Por algum motivo Antes do Pôr-do-Sol não tem saído da minha mente nos últimos dias, diria mesmo últimas semanas. Creio que o correto seria dizer “por alguns motivos”. Ultimamente tenho tido uma relação algo distante com o cinema, me interesso muito mais em fazer do que em assistir, e talvez esteja nessa vontade que tenho de fazer o maior dos motivos da persistência desse filme na minha memória: Antes do Pôr-do-Sol é um dos grandes filmes da minha vida (ali, encostado com Luzes da Cidade e Annie Hall) e nunca houve um momento em que tenha me lembrado dele sem que tenha, de alguma forma, me emocionado.
Uma questão central pra mim, nos últimos tempos, quanto à crítica cinematográfica, tem sido o da validade de algumas coisas que deveriam dizer se um filme é grande ou não: o inevitável peso do talento do diretor, as relações entre a câmera e a palavra, o trabalho de atores, a capacidade e proposta narrativa, a montagem, a edição – mas o que mais tem se aproximado de uma verdade, para mim, é a defesa da obra a partir de seus méritos (nem sendo preciso compará-la a outra coisa) e de como ela faz aquilo que se propôs a fazer, seja lá o que isso queira dizer.
Entre minhas dúvidas sobre juízo de valor em relação ao cinema Antes do Pôr-do-Sol vem, como diria Nina Simone, bem a tempo. O segundo encontro de Jesse e Celine é mais que filme, é mais que obra-prima, é mais que beleza: é milagre. Um milagre que nada tem de acidental ou casual.
Na primeira sequência Jesse fala do seu livro, perguntam se é ficção ou realidade, é claro que nós sabemos a resposta, mas nos olhos de Ethan Hawke vemos que mesmo o seu personagem se lembra da magia juvenil de Antes do Amanhecer como algo quase tão bom para ser verdade, e entramos pela única vez na memória de Jesse: é Celine, linda como só mulheres bem filmadas podem ser, o único rastro da sua felicidade plena naquela noite em Viena. Voltamos para Paris com o close de Celine agora, observando Jesse, e a imagem reacende em todos (público e personagens) o sentimento dos dois jovens apaixonados.
Não existe mais o tempo.
É tão simples que não poderia deixar de ser genial: é um homem e uma mulher que não se esqueceram e que se ressentem de um desencontro tão cruel. Mas Linklater passa longe do fatalismo: o reencontro que vamos acompanhar é a revisitação (nunca a recuperação) de uma intimidade e uma plenitude que a premissa do filme faz parecer impossível, mas que as imagens tornam nada mais do que inevitável.
Na hora e meia de Jesse e Celine temos o que de melhor a delicadeza e a simplicidade no manuseio de uma câmera pode nos oferecer: a sinceridade e legitimidade de um registro que tem ternura imensurável pelo seu objeto filmado. O amor de Linklater, Delpy e Hawke pelo micro-universo criado pelos personagens em Antes do Amanhecer é a iluminação outonal daquela tarde parisiense, são os planos-sequência que parecem nunca quererem abandonar os dois, são os diálogos verdadeiros (da forma como só a ficção pode ser verdadeira), é o fade out final, é a mise-em-scéne de corpos mais linda que já pude testemunhar.
São muitos os talentos de Linklater como cineasta que fazem Antes do Pôr-do-Sol ser a experiência que é: o posicionamento perfeito de seus enquadramentos, o timing providencial de todas as cenas, a direção sobrenatural de atores.
Se nove anos atrás presenciamos duas pessoas se apaixonando, vemos agora as repercussões daquela noite, e se em Jesse isso se mostra de forma mais clara desde o início, é em Celine que diretor e atores realizam o trabalho mais minimalista e arrasador: no eternamente citado plano do carro há um tal desnudamento da personagem que a impressão imediata que me veio ao assistir a cena pela primeira vez foi a de pouquíssimas vezes ter-me sentido tão próximo a alguém – proximidade superada pelo próprio filme logo depois, pois o abraço de Jesse e Celine é como entender a definição de saudade, afeto, melancolia, amor e gratidão todos de uma vez.
Os nove anos passaram à força para os dois, na subida pelas escadas o espectador não apenas sabe disso, ele entende, ele sente, ele vive – e quando eles chegam à casa de Celine nos damos conta de que aqueles olhares ternos delicada e implacavelmente reduziram esses nove anos à nada, porque existe o mundo e existe o mundo de um casal, e Antes do Pôr-do-Sol é uma imagem exata do segundo.
Aquela coisa de uma noite deu origem a duas novas pessoas, que nunca mais se enxergaram (e, por consequência, nem ao mundo) da mesma forma. O reconforto de poder confirmar todo o alcance daquela noite no olhar do outro é intransferível e, no entanto, Linklater nos faz parte dessa sensação.
O campo/contracampo de Jesse e Celine enquanto ela toca a valsa que fez para ele É O AMOR. Linklater deixa signos, símbolos e metáforas para trás e chega na coisa, no coração de seus personagens e de seu público.

Não sei o que é cinema, mas sei do que ele capaz sempre que reassisto Antes do Pôr-do-Sol.
3 comentários:
lembrei do artigo do Rivette sobre o que é ser critico, o texto é intitulado "a arte de amar"... bom saber que os criticos que mais me tocam são pessoas que eu convivo.
Dá uma geral nele, organiza .. que aí tu pegas gosto e não desgruda mais.
Tá bonito esse texto.
A crítica que enviaste por email passa loooonge da tua, hahaha.. bem melhor!
Se tu não entendestes, eu quis dizer que a TUA é melhor.
"I have no bitterness, my sweet
I'll never forget this one night thing
Even tomorrow, in other arms
My heart will stay yours until I die"
Grande feito o deles. Para mim é o filme ideal sobre o que é o amor.
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