terça-feira, 5 de abril de 2011

Vestígios do dia




Um dia a muito incisiva e devotada a Tchekhov Virginia Woolf se perguntou: o que haveria no romance se não houvesse narração? O que haveria num romance que fosse inteiramente construído sobre impressões, sussurros, incertezas?

O que poderia ser capturado se de um abraço só se revelasse o ímpeto das mãos? Se de uma perda trágica só se desvendasse uma porta batendo? Se de um amor impossível só se soubesse alguns passos solitários no meio da madrugada?

O que resta à ficção quando não lhe resta quase nada? Virginia respondia sorrindo: resta o essencial.

Poucos são os artistas que conheço que foram tão autoconscientes do papel que exerciam na História de sua linguagem quanto Virginia Woolf. Nenhum usou tão bem quanto ela esta autoconsciência para encontrar sua própria voz.

Como Ego amava comida, Virginia amava Literatura. E como o crítico de Ratatouille, se ela não Amava, ela não engolia. Principalmente quando se tratava de suas obras.

Em um livro essencial de ensaios seus, ela nos fala da melhor forma que existe de dimensionarmos o trabalho de um escritor: ao fim do dia pense em tudo que aconteceu, colete suas impressões e sensações, suas certezas e reflexões; pegue esse amontoado de pensamentos e abstrações e tente dispô-los em ordem de forma a despertar algum interesse; tente encontrar alguma unidade em tudo o que você quer expressar, tente relacionar uma coisa com a outra e produzir desse encontro algo significativo. Claro que não demora muito para entendermos que o trabalho (como não poderia deixar de ser) é árduo. Virginia mostra, de maneira praticamente irrefutável, que Literatura não é lugar para despejar impressões do dia, nem para exibir habilidades estilísticas: no livro não há espaço para desonestidade e vaidade, pois a Arte para Virginia estava acima do homem (ou pelo menos o fazia entrar em contato com algo que o transcende) e não poderia se subordinar a coisas tão pequenas quanto ego e orgulho.

Não se engane o desavisado: para esta inglesa não havia tema menor ou maior; havia, isso sim, obras que encaravam a Literatura de frente e obras que tentavam driblá-la a qualquer custo. Ora, se não era o bastante uma cabeça cheia de impressões e nem uma técnica cheia de recursos, do que se tratava a Literatura então? Para Virginia, só fazia sentido falar em Arte quando se falava em percepção estética das coisas. Um livro só seria absolutamente necessário (artisticamente falando) quando o artista era capaz de trazer suas impressões e sua técnica para a obra à luz do senso estético que está (ou deveria estar) acima de qualquer outra questão.

O que se pode fazer com essas informações? Dar-se conta que, provavelmente, havia apenas uma coisa que Virginia valorizava tanto quanto o ato de desafiar sua linguagem: e eram os momentos de não-existência de que ela tão insistentemente falava em seus diários.

Estes momentos, comumente perdidos dentro de nossa memória que prefere selecionar e eleger instantes de maior “arco dramático”, pensava Virginia, deveriam ser de alguma forma resgatados para que ao nos depararmos com personagens e narrativas que acontecem quando ninguém está olhando pudéssemos enxergar o que os quilos de costume e repetição cotidiana nos impedem de ver. Essa escolha já não se tratava de definição categórica, mas de caminho pessoal e intransferível. Woolf sabia que era disso que precisava falar; e foi incansável na marcha incessante de trabalho e insistência que a levaram até seu estilo definitivo.

E o que seria esse “estilo definitivo”? Como Tarkovski, Virginia Woolf passou toda sua vida esculpindo o tempo. O Quarto de Jacob, Mrs. Dalloway, Orlando, As Ondas, Entre os Atos, são narrativas que obrigam seus personagens a deparar-se e debater-se com a indiferente passagem do tempo (que Virginia se especializou a dilatar e a concentrar a seu bel-prazer). É em Ao Farol, no entanto, que se dá o momento mais inacreditável do gênio de Woolf. Para quem já leu Mrs. Dalloway ou Orlando ou As Ondas, não encare essa afirmação como menosprezo a essas outras obras-primas, mas sim como um meio de dimensionar toda a amplidão desta obra da onde ninguém sai ileso.

Dividido em três partes (“A Janela”, “O Tempo Passa” e “O Farol”) Ao Farol é a obra em que a parcimônia e a delicadeza de Woolf mais abalam as fundações da ficção. Três dias se passam na vida da família Ramsay, entre cada um desses dias vários anos correm e várias mudanças ocorrem. Tudo muda em um movimento que, por fim, se revela circular. Na primeira parte somos apresentados a uma família numerosa que está de férias em uma casa de verão hospedando alguns convidados. Um dos filhos quer ir ao farol, um pedido de casamento pode estar acontecendo, uma pintora sem muitos atrativos físicos se torna cada vez mais invisível, Mrs. Ramsay (esposa e anfitrião perfeita) circula entre as várias pequenas esferas sociais que colidem em sua casa sempre destilando angústias e cultivando receios. Ocorre, então, quando Mr. Ramsay observa sua esposa que observa o farol, um dos momentos mais arrebatadores da literatura de Woolf:

“Getting up she stood at the window with the reddish-brown stocking in her hands, partly to turn away from him, partly because she did not mind looking now, with him watching, at the Lighthouse. For she knew that he had turned his head as she turned; he was watching her. She knew that he was thinking, You are more beautiful than ever. And she felt herself very beautiful. Will you not tell me for once that you love me? He was thinking that […]. But she could not do it; she could not say it. Then, knowing that he was watching her, instead of saying anything she turned, holding her stocking, and looked at him. And as she looked at him she began to smile, for though she had not said a word, he knew, of course he knew, that she loved him. He could not deny it. And smiling she looked out of the window and said (thinking to herself, Nothing on earth can equal this happiness) - ”

Mr. e Mrs. Ramsay (não sabemos seus primeiros nomes) tornam possível um diálogo de monólogos nessa passagem. Se o conceito de monólogo interior em si nem se quer pode ser chamado de moderno (alô Homero!) o jogo de comunicação a partir da incapacidade de se comunicar que Virginia propõe aqui é atordoante. Por que? Ora, como pode alguém utilizar a incapacidade de dizer “eu te amo” justamente para trazer à tona a potência de todo o amor inexprimível? Como pode alguém correr tão livremente entre discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre sem jamais permitir que o leitor se perca dentro de um mar de pontos de vista? Como pode alguém encerrar uma parágrafo desta extensão, em que nenhuma palavra foi dita, no momento em que a personagem se atreve a dizer alguma coisa justamente para sublinhar que tudo que havia de essencial a ser transmitido já foi percebido? Como mensurar o tamanho da prova de amor de que somos testemunhas e que faz com que a sempre recalcada e agradável Mrs. Ramsay pense consigo que nada no mundo pode se igualar àquela felicidade?

É dessa mulher que estamos falando. Desta mulher capaz de mostrar que, se ela se revolta com a vaidade de um Joyce ou com as reclamações de uma Charlotte Brontë, é porque a Literatura existe para que se alcance instantes como este: e há muito tempo que já não se trata de escolher temas grandiosos ou pequenos (ela aprendeu muito bem com Tchekhov e Austen que existe tensão e interesse em tudo que é humano), ou seguir formas testadas e aprovadas por classicistas, românticos, realistas e outros etceteras – é preciso que o artista chegue o mais próximo possível de uma sinceridade que só permita a expressão que é necessária. Sim, esta é uma das autoras mais rigorosas da Literatura. Como afirmou Auerbach, em seu famoso artigo sobre Ao Farol chamado “A Meia Marrom”, Virginia traz o ato de entrelaçar fios soltos para a produção de uma colcha de retalhos para a sua literatura. Ela estava sempre, em maior ou menor grau, trabalhando a partir desse conceito.

Na dispersão das pequenas evidências do dia ela enxergava a essência que define, problematiza e esconde o indivíduo (como é repetido incessantemente em Mrs. Dalloway: “um dia em sua vida, e nesse dia toda a sua vida”). É a reação grosseira de Mr. Ramsay ao pedido do filho de ir ao farol que joga uma luz trêmula sobre aquela relação estremecida, é a insistência de Mrs. Ramsay em estar sempre ocupada a proporção de sua solidão, é a obsessão de Lilly (a pintora) com seu quadro que nunca fica pronto o único meio que ela encontra de se fazer existir. São os dias perdidos de infância e de coisas que jamais esqueceremos que aconteceram porque elas se tornam aquilo que somos e poderemos ser.

Por mais admiradora que tenha sido de Jane Austen e Tolstoi, Virginia decide-se por essa interiorização da narrativa da qual, aparentemente, ninguém conseguiu escapar no século XX. No caso dela (levando em consideração os dois fracassos criativos que são seus dois primeiros romances – justamente aqueles em que ainda se aventura por um realismo clássico) não resta dúvidas de que esta não é apenas uma escolha intelectual, mas também, e principalmente, sensível e moral. Sensível por ser a forma como sua percepção se dá; moral porque ela sabe que não seria sincero da parte dela escrever de outra forma.

É essa busca pelo interior, pelo despercebido, pelo escondido que leva Woolf até a maior ousadia que propôs em sua obra ficcional: a segunda parte de Ao Farol – “O Tempo Passa”.

A casa de verão, que conhecemos cheia de personagens, cheia de vida, está vazia. O verão acabou e não é possível saber ao certo quantos anos se passaram.

“So loveliness reigned and stillness, and together made the shape of loveliness itself, a form from which life had parted; solitary like a pool at evening, far distant, seen from a train window, vanishing so quickly that the pool, pale in the evening, is scarcely robbed of its solitude, though once seen. Loveliness and stillness clasped hands in the bedroom, and among the shrouded jugs and sheeted chairs even the prying of the wind, and the soft nose of the clammy sea airs, rubbing, snuffling, iterating, and reiterating their questions – ‘Will you fade? Will you perish?’ – scarcely disturbed the peace, the indifference, the air of pure integrity, as if the question they asked scarcely needed that they should answer: we remain.”

É esta segunda parte a favorita de Woolf. É onde ela toca mais profundamente em toda a impessoalidade temporal que sempre trouxe para suas narrativas. Impessoalidade que aqui se materializa pela escolha de fazer com que o tempo não passe para ninguém a não ser para ele mesmo. Virginia expõe o que significa para o próprio tempo a sua passagem; eleva-o de circunstância a personagem, de advérbio a sujeito. Ele não apenas muda o entorno como se transforma. Como ela mesma diz neste trecho, a visão que temos da casa vazia é como a visão de uma piscina a noite, distante, vista de um trem em movimento, que esvanece tão rapidamente quanto o trem passa. E não seria assim que o próprio tempo enxerga as coisas pelas quais passa e as quais transforma? São estes instantâneos de quando piscamos os olhos enquanto corremos que interessam. São esses milésimos definitivos que devem ser eternizados.

Se só é possível considerarmos qualquer essência quando ela se dá através de uma existência, Woolf faz o grande salto em direção ao abismo do auto-entendimento ao se voltar para aquilo que proporciona a existência de todas as essências; aquilo que torna possível ser também é, e para que assim seja é preciso que se dê. E quando Virginia resolve que não vai mostrar personagens envelhecendo para explicitar como o tempo se dá, mas sim expor toda a pressão que a transformação de hoje em ontem exerce sobre coisas que não podem reagir (as cadeiras cobertas por lençóis, os quartos vazios e empoeirados) é que ela oferece a possibilidade de expressar o puramente concreto através do absolutamente abstrato. E por mais repetitiva que essa escolha pareça (qualquer um pode dizer que os poetas fazem isso há séculos e séculos) é difícil ignorar as consequências que ela provoca na estrutura da Narrativa.

Quando abole personagens, enredo e clímax, Virginia não está acabando com o que conhecemos enquanto romance – está expandindo-o.

Como terminar?

Na terceira parte (“O Farol”) a família Ramsay volta àquela mesma casa. Finalmente concretiza-se a viagem que havia começado a ser planejada tantos anos antes. As ausências são muitas e a maioria das mortes nos foi informada entre parênteses. Do muito que passou quase nada mudou. É quando Lilly resolve voltar ao quadro que, faz tanto tempo, ela começou. É quando Lilly percebe que toda aquela existência na qual foi jogada não se pode transpor para a tela através de linhas realistas, de cores harmônicas, de uma composição sólida. Foi tudo tão transitório, foi tudo tão diluído.

Enquanto observa a família Ramsay finalmente chegando ao farol, Lilly é assaltada por um pulo em seu peito:

“But what did that matter? she asked herself, taking up her brush again. She looked at the steps: they were empty; she looked at her canvas: it was blurred. With a sudden intesity, as if she saw it clear for a second, she drew a line there, in the centre. It was done; it was finished. Yes, she thought, laying down her brush in extreme fatigue, I have had my vision."

2 comentários:

Anônimo disse...

Menino como é possível alguém escrever assim? Tens o poder de envolver as pessoas com teus textos.

Mariana disse...

Olha, o meu blog com a C e L.
http://cadaumaemcadacanto.blogspot.com
bom pra manter as novidades em dia sobre a minha vida por aqui ;)