segunda-feira, 15 de agosto de 2011

“e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ (...) ‘estamos indo sempre para casa’”


Por prematuro que seja, é importante esse registro do primeiro impacto de A Árvore da Vida sobre mim. Um filme que, desde seu início, propõe ao espectador passar pela experiência transcendental que os filmes de Kubrick e Tarkovsky costumavam ser – e que, hoje, os filmes de Theo Angelopoulos são.
Diante de nossos olhos está um homem com uma missão sagrada: aquele ato tão difuso que se confunde entre a revelação e o enigma, chamado às vezes milagre, às vezes mistério e, nesse caso, cinema. Mallick, ao que parece, foi o diretor que melhor absorveu as mudanças ocorridas no romance do século XX – o fluxo de consciência de Faulkner e Virginia Woolf está lá, não há dúvida, mas transmutado para a imagem expressiva de um cineasta que desafia a câmera a uma corrida pelo registro daquilo que de mais divino existe nas coisas que nos cercam.




É já a epígrafe que nos localiza em uma obra essencialmente religiosa (porém não ascética), em que todos serão encharcados pela luz úmida e quente da criação, da graça. Mallick trabalha com forças que só sabem correr soltas, que não podem ser limitadas – e sendo a arte e o homem limitados por natureza (Mallick diz com todas as letras: “subjetivo quer dizer que só existe na sua cabeça, não pode ser provado”) podemos dimensionar o tamanho da empreitada que é filmar aquilo que sempre se excede e transborda, aquilo que nada pode conter. Durante a projeção chamaremos isso de várias coisas: Deus, vida, infância, memória, Mãe.
O presente da frustração (só o reconhecemos no filme porque sabemos que nunca romantizamos ou engrandecemos o presente) e o passado da origem guerreiam, aqui, a mesma guerra de Lavoura Arcaica – afinal, somos aquilo da onde viemos, e na lente líquida de Mallick reconhecemos o momento em que passamos a repudiar a origem que nos criou como somos, repudiando, assim, principalmente a nós mesmos.
A atmosfera uterina de constante segurança e risco, aquela sensação tão orgânica de sairmos de dentro de algo vivo e nos alimentarmos dessa vida, a possibilidade de olharmos para trás e contemplarmos nosso início, todas essas coisas, impregnam o quadro de Mallick e produzem a beleza quase exaustiva desta obra. Exaustiva e necessária – afinal, do início dos tempos até o fim de tudo, talvez o que de mais concreto reste ao ser humano sejam as imagens. A imagem translúcida, vibrante e graciosa da mãe. A imagem dura, consistente e vaidosa do pai. A imagem de um par correspondente a nossa essência na forma de um irmão.
Se em O Novo Mundo (especialmente na morte de Pocahontas) Mallick explorou o máximo que pôde as elipses, o não-dito, o extra-campo, o que o olhar só pega de relance; aqui ele parece ultrapassar-se a si mesmo e entregar-se por inteiro ao tão falado fluxo de vida que tudo leva (daí a imagem recorrente da água, o elemento que possui as partes mais indissociáveis de seu todo), na liberdade da linguagem que, na corajosa escolha de não limitar seu objeto, o torna mais misterioso e imperscrutável.
É besteira falar em presente, passado ou futuro. A noção de continuidade? Só existe a serviço da memória afetiva-transcendental-individual-coletiva. A cena? A sequência? O filme tem toda sua unidade justamente na forma como suas partes aparentemente não se cruzam, não se correspondem. Como se chegássemos a um lugar e, só então, percebêssemos que tudo que nos aconteceu durante toda nossa vida (e antes dela) nos levou até ali.
É muito, mas não é demais. Terrence Mallick acaba de tornar ainda mais divina a profissão de cineasta. O criador lança sua criação como desafio àqueles que pretendem entender a existência. É destino consumado que haverá o momento em que a criação desafiará o criador. Disso nenhum criador escapa. Assim como ninguém escapa da Graça e como ninguém escapa da Natureza, os corajosos também não escaparão desse filme, irão, sem sombra de dúvida, o mais rápido possível em sua direção.







8 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pela resenha,man, de fato um filme para corajosos(talvez por isso os covardes que estiveram na minha sessão resolveram mostrar toda sua falta de educação de uma só vez),confesso que temi ''entrar no clima da película'', porem quando as imagens de super novas, big bang e outros eventos cósmicos vem para lembrar o quanto os problemas do lar são pequenos mesmo que seus pais pareçam ''semi deuses'' (mães que flutuam...), fica impossível não entrar na viagem. Vlws Malick ;-)

Anônimo disse...

O post acima é de Patrick...

Felipe disse...

Que interessante essa idéia dos "pais semi-deuses", realmente é esse o ponto de vista da infância (e a humanidade é tão infantil).
É muito bom embarcar na viagem do Mallick, né? Uma pena que muitas pessoas na minha sessão não tenham se deixado levar pelo filme.

Obrigado por comentar Patrick, volte sempre.

Anônimo disse...

Interessante também é ver como o filme ta dividindo a crítica, desde os blogs até jornais e ETC, ''é realmente o 2001 do Malick'', hehehe!

De Patrick.

Breno Yared disse...

Eu me decepcionei com "The Tree of Life". Apesar de bom, é o pior do Malick. Muitas vezes resvala e cai na simples perfumaria, como a dispensável sequência na praia. Nem as elipses são tão belas quanto as de "O Novo Mundo", por exemplo.

Felipe disse...

Discordo de ti Breno. Acho que o filme é o oposto do que costuma-se chamar "perfumaria"; se há falha é pelo simples fato dele ser (como sempre, no caso do Mallick) um filme-desbravador, que não esconde ter, ele mesmo, dúvidas sobre o que filma.
Falava hoje com o Mateus sobre a semelhança que enxergo entre o Mallick e o Faulkner (também "acusado" de exagerar de vez em quando nos seus romances "por demais" poéticos e exuberantes), mas, realmente, não consigo imaginar outro tratamento possível para esse filme.

Também acho que ele ultrapassa o uso da elipse, do plano-sequência, da montagem paralela e da "continuidade" dos seus outros filmes - é como se nesse aqui ele resolvesse "zerar" tudo e descobrir novos caminhos.

Mas é isso mesmo, os artistas relevantes sempre levantam as melhores discussões.

Breno Yared disse...

Eu te entendo, Felipe. Mas aí entra a questão de ponto de vista. Tanto as sequências da origem do universo quanto a da praia, eu achei dispensáveis e pretensiosas. Concentrando-se apenas na família - para mim, o melhor do filme - talvez o Malick conseguisse o mesmo resultado. E acho que se parece mais com "O Espelho", do Tarkovski, do que com o Kubrick. Anda assim, o filme não deixa de ser uma experiência.

Breno Yared disse...

Uma coisa é certa e em parte concordo contigo, pelo menos na parte da família: poucos fazem filmes tão descontínuos quanto o Malick, praticamente não existem regras a seguir.