly Jean o mínimo que se pode fazer é dispor-se a uma liberdade tão absoluta quanto a dela. Não dá pra ouvir um disco pensando que ele vai continuar o último, essa mulher é pura ruptura e pesquisa - e aqui, nesse ponto, é que ela se revela como constante e excitante risco. Não é preferir "Angelene" a "Down by the Water", ou "Dry" a "The Soldiers", ou tentar descobrir qual o melhor disco dela, porque é completamente infrutífero comparar a PJ Harvey a ela mesma, no máximo se chegará a um diagnóstico de esquizofrenia ou de incongruência.

A importância de ouvir PJ Harvey está nessa possível reeducação de nossa interpretação tão pré-disposta a competição que aprendemos a cultivar, tão viciada na comparação, tão obcecada pelos prêmios e vitórias de uma obra de arte sobre a outra. Chega de colocar os artistas pra correr como cavalos em uma maratona. A obra de PJ Harvey é uma gargalhada na cara de quem insiste em troféus e estrelinhas, e um afago mais do que necessário para quem está disposto a assumir riscos (principalmente, o risco da falha).

Arte é um ato de coragem.