domingo, 8 de maio de 2011

De partir o coração

É desconcertante o alcance do tempo.

Esta linha que só sabe (e só é capaz) de seguir em frente nos empurra para adiante mesmo quando nosso coração ainda olha para trás. E sempre olhamos para trás – nos arriscando diariamente a nos tornarmos estátuas de sal; mas sem poder evitar o ancestral ímpeto de contemplar o que passou.

Talvez venha deste meu lado que sempre pendeu para a nostalgia o gosto que tenho por acompanhar séries de TV. A satisfação que sinto ao reconhecer uma mesma frase que foi dita temporadas (e anos) atrás, de relembrar um mesmo plano, de reencontrar com um personagem querido, são coisas que o cinema não me proporciona na mesma proporção. E é de todo o envolvimento que invisto sempre que me disponho a acompanhar uma série que vem a dor quase infantil que sinto quando é hora de dizer Adeus.

Comecei a assistir The Office de forma quase relutante. Era muito constrangimento, era muita liberdade, era a superação de um modo de produção que cresci assistindo e pelo qual tenho grande carinho (a boa e velha sitcom). Mas não é possível ignorar The Office por muito tempo. Aquelas câmeras na mão, aqueles personagens aparentemente tão pequenos, aquela aparência pálida e medíocre de uma empresa que vende folha de papel não me saiam da cabeça e ficava cada vez mais evidente que algo de muito precioso estava abrigado sob o teto da Dunder Mifflin.

A versão americana (nunca assisti à original inglesa, da BBC) foi concebida por Greg Daniels e, pelo que dizem, demorou um pouco para encontrar o tom que a diferenciaria de sua matriz; mas quando encontrou...

De início pensei que The Office ia ser mais uma série de comédia cínica que, em questão de episódios, me faria ter desprezo e nada mais por todos os personagens. Me enganei redondamente, pois um dos problemas mais graves da comédia em geral foi graciosamente superado pela equipe de alucinados que trabalham nesta série. Me refiro aqui a difícil combinação entre comédia e ternura, que sempre angustia qualquer roteirista, diretor ou produtor que resolva se lançar ao desafio de fazer rir toda semana. Seinfeld ignorou o máximo que pode a questão emotiva (até explodir de carinho por seus personagens no final, afinal o último episódio é nada mais nada menos que um afetuoso flashback), Gilmore Girls era muito engraçado para ser drama e muito dramático para ser comédia (foi sempre um injustiçado híbrido), Os Simpsons tende a ser criticado justamente nos momentos em que se decide por um caminho mais doce. No cinema não é muito diferente: nos acostumamos a gargalhar durante a comédia e a esperar sentados e impacientes que o drama passe logo para que possamos voltar a rir sem ter que nos preocupar com as sequências açucaradas. Neste impasse do humor Chaplin, claro, sempre foi um mestre – mas era CHAPLIN. Woody Allen só em seus picos criativos conseguiu conciliar as duas pontas (e aí temos Annie Hall, Manhattan e Memórias). Jerry Lewis dizia que o drama era fácil: você mostra um cara lendo jornal enquanto toma café, depois mostra ele dirigindo até o trabalho e pronto, tem-se drama. Agora a comédia... aí a coisa já mudava de figura. Nos mais diferentes contextos havia sempre a constante de considerar comédia e doçura como antagonistas.

Os roteiristas e produtores de The Office (e nesta lista estão desde pessoas do elenco até velhos amigos de faculdade) sempre tiveram uma postura que me agradou imensamente neste quesito: a de não menosprezar nem a potência libertadora da comédia e nem as possibilidades cativantes do drama. E se, desde seu início, o programa acostumou a platéia a se “emocionar” majoritariamente com os momentos dedicados à história de Jim e Pam (única história de amor que se equipara a de Anos Incríveis), não deixa de ser curioso que com o tempo o envolvimento emocional de produtores, atores e espectadores com os personagens da série tenha nos levado até a catarse que representa o último episódio que foi exibido: a despedida do “world Best boss” Michael Scott.

Foram os quase sete anos de constrangimento, falta de noção e amizade que nos levaram às lágrimas nesta despedida. Foi a construção meticulosa do cotidiano modorrento e surpreendentemente bonito da Dunder Mifflin que fez com que todos aqueles que acompanharam a série com atenção compreendessem imediatamente que a despedida de Michael Scott era o fim do mundo que conhecíamos. E neste mundo sempre me deleitei com a sensação de que tanto os envolvidos na produção da série quanto eu e você, vez ou outra, nos surpreendíamos com a vastidão daquele escritório. Seria pura tolice, neste caso, abrir mão ou tentar eliminar da série as inúmeras possibilidades dramáticas que, ano após anos, só iam aumentando. Daí temos obras-primas do humor (a descoberta de que Oscar é gay, o falso incêndio provocado por Dwight, a entrega dos Dundies) e do drama (a entrega da medalha à Michael quando ele compra sua casa, o pedido de casamento de Jim, a entrega dos Dundies). E agora junta-se ao time de episódios irrepreensíveis de The Office o adeus à Michael.

Se desde sempre The Office fez questão de chamar atenção para seu formato (o chamado mockumentary – um documentário de mentira que apresenta de forma documental algo que sabemos ser ficção), e, ao contrário das sitcoms, sempre fez da câmera parte indispensável de seu efeito cômico/dramático, neste último episódio temos uma espécie de revisão de todas as regras estabelecidas desde a primeira temporada, retificando algumas e superando outras (dependendo do efeito almejado). Como assim retificação e superação? Peguemos as principais pessoas de quem Michael se despede neste episódio: Toby, Erin, Dwight, Jim e Pam; para cada um teremos certas escolhas formais que impulsionarão a cena em direção a um certo alvo narrativo.

O odiado (e desprezível) Toby ganha o primeiro sorriso de Michael – em um campo/contracampo hilário que evidencia todo o asco que Michael sente pelo cara dos recursos humanos e que é encerrado com o sorriso mais congelado e forçado da história da série (e estamos falando de sete temporadas do mais puro constrangimento, o que não é pouco).



Erin ganha a revisitação de um plano que já conhecemos: sentados do lado de fora do escritório, ela e seu chefe/pai discutem a vida amorosa dela. Nenhum dos dois fala em “Adeus”, mas nós sabemos que aquele plano nunca mais voltará na série – é um despedida toda construída sobre uma escolha formal.



Chega a vez de Dwight (talvez o personagem mais difícil de encaixar no tom saudoso e melancólico do episódio) e a solução encontrada por Greg Daniels e Paul Feig (diretor do episódio e um dos criadores de Freaks and Geeks) é tanto inteligente quanto sensível: em um leve zoom-in, que é inédito para o registro de Dwight, acompanhamos a sua surpresa ao ler a carta de recomendação que Michael escreveu para ele; e finalmente entendemos o que a palavra “supremo” significa. Daniels sabe que a despedida daqueles dois jamais seria bem representada através de lágrimas e resolve tratá-los por aquilo que sempre foram: crianças, daí a guerra de paintball que chega antes que pudéssemos presenciar o choro de Dwight.



O grande indicador de quão absurdas as situações que aconteciam naquele escritório eram sempre foi Jim. O olhar algo desesperado que ele tendia a lançar para a câmera sempre que o constrangimento tomava conta da cena se transformou na principal expressão do personagem. E é esta a força de termos Jim olhando diretamente para Michael, com lágrimas nos olhos, e admitindo que ele foi o seu melhor chefe – olhar que também deixa claro que ele é, talvez, o único que compreende que a despedida mais difícil de todas ainda estar por vir.


Pam sempre foi uma espécie de mãe de Michael. É ela o personagem que melhor entende como funcionava a perturbada mente daquele “executivo”. Sempre foi ela a primeira a perceber que no absurdo ambulante que é Michael Scott havia uma beleza de caráter inconfundível (assim como Michael sempre foi o primeiro a reconhecer em Pam uma capacidade criativa que a maioria sempre subestimou). E por mais bonita que seja a história de amor de Jim e Pam não posso deixar de lembrar como a relação de Pam e Michael sempre foi tratada com uma solenidade que é absolutamente adequada ao nível de cumplicidade que ambos atingiram no passar das temporadas. É, sem sombra de dúvida, intimidador ter que criar o último momento perfeito que condense toda a potencialidade desses dois; a opção foi, então, deixar as palavras para trás. Após o derradeiro “that’s what she said”, após a retirada formal de Michael do universo documental da série, é Pam que invade o quadro apressada e repete o abraço da terceira temporada (abraço que Michael ofereceu a ela após reconhecer o esforço que ela havia feito para ser vista enquanto artista), e assim como em alguns outros momentos dramáticos essenciais para o desenvolvimento dos personagens, somos provisoriamente deixados de fora da cena (não ouvimos nada) para depois participarmos daquela emoção tendo diante de nós aquela ex-secretária emocionada garantindo que nosso querido Michael está esperançoso em relação ao futuro. É o ponto de vista Pam, por fim, que é adotado como definitivo Adeus; da mulher que, de repente, melhor entendeu Michael Scott.





Um amigo me contou que Bordwell escreveu um texto uma vez sobre a TV, o nome era “Tv will break your heart”. O autor se referia a recorrência de despedidas nas séries televisivas, a ter que, às vezes inesperadamente, ver o fim de uma obra de arte que já durava anos e anos. Este último episódio de The Office partiu meu coração. Michael está agora na companhia de Lorelai, Kevin, Monica, Kramer e outros grandes amigos que foram embora. Fica, agora, este peso no meu peito (-That’s what she said).


P.S.: esse texto é dedicado às risadas da Glenda e do Miguel que me fizeram (e farão) companhia em muitos episódios de The Office.

terça-feira, 3 de maio de 2011

A Origem



Tem me surpreendido o silêncio da crítica diante de Pânico 4. Primeiro pelo sucesso comercial da franquia e sua consequente legião de seguidores que inundou o gênero slasher na última década do cinema de terror americano. Segundo, e mais importante, por ter sido o melhor momento que tive nesse ano dentro de uma sala de cinema (e olha que já estamos em Maio).

Com exceção da crítica de Wellington Sari para o site da Contracampo (http://www.contracampo.com.br/96/critpanico4.htm), que apesar de ter dado destaque ao filme enveredou por uma associação com o caso da escola de Realengo que não me agrada muito, Pânico 4, ao que me parece, passou meio despercebido – irônico, pois imagino que tenha sido ostensivamente distribuído pelo Brasil todo.

O primeiro da série assisti Deus sabe há quanto tempo, na Band, dublado, no início da adolescência. Mesmo num tempo tão distante me ficou a imagem de um filme que não parava de se criticar e se subverter, e que criou minha heroína favorita do gênero – a persistente e perturbada Sidney Prescott. Penso que de alguma forma inconsciente eu já sentia toda a potência que a metalinguagem tinha nas mentes de Wes Craven (diretor) e Kevin Williamson (roteirista), que estiveram envolvidos em todos os filmes da série (Williamson só não escreveu o roteiro do terceiro, que, no entanto, produziu). Não esperava que essa metalinguagem crescesse tanto a ponto de atingir o patamar de franca carta de amor ao cinema de horror que este quarto representa.

É indispensável que se diga, vale lembrar, que o filme não se valoriza apenas por reconhecer todos os ótimos membros que o precedem na família da qual faz parte. Trata-se, antes, de uma idéia instigante levada às últimas consequências com muito vigor por Craven. E essas inconseqüentes conseqüências não poderiam ter se dado em nenhum dos três primeiros filmes da série, neste caso por um contexto social-histórico-técnico típico de nosso tempo imediato: a internet e toda a interatividade que ela promove no campo virtual (e, por que não?, ficcional).

Williamson e Craven parecem ter tido suas cabeças formatadas pelo fenômeno da conectividade mundial e pela vertiginosa velocidade em que a informação se espalha pelo globo. Imagino os dois se deparando com fenômenos como o Facebook, a explosão de blogs e a tecnologia portátil e se perguntando que efeitos tais circunstâncias teriam no universo narrativo que criaram nos últimos 15 anos. E é desde o início da projeção que a dupla deixa claro que não estão para brincadeira: pois o filme será sempre uma caixinha dentro da outra dentro da outra e dentro da outra, pulando na nossa frente e afirmando com dedo em riste “vamos ver quem engana quem por mais tempo da forma mais criativa”. Deste pira-esconde estético/narrativo temos a essência de Pânico 4 – um filme que olha com certa admiração para a geração que tão rapidamente decodifica códigos tradicionais, mas que também a desafia a compreender porque esses códigos se tornaram tradição e até que ponto eles podem ser subvertidos tendo como ponto de partida apenas uma evolução técnica.

Temos, então, as várias jovens que assistem inúmeras versões de Stab (falsa série de terror criada desde o segundo Pânico e que leva aos cinemas ficcionais os acontecimentos de Woodsboro): elas criticam as convenções que todos nós conhecemos muito bem ao mesmo tempo em que mostram que essas convenções podem ser facilmente descartadas, bastando para isso alguma pitada de rebeldia e bom humor. Teríamos até esse ponto um simples Todo Mundo em Pânico mais legítimo? Não, estas primeiras sequências são antes uma defesa (e nunca uma ridicularização) de um certo modo de levar o suspense para as telas, transformando-o em imagens. Este modo nada mais é do que aquele que tem seu ícone máximo no assassinato de Drew Barrymore no primeiro Pânico: uma garota (ou garotas) bonita sozinha em casa, o telefone toca, ela não está sozinha, ela não sabe onde está o assassino, ela vai morrer. As camadas narrativas vão se evidenciado até que chegamos à sua matriz: reencontramos Sidney, Gale e Dewey (personagens com os quais nos acostumamos a nos importar – e isso é essencial para o “suspense humanista” de Craven e Williamson); cada um com sua vida sempre definitivamente modificada pelos acontecimentos que se sucederam desde 1996. Porém, temos agora a presença numerosa de uma novidade: as câmeras “amadoras”. Câmera que Gale segura e que revela que o assassino se aproxima dela a um marido que assiste à cena quase explodindo de angústia, câmera do geek que anda sempre presa a sua cabeça e que registra tudo o que ele vê transmitindo as cenas, em tempo real, para seu blog (e que é o ponto de visa adotado para mostrar ao personagem que ele também irá morrer – acontecendo um uso no mínimo irônico daquilo que chamamos câmera subjetiva), câmera que o próprio assassino esconde em uma festa para registrar sua “obra de arte” e eternizá-la através de imagens em movimento. Câmeras que tornaram mundialmente conhecido o caso de Sidney e que criaram, em última instância, o seu mais terrível algoz: o assassino que se vende como vítima para atingir alguma notoriedade pública.

Pânico 4 é, assim, um filme radicalmente opaco – sendo-o plenamente em um gênero que, aparentemente, necessita da transparência para atingir o essencial envolvimento do público com sua narrativa. Claro que isso, por si só, não garantiria tantos méritos; pelo menos não quando visto pelo olhar sempre titubeante daquilo que é “novidade” (lembremos de Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai e Peeping Tom, este último sendo lembrado pelo próprio filme). Mas é em uma cena como a da revelação da identidade do assassino que está a verdadeira grandeza deste quarto volume da série: em um jogo de duplicação de causas e efeitos, de inversão da moral da vítima e de releitura da cartilha do horror, Craven e Williamson exploram toda a abrangência do amor que têm por aquele mundo. É quando a nova vítima (a descendente direta de Sidney) realiza a mise-em-scéne da qual ela irá se beneficiar temporariamente (tal qual os maridos assassinos de Janela Indiscreta e Um Corpo que Cai) que Pânico 4 retira sua última máscara e revela a sua mais aterradora face: é tudo tão “espetaculoso” que a própria dor de se ver jogado em meio a perseguição de um assassino alucinado se tornou encenação.

Era mais do que fácil, era praticamente inevitável, que Craven e Williamson se perdessem em algum momento dentro de um tal baile de máscaras que acontece dentro de uma sala de espelhos, porém é justamente a capacidade que ambos possuem de fazer com que público e personagens jamais se esquecem daquilo que é essencial para a existência, persistência e permanência daquela realidade que faz com que jamais percamos o norte da estrutura narrativa/estética deste filme. Atitude que pode ser mimetizada por um plano e uma frase. O PLANO: Sidney e Jill, deitadas diante uma da outra, ocupando a mesma posição física que é, no entanto, narrativamente oposta, logo após a (re) encenação do desfecho do primeiro filme e que serve de falso-desfecho para este último. A FRASE: Sidney, após arrancar na unha a última camada de artifícios e mentiras arregimentadas pelo assassino, vocifera para seu vilão “- You don’t fuck with the original!”.

Me perdoem tantas palavras, mas já estava achando imoral o silêncio diante de um filme tão poderoso. E respondendo à pergunta do Ghostface: Pânico 4 é um dos meus filmes de terror favoritos.