sábado, 29 de maio de 2010

WILD AT HEART


Nos últimos tempos vi três filmes que não são obras-primas, mas que contribuíram para uma certa nova visão sobre qualidades e defeitos da obra de arte que eu tenho adquirido e que me tem sido muito valiosa. Os filmes são: Onde Vivem os Monstros, O Fantástico Sr. Raposo e Harold & Maud.

Começando com aquele que é, de longe, o melhor filme da carreira de Spike Jonze, Onde Vivem os Monstros é um longo, inconformado e lindo uivo à necessidade da preservação do lugar onde as coisas selvagens estão, e de uma inevitável superação do mesmo – que nunca impede revisitações. Spike Jonze não é um gênio e, em grande parte, está nisso a grandeza do feito que é este filme. O que temos é um diretor apaixonado por um mundo (o mundo de Max, construído previamente pelo autor do livro no qual o filme se baseia, Maurice Sendak) e que quer, mais que qualquer coisa, representar aquele mundo da melhor forma possível na linguagem que ele escolheu para se expressar: pode parecer nada mais do que o normal quando se trata de uma linguagem artística, mas não é. A paixão de Jonze vai fazer toda a diferença e vai distinguir este projeto de outros filmes seus que sempre me passaram a impressão de uma direção algo antipática, ou antes mesmo apática (o maior exemplo seria Quero Ser John Malkovich).

Tanta paixão se converte em comprometimento, em uma escala que se torna simplesmente inconcebível não reconhecer que estamos diante de um filme feito com amor, o que também pode parecer pouco, mas tente entender esse “amor” como o sentimento maior de um artista em relação a sua obra e que o leva a atingir o limite máximo de sua competência técnica de sua sensibilidade artística.

Tratando do enredo: Max, menino ao estilo Calvin, sofre daquela solidão particular da infância (uma mistura de descontentamento e certo abandono) e depois de uma briga com a mãe sai correndo de casa e encontra refúgio em uma ilha onde se tornará rei absoluto e assumirá a responsabilidade de nunca permitir que seus súditos (monstros com o dobro do seu tamanho) se sintam infelizes.

Que cada monstro é uma projeção de algum aspecto da personalidade de Max (e de suas carências) é bem óbvio, que Spike Jonze conseguiria transitar livre e oniricamente entre atmosferas de terror, felicidade e tristeza não era tão óbvio assim (é, na verdade, bastante inesperado). Mas é isso que ele consegue, e com esmero. Falar de crianças, falar de infância, rebuscar uma certa forma de olhar a vida com o desafio que só os olhos de uma criança são capazes de lançar é caminho perigoso que quase nunca encontra harmonia com a honestidade, mas não há outra forma de encarar os belíssimos planos de Max vagando pela torre inacabada, pelos abismos da ilha e pelas casas destruídas dos monstros e sentindo o peso de não poder garantir felicidade e contentamento a todos o tempo todo sem ser pelo viés da sinceridade absoluta e da transparência que só pode ser fruto de uma coragem infantil.

Spike Jonze não recorre ao artifício de dividir sua narrativa em apresentação, celebração de uma nova vida e desmoronamento da mesma: todos esses processos ocorrem ao mesmo tempo para Max e seus amigos monstros e o filme segue se equilibrando em uma tensão que só pode prenunciar algum rompimento com aquela realidade. Da mesma forma que o gênio Bill Watterson via com clareza assustadora todos os cantos mais recônditos, sombrios e fascinantes da vida de um garoto que se nega a submeter sua força criativa à realidade, Jonze respeita uma complexidade temática algo assustadora da melhor forma que um diretor de cinema pode fazê-lo: concebendo imagens que estejam à altura de tanta força emocional; e nesse aspecto a escolha de trabalhar com a menor quantidade possível de efeitos especiais prova não ser tão banal quanto aparenta: estamos diante de um mundo em construção e há algo no uso de bonecos para representação dos monstros e da construção concreta da torre de Max e da casa dos seus súditos que nos aproxima daquela realidade em uma espécie de harmonia entre artificialismo e realismo.

No êxito em expressar a liberdade e a angústia, a carência por compreensão e o grito de independência, Jonze se dá conta, fotograma após fotograma, da grandeza de um personagem como Max (ele está ao lado de Alice e do já citado Calvin) e seu esforço hercúleo em traduzir este menino e todo o seu universo em imagem e som é não só admirável, como extremamente recompensador para o público.

Me acostumei a pensar que este é o melhor que um não-gênio poderia fazer a partir do material que Jonze se baseou, sendo o golpe final de afeto deste diretor pelo seu filme o uivo de despedida (que é ao mesmo tempo uma chegada) que chora por uma liberdade perdida e por outra adquirida e que celebra aqueles que são selvagens de coração, do lado de lá e do lado de cá da tela.

OS: Onde Vivem os Monstros me tomou mais linhas do que eu esperava, falo dos outros dois filmes quanto tiver vontade :p

terça-feira, 11 de maio de 2010

A TEVÊ (parte 1)

Jornal. Esportes. Novelas. Séries. Shows evangélicos. Tudo tem na TV. Um dos grandes veículos de comunicação em massa, uma das formas de “democratização” da informação e também a maior vilã das comunicações, o novo ópio do povo.

Atacar a TV é uma das tarefas mais fáceis de todos os tempos. Defendê-la é complicado, e não pela falta de argumentos, mas pela complexidade da sua gênese. Se o que é imprescindível no teatro são os atores, na literatura as palavras e na pintura a criação de imagem a partir das tintas, a TV vai dividir aquilo que lhe é imprescindível com o cinema: a imagem em movimento e o som, pelo menos falando de forma geral.

Como diz meu amigo Mateus, o artista é aquele que pega algo que não é considerado arte e o faz ser arte. TV é arte? Vamos com calma.

Se é fácil olhar para as sete artes (e mais a HQ) e separá-las por conta dos seus suportes por meio dos quais suas linguagens se expressam, a TV vai ser sempre mais reconhecida como um lugar onde uma gama gigantesca de áreas de interesse será reunida. A pergunta mais correta seria: é possível arte na TV? A resposta vem na forma de outro questionamento: onde a arte não é possível meu Deus? Prefiro falar do que sei, e em relação a TV o que sei melhor é como muitas e muitas séries se utilizaram do formato televisivo para criar grandes obras; que são grandes pelos mais diferentes aspectos. Do formalismo obsessivo e a complexidade existencial das tramas de Mad Men até a construção (e desconstrução) sensível e minimalista de personagens em Gilmore Girls, chegando ao humor anárquico de The Office.

Começando pelo início pensemos na principal característica das séries e aquilo que as diferencia de filmes: sua duração. A força da morte de um personagem após o acompanharmos por anos e anos terá uma dimensão diferente da que um filme conseguirá na sua duração média de 2 horas – e usar o termo “diferente” aqui é essencial porque a duração de uma série e a duração de um filme não são garantias de uma cena ser mais ou menos impressionante, ou arrebatar mais ou menos o público, tudo continua dependendo da forma como tudo é disposto, como os elementos se encontrarão e formarão um quadro harmônico não no sentido da convencionalidade narrativa, mas no sentido de unidade da obra.


Peguemos uma das séries mais adoradas (pelos motivos errados) e mais vilipendiadas (por motivos equivocados) do passado recente da TV: Gilmore Girls. Entre suas qualidades mais aparentes está a excelência do texto, que se destaca principalmente quando posta ao lado da direção convencional das maioria cenas, que jamais pode ser confundia com incompetência ou desleixo: se trata de uma simples questão de interesse. A direção nesta série tem o objetivo de registrar os personagens (o verdadeiro ponto central da narrativa) da forma mais clara possível, o que não implica em uma forma acidental ou impensada; e podemos começar a análise da série por esse ponto.

Amy Shermann-Palladino (a criadora da série) disse que há uma decisão quanto a direção que é válida para todos os episódios: as cenas que se passam em Stars Hollow (cidade onde moram Lorelai e Rory, mãe e filha protagonistas da série) são filmadas, em sua grande maioria, em planos-sequência ou em planos que envolvem câmera em movimento; uma forma de assinalar para o caráter vivaz do cotidiano das protagonistas em sua cidade e para o quão confortáveis as protagonistas se sentem naquele lugar. Já na casa dos pais de Lorelai (com quem a personagem possui uma quantidade considerável de problemas não resolvidos) a câmera permanece basicamente parada, formal e distante; forma de assinalar o desconforto da personagem naquele mundo da onde ela veio, mas ao qual nunca pertenceu. Uma questão formal que tem como norteador o personagem e o mundo ao redor dele.

A direção nunca será o principal em qualquer um dos episódios da série, em parte pelo fato de um número relativamente grande de diretores terem assumido a direção no decorrer dos anos, mas em Gilmore Girls temos belíssimos quadros de personagens construídos com paciência e inteligência no decorrer de sete anos: tempo em que atores se tornam cada vez mais íntimos de seus personagens e em que os criadores e roteiristas da série encontram diversas oportunidades para explorar os aspectos mais interessantes de cada um. Um grande exemplo disso é a relação de Lorelai com os seus pais: fugindo do melodrama de má qualidade (não podemos esquecer que existe o grande melodrama), Amy Shermann-Palladino tem a sabedoria de lançar ao espectador indícios da origem do conflito entre esses personagens (que vai muito além de Lorelai ter engravidado aos 16 anos e fugido de casa) que ao invés de simplificar as situações, as tornam dramatica e narrativamente mais interessantes. Um grande exemplo é o episódio em que os pais de Lorelai visitam a casa da filha pela primeira vez, na ocasião do aniversário de 16 anos da neta. Em determinado momento da festa, Emily (a mãe de Lorelai) sobe sozinha ao quarto da filha onde encontra uma foto de Lorelai usando um gesso na perna; imediatamente ela volta para o andar de baixo e pede para que o marido a leve para casa, diante da perplexidade da filha Emily utiliza de uma desculpa qualquer para sair de lá o mais rápido possível, e é quando já está dentro do carro que temos a única frase que nos faz compreender tal atitude “Lorelai quebrou a perna e eu não sabia. Nós não conhecemos nossa filha”. Afinal se tratava da frustração materna frente à distância tão incontornável em relação à filha única

Gilmore Girls, tão festejada por tornar uma relação de amizade e cumplicidade entre mãe e filha (Lorelai e Rory) algo legítimo e cativante sem resvalar na pieguice, se desenvolverá em grande parte baseada nas dores de quando uma relação de respeito entre membros de uma família que se vêem presos na obrigação do amor não é possível. A dor é tão forte que cada briga que acontece entre mãe e filha durante a série tende a ganhar proporções de tragédia: Lorelai sabe que os filhos podem simplesmente ir embora e não admite que sua filha faça com ela o mesmo que ela fez com sua mãe. A complexidade dessas relações será perceptível no nível do roteiro (sempre inteligente, sempre engraçado, sempre sutil) e a direção estará presente no nível do registro. Dentro do esquema mais comum da TV (um diretor diferente em cada episódio, relativa rapidez na produção de cada capítulo, pressões do IBOPE e do público que passa a acompanhar a série) a criadora imprime aquilo que ela pretende ser a marca maior de sua criação: o texto. Texto que será o principal responsável pelo sucesso do envolvimento do público com os personagens (indispensável para a longevidade de uma série).

Haverá séries (a serem abordadas posteriormente) que irão se deter em uma direção que seja tão ou mais importante do que os diálogos. Haverá séries que se utilizarão de recursos e referências cinematográficos para construírem seu universo ficcional. E haverá outras, como Gilmore Girls (ou Friends, The Office e Seinfeld), que permanecerão neste esquema televisivo que tem em vista o sucesso financeiro e de público, mas que dentro deste esquema construirão grandes momentos dramáticos, cômicos e tragicômicos.

Não se pode, na minha sempre humilde opinião, afirmar aos quatro ventos que uma série é ruim por não valorizar a direção, ou que uma série é tão boa que até parece cinema – incorre-se, nesse caso, no mesmo erro de afirmar que as maiores HQs já feitas são tão incríveis que deveriam ser chamadas de Literatura. É preciso olhar para as séries e para a TV com olhos apropriados, é claro que o compartilhamento do mesmo suporte com o cinema sempre problematizará essa questão, mas não podemos reduzir o problema aos parâmetros que tendemos a utilizar para engrandecer o cinema (o trabalho do diretor/autor) e ridicularizar a televisão (a falta desta persona, que tende e a ser substituída pela figura do produtor).

A discussão é complexa e merece atenção, mas uma coisa é certa para mim: Gilmore Girls é grande trabalho de texto, da construção narrativa em si aos diálogos isolados com os mais diferentes efeitos cênicos. E trabalho de texto que se conserva em suas principais propostas dentro do esquema algo cruel e injusto da TV (o lugar, não a linguagem).

terça-feira, 4 de maio de 2010

AMOR


Por algum motivo Antes do Pôr-do-Sol não tem saído da minha mente nos últimos dias, diria mesmo últimas semanas. Creio que o correto seria dizer “por alguns motivos”. Ultimamente tenho tido uma relação algo distante com o cinema, me interesso muito mais em fazer do que em assistir, e talvez esteja nessa vontade que tenho de fazer o maior dos motivos da persistência desse filme na minha memória: Antes do Pôr-do-Sol é um dos grandes filmes da minha vida (ali, encostado com Luzes da Cidade e Annie Hall) e nunca houve um momento em que tenha me lembrado dele sem que tenha, de alguma forma, me emocionado.

Uma questão central pra mim, nos últimos tempos, quanto à crítica cinematográfica, tem sido o da validade de algumas coisas que deveriam dizer se um filme é grande ou não: o inevitável peso do talento do diretor, as relações entre a câmera e a palavra, o trabalho de atores, a capacidade e proposta narrativa, a montagem, a edição – mas o que mais tem se aproximado de uma verdade, para mim, é a defesa da obra a partir de seus méritos (nem sendo preciso compará-la a outra coisa) e de como ela faz aquilo que se propôs a fazer, seja lá o que isso queira dizer.

Entre minhas dúvidas sobre juízo de valor em relação ao cinema Antes do Pôr-do-Sol vem, como diria Nina Simone, bem a tempo. O segundo encontro de Jesse e Celine é mais que filme, é mais que obra-prima, é mais que beleza: é milagre. Um milagre que nada tem de acidental ou casual.

Na primeira sequência Jesse fala do seu livro, perguntam se é ficção ou realidade, é claro que nós sabemos a resposta, mas nos olhos de Ethan Hawke vemos que mesmo o seu personagem se lembra da magia juvenil de Antes do Amanhecer como algo quase tão bom para ser verdade, e entramos pela única vez na memória de Jesse: é Celine, linda como só mulheres bem filmadas podem ser, o único rastro da sua felicidade plena naquela noite em Viena. Voltamos para Paris com o close de Celine agora, observando Jesse, e a imagem reacende em todos (público e personagens) o sentimento dos dois jovens apaixonados.

Não existe mais o tempo.

É tão simples que não poderia deixar de ser genial: é um homem e uma mulher que não se esqueceram e que se ressentem de um desencontro tão cruel. Mas Linklater passa longe do fatalismo: o reencontro que vamos acompanhar é a revisitação (nunca a recuperação) de uma intimidade e uma plenitude que a premissa do filme faz parecer impossível, mas que as imagens tornam nada mais do que inevitável.

Na hora e meia de Jesse e Celine temos o que de melhor a delicadeza e a simplicidade no manuseio de uma câmera pode nos oferecer: a sinceridade e legitimidade de um registro que tem ternura imensurável pelo seu objeto filmado. O amor de Linklater, Delpy e Hawke pelo micro-universo criado pelos personagens em Antes do Amanhecer é a iluminação outonal daquela tarde parisiense, são os planos-sequência que parecem nunca quererem abandonar os dois, são os diálogos verdadeiros (da forma como só a ficção pode ser verdadeira), é o fade out final, é a mise-em-scéne de corpos mais linda que já pude testemunhar.

São muitos os talentos de Linklater como cineasta que fazem Antes do Pôr-do-Sol ser a experiência que é: o posicionamento perfeito de seus enquadramentos, o timing providencial de todas as cenas, a direção sobrenatural de atores.

Se nove anos atrás presenciamos duas pessoas se apaixonando, vemos agora as repercussões daquela noite, e se em Jesse isso se mostra de forma mais clara desde o início, é em Celine que diretor e atores realizam o trabalho mais minimalista e arrasador: no eternamente citado plano do carro há um tal desnudamento da personagem que a impressão imediata que me veio ao assistir a cena pela primeira vez foi a de pouquíssimas vezes ter-me sentido tão próximo a alguém – proximidade superada pelo próprio filme logo depois, pois o abraço de Jesse e Celine é como entender a definição de saudade, afeto, melancolia, amor e gratidão todos de uma vez.

Os nove anos passaram à força para os dois, na subida pelas escadas o espectador não apenas sabe disso, ele entende, ele sente, ele vive – e quando eles chegam à casa de Celine nos damos conta de que aqueles olhares ternos delicada e implacavelmente reduziram esses nove anos à nada, porque existe o mundo e existe o mundo de um casal, e Antes do Pôr-do-Sol é uma imagem exata do segundo.

Aquela coisa de uma noite deu origem a duas novas pessoas, que nunca mais se enxergaram (e, por consequência, nem ao mundo) da mesma forma. O reconforto de poder confirmar todo o alcance daquela noite no olhar do outro é intransferível e, no entanto, Linklater nos faz parte dessa sensação.

O campo/contracampo de Jesse e Celine enquanto ela toca a valsa que fez para ele É O AMOR. Linklater deixa signos, símbolos e metáforas para trás e chega na coisa, no coração de seus personagens e de seu público.
Como absorver a experiência? Como verbalizá-la? O que pode a palavra diante de tanta força imagética? O que resta a dizer sobre a frustração após Jesse contar a Celine sobre os sonhos que tem com ela frequentemente? O que falar de um homem apaixonado após o olhar de Hawke para Delpy enquanto ela dança Just in time?
Não sei o que é cinema, mas sei do que ele capaz sempre que reassisto Antes do Pôr-do-Sol.